(Chico Acoram Araújo)*
Na imensidão
da selva amazônica um barco, rumo a Manaus, deslizava sobre as águas do imponente
rio Purus. Um passageiro, deitado em sua rede, agonizava. O pobre coitado
delirava por conta de altíssimas febres que contraíra na pequena e doentia
cidade de Lábrea(AM), situada à margem direita do rio já citado e da foz do
insalubre rio Ituxi. Naquela cidade, este exânime exercia o cargo de um modesto
inspetor escolar. Por ser um rio muito sinuoso e com intermináveis voltas e contravoltas,
serpenteante durante todo seu percurso, a viagem daquela cidade até Manaus
demorava cerca de semana ou mais. O moribundo chamava-se Clodoaldo Severo
Conrado de Freitas, conhecido no meio intelectual de Teresina apenas como
Clodoaldo Freitas, nascido em Oeiras, antiga capital do Piauí, no dia 7 de
setembro de 1855. Era neto de português e filho legítimo de Belizário da Silva
Conrado, heroico voluntário na guerra do Paraguai, e de d. Antônia Dias de
Freitas, dedicada mãe e muito religiosa.
Segundo
Higino Cunha (em discurso proferido no Paço da Câmara Legislativa, onde em 29
de julho de 1924 a Academia Piauiense de Letras realizou uma sessão magna em
homenagem à memória de Clodoaldo Freitas, falecido no dia 29 do mês anterior em
sua residência), Clodoaldo viajava naquela embarcação entre a vida e a morte. E
dado ao seu estado febril e de medonho delírio, alguns passageiros apiedados
cercavam a rede daquele infeliz homem.
O
ilustre orador disse ainda que Clodoaldo, depois de uma longa e penosíssima
viagem, mais morto do que vivo, chegara finalmente a Teresina. Depois disto, viajou
para o interior em tratamento. Piorou. Mudou-se para Campo Maior, depois voltou
para Teresina, sem melhoras. Sempre doente, decidiu passar uma temporada na
fazenda de um amigo, coronel Jeremias Pereira da Silva, no município de
Valença, onde permaneceu por nove meses. Ali, Clodoaldo Freitas melhorou
consideravelmente a sua saúde. Higino acrescenta que foi nesse lugar onde
Clodoaldo teve o maior desgosto político de sua vida ao receber inusitada
notícia da extinção do partido Democrata que tanto defendera, prestando “por
longos anos, dia a dia, através de amarguras e de tantos sacrifícios, os mais
abnegados serviços.
No
início do mencionado discurso, Higino Cunha fala que, em 1871, o jovem Clodoaldo
Freitas segue para São Luís do Maranhão, em companhia do seu parente Aristides
Mendes de Carvalho, para cursar o Seminário das Mercês. Nessa instituição Clodoaldo
estudou por três anos, onde escreveu versos, um romance e três dramas que nunca
foram publicados. Depois, desistindo da carreira sacerdotal, transferiu-se para
o Liceu Maranhense, onde fez alguns preparatórios, já determinado a cursar
Direito. Em agosto de 1875, retornou para Teresina. Em fevereiro de 1876,
concluiu seus estudos no Liceu Piauiense. Nesse mesmo ano segue para Recife,
onde se matriculou na Faculdade de Direito, recebendo o grau de bacharel em
Ciências jurídicas e Sociais, em 05 de novembro de 1880. Seus contemporâneos
notáveis foram José Maria Martello, Álvaro de Assis Osório Mendes, Jayme
Albuquerque Rosa, Miguel José de Britto Bastos, João Alfredo de Freitas,
Joaquim Ignácio Amazonas de Almeida, Clóvis Bevilaqua e outros.
Em
21 de janeiro de 1881, Clodoaldo chega a Teresina, em plena situação liberal,
estando na presidência da província do Piauí o seu parente Dr. Firmino de Sousa
Martins. Por essa época, alguns parentes seus haviam falecidos: Deolindo Mendes
da Silva Moura e Constantino Luiz da Silva Moura. Seu muito amigo, David
Moreira Caldas, republicano, jornalista e poeta, também havia morrido havia
dois anos. Destaca também o orador já citado, que Clodoaldo quando retornou
para Teresina já tinha sido nomeado promotor público da Capital por Portaria
datada de 11 de dezembro de 1880, iniciando o exercício do cargo em 22 de
janeiro de 1881. Depois disto, torna-se juiz municipal de Valença por força do
Decreto de 29 de novembro de 1881, só tomando posse do juizado em 16 de março
de 1882.
Do
supracitado discurso, extrai-se ainda que Clodoaldo Freitas casou-se a 22 de
outubro de 1881, com Corina de Noronha Couto, filha de um modesto comerciante de
nome Marcelino José Couto. Diz também que Clodoaldo casou-se com Corina por
amor, tendo preterido outras duas moças ricas e formosas, por não devotar
nenhum sentimento amoroso por elas. O casal teve oito filhos, dentre eles os
poetas Lucídio e Alcides Freitas, sendo que apenas o caçula Marcelino Freitas
sobreviveu ao pai.
Outro
notável acadêmico que discorre sobre a vida e obra de Clodoaldo Freitas foi o
teresinense Cristino Castelo Branco (1892 – 1983) - membro da Academia
Piauiense de Letras, advogado, desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí,
escritor e memorialista. Isso aconteceu a 10 de setembro de 1955 na Academia
Piauiense de Letras, em discurso proferido em homenagem ao centenário de nascimento
de Clodoaldo Freitas.
Dentre outros
relevantes fatos narrados nessa belíssima oração, Cristino recorda que Clodoaldo
Freitas, mesmo ocupando o cargo de promotor público, após seu retorno para
Teresina, não se limitou ao desempenho das funções do cargo. “O espírito
público, o patriotismo, a vocação de luta, herdados do pai, impelem-no para a
imprensa, para a política, para o jornalismo de combate”.
Complementa
o ilustre orador:
Começa então a sua grande e notável atuação na vida
piauiense, a qual se estende, em vários setores, por um largo período, até 29
de junho de 1924, quando falece repentinamente em sua residência, aos sessenta e
nove anos de idade, como desembargador, que o fora nos últimos anos de vida,
dos mais íntegros e dos mais ilustres que já passaram pelo Tribunal de Justiça
do Estado.
No que diz
respeito ao jornalismo de combate praticado por Clodoaldo Freitas, Monsenhor
Chaves (no seu livro OBRA COMPLETA - capítulo Clodoaldo Severo Conrado de
Freitas) assevera que na época o jornalismo era de baixo nível, de linguagem
solta ou vulgar, onde as agressões pessoais eram comumente estampadas nas
manchetes dos jornais, inclusive noticiando fatos ligados à vida privada dos
adversários. Nesse tempo, nem a honra das senhoras escapava daquele jornalismo
sujo.
No seu
mencionado livro, Monsenhor Chaves comenta:
Clodoaldo, no ataque, argumentava, expendia conceitos, mas
também revidava com diatribes às que lhe eram assacadas. Ele, tão amigo da
verdade, no aceso da luta, deslembra-se dela, se tal lhe parecia necessário
ferir o adversário. Então prevalecia o velho princípio de que a quem não tem
rabo de palha, prega-se.
Atacando certa feita, o governador Coriolano de Carvalho,
escreveu essa enormidade: “Aqui não tinha família, a não ser dois pretinhos
desacreditados que moram em Barras e algumas parentas velhas, tias aposentadas
na prostituição”.
Como se
observa nos comentários acima, o jornalismo da época era ferrenho. A luta entre
os contendores era implacável. Aos vencidos, o castigo, o desprezo e a
intolerância. Não havia perdão.
E foi por isso
que Clodoaldo Freitas, muitas vezes derrotado em suas lutas políticas,
exilou-se para outros estados, vivendo do pão que o diabo amassou, como foi o
caso de sua viagem para o Estado do Amazonas, o refúgio, segundo Higino Cunha,
de todos os desprotegidos da fortuna. É
provável que o motivo desse infeliz degredo, em Lábrea, tenha sido em
decorrência do entrevero que Clodoaldo teve com o governador Coriolano de
Carvalho.
Historicamente, Clodoaldo era um perdedor nato
nas refregas políticas, e, por isso mesmo, teve que morar, várias vezes, em
outros estados atrás de recursos financeiros para prover seu próprio sustento e
o da família. E esquecer suas desilusões políticas longe da sua terra natal. Assim,
andou pelos estados do Amazonas, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Pará e
Maranhão, exercendo os mais diversos cargos públicos. Tornou-se professor, juiz
municipal, juiz de direito, chefe de polícia, jornalista, diretor de imprensa
oficial e colaborador de jornal. Foi
também Diretor da Imprensa Oficial em São Luís e colaborador da fundação da
Academia Maranhense de Letras. No Pará foi eleito deputado estadual. No
entanto, apesar de suas peregrinações pelo Brasil a fora, Clodoaldo amava sua
terra natal. Não compreendia, e tampouco sabia viver longe do Piauí. Sua estada
em outros estados do Brasil era efêmera; nunca se prolongava por muito tempo. Cristino
Castelo Branco lembra que Clodoaldo, de repente, dava na telha de voltar para
casa. Abandonava tudo, todos os interesses, todas as posições, todos os cargos,
e voltava. Voltava sempre.
Quanto à vida
cultural de Clodoaldo Freitas, Monsenhor Chaves afirma que Clodoaldo Freitas
foi um importante intelectual da sua época e grande propulsor da vida cultural
piauiense ao lado de Higino Cunha e Abdias Neves. A produção literária de Clodoaldo
é vastíssima. Sem mencionar as diversas obras inéditas, podemos destacar alguns
livros seus: História do Piauí, Vultos piauienses, Memória de um velho, O Piauí
– canto sertanejo, Os fatores do coelhado, Roda dos fatos, O inferno de Dantes,
Os últimos dias de Pompéia, Contos a Teresa.
Quanto à
República, proclamada em 1889, Clodoaldo teve uma profunda decepção com essa
nova forma de governo implantado no Brasil, uma vez que combateu severamente as
autoridades monárquicas da época. Sobre isso, Higino Cunha diz que, para
Clodoaldo Freitas, a nascente República, “apenas era, no conceito de todos, o
amplo horizonte, em que, naturalmente, se teria de espanejar, pois fora ele um
republicano histórico e era impossível que os seus serviços fossem esquecidos”.
Em seguida,
Clodoaldo interroga:
Todos acreditavam que, afinal, lhe
rompera o dia da separação e da justiça. Quem poderia preteri-lo nesta terra?
Quem como ele se batera pela república, sacrificando os proventos de uma
carreira fácil no partido?
Sobre isso, o
historiador e emérito professor Fonseca Neto, no livro TERESINA 160 ANOS, diz
que Clodoaldo Freitas foi um “infeliz
republicano no Piauí - um desenganado”. Clodoaldo acreditava que a
República de 1889 traria a renovação e a esperança para o povo do Piauí e do
Brasil. Ledo engano! A República tomou rumos diferentes. A oligarquia se
fortaleceu, tanto em nível local, regional ou nacionalmente. No interior, os
coronéis e as oligarquias tornaram-se fortes mandatários das decisões. Em nível
nacional, adota-se uma política oligárquica voltada para atender os interesses
do poder central, desconsiderando, portanto, as demais regiões do país. Ou
seja, o povo não participava das decisões políticas a nível regional ou local, e
tampouco a nível nacional. Daí a grande decepção de Clodoaldo Freitas com a tão
sonhada república.
Clodoaldo,
apesar das agruras que passou por todo esse tempo, recebeu a maior conquista da
sua vida. Foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí por
Miguel Rosa no apagar das luzes do seu governo. Essa nomeação foi uma
verdadeira fortuna para Clodoaldo, uma vez que isso aconteceu inesperadamente,
à última hora, já com mais de sessenta anos de idade.
“Mas a asa
negra do infortúnio acompanhou Clodoaldo Freitas até na última fase da sua
vida, quando perdeu o seu extremoso filho, a sua mais fagueira esperança, o
talentoso poeta e jurista Lucídio Freitas” - disse Higino Cunha com muito
pesar.
O notável
poeta e jurista, Lucídio Freitas, faleceu a 14 de maio de 1922, aos 28 anos de
idade, em decorrência de uma tuberculose que contraíra anos atrás. Um outro irmão, Alcides Freitas, médico e
poeta, quatro anos mais novo, também faleceu dessa terrível doença, aos 22 anos
de idade. Alcides publicou seu famoso e único livro, Alexandrinos (poesias),
escrito em parceria com o irmão Lucídio.
No ano
anterior, Clodoaldo Freitas vendo o sofrimento do seu querido filho, já vencido
pela terrível doença, fez dois sonetos que traduzem os sentimentos de uma
insuportável dor que um pai pode passar vendo seu filho, no leito, aguardando a
hora da chegada da “indesejada das gentes”. Esses dois belíssimos sonetos foram
lidos, com viva emoção, no já mencionado discurso de Cristino Castelo Branco,
testemunha ocular da enorme aflição da família dos poetas trágicos. Eis algumas
estrofes dos referidos sonetos:
Dor de pai
Eu nunca me prostrei ante os altares
Nem jamais invoquei de Deus o nome;
Vendo entretanto o mal que te consome,
Ergo, contrito, ao céu tristes olhares!
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Na agonia mortal dessa certeza,
Contemplo a definhar, cheio de espanto,
Gênio, glória, beleza e mocidade!
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Sofresse o teu sofrer e eu pudesse
Transferir para mim tantos horrores,
Talvez menos horrores padecesse...
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Aqui, abro um
parêntese para falar porque decidi escrever sobre Clodoaldo Freitas, um dos
maiores intelectuais que o Piauí teve no final do século XIX e primeira quadra
do século XX.
Em 1961, minha família veio de Barras do
Marataoan para Teresina, onde fomos morar numa pequena e humilde casa situada
na Rua Tiradentes, do lado oeste do Estádio de Futebol Lindolfo Monteiro.
Permanecemos ali não por muito tempo. Meu pai alugou outra casa nas imediações
também daquele campo de futebol. O novo lar era uma das três casas de uma pequena
vila, que ficava no final da rua, já chegando ao rio Parnaíba. Essa casa tinha o número 46 da Rua Clodoaldo
Freitas, conhecida também como Rua Palmeirinha. Em frente à vila tinha uma
carnaubeira que presenteava às crianças que moravam na vizinhança, seus
deliciosos frutos cor de jambo. Nas madrugadas, a competição pelas frutas era acirrada.
Hoje, a vila e a generosa carnaubeira não existem mais; as crianças onde estão?
Na época,
ainda muito criança, peguei-me, muitas vezes, matutando, a indagar quem seria
Clodoaldo Freitas, nome dado a antiga Rua Palmeirinha. Deve ter sido uma pessoa
muito importante, pensava eu. A outra rua em que residimos anteriormente tinha
nome de Tiradentes. Esse nome me era bastante familiar, pois já tinha estudado
no livro de História do Brasil que se tratava de Joaquim José da Silva Xavier, um
herói nacional, o mártir da Independência do Brasil. Nesse didático, não vi o
nome de Clodoaldo Freitas. E bem que o seu nome poderia estar lá, uma vez que ele
foi um valoroso intelectual piauiense defensor da república no Brasil, ao lado
de outros grandes heróis nacionais.
Clodoaldo
Freitas foi, nas palavras de Cristino Castelo Branco, “um homem público,
republicano histórico, lutou sempre por um regime político diferente daquele em
que viveu, um regime sem hipocrisia e sem mentira, além de se tornar uma das
figuras mais característica, mais impressionantes, mas representativas da sua
terra e da sua gente, do modo de ser, da simplicidade, da pobreza honrada, das
lutas políticas, das campanhas de imprensa, das letras e do patriotismo”.
Em 30 de
dezembro de 1917, Clodoaldo Freitas, como grande e influente intelectual da
época, ao lado do seu filho Lucídio Freitas, Higino Cunha, João Pinheiro,
Édison Cunha, Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Benedito Aurélio
de Freitas e Fenelon Castelo Branco, fundou a nossa gloriosa Academia Piauiense
de Letras - APL. Clodoaldo deixou ao filho, Lucídio Freitas, o grande idealizador
da Academia, a herança de ser o principal articulador e promotor das primeiras
atividades da APL, o que não veio acontecer em razão do agravamento da doença e
falecimento do jovem e auspicioso poeta, ocorrido a 14 de maio de 1922.
Clodoaldo Freitas
foi o primeiro presidente da APL, ocupando a Cadeira nº 01, que tem como
patrono José Manuel de Freitas (Desembargador Freitas). Atualmente a cadeira é
ocupada pelo eminente historiador e professor Antônio Fonseca dos Santos Neto
(Prof. Fonseca Neto).
(*) Chico Acoram Araújo é Contador, Funcionário Público Federal e cronista.