segunda-feira, 24 de setembro de 2018

SOB A ASA NEGRA DO INFORTÚNIO

Fundadores da APL. Da esquerda para a direita, de pé: Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Lucídio Freitas, Antônio Chaves, Benedito Aurélio de Freitas(Baurélio Mangabeira) e Édison Cunha. Sentados, e na mesma ordem: Fenelon Castelo Branco, Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e João Pinheiro

                                                          
(Chico Acoram Araújo)*
                Na imensidão da selva amazônica um barco, rumo a Manaus, deslizava sobre as águas do imponente rio Purus. Um passageiro, deitado em sua rede, agonizava. O pobre coitado delirava por conta de altíssimas febres que contraíra na pequena e doentia cidade de Lábrea(AM), situada à margem direita do rio já citado e da foz do insalubre rio Ituxi. Naquela cidade, este exânime exercia o cargo de um modesto inspetor escolar. Por ser um rio muito sinuoso e com intermináveis voltas e contravoltas, serpenteante durante todo seu percurso, a viagem daquela cidade até Manaus demorava cerca de semana ou mais. O moribundo chamava-se Clodoaldo Severo Conrado de Freitas, conhecido no meio intelectual de Teresina apenas como Clodoaldo Freitas, nascido em Oeiras, antiga capital do Piauí, no dia 7 de setembro de 1855. Era neto de português e filho legítimo de Belizário da Silva Conrado, heroico voluntário na guerra do Paraguai, e de d. Antônia Dias de Freitas, dedicada mãe e muito religiosa.
                Segundo Higino Cunha (em discurso proferido no Paço da Câmara Legislativa, onde em 29 de julho de 1924 a Academia Piauiense de Letras realizou uma sessão magna em homenagem à memória de Clodoaldo Freitas, falecido no dia 29 do mês anterior em sua residência), Clodoaldo viajava naquela embarcação entre a vida e a morte. E dado ao seu estado febril e de medonho delírio, alguns passageiros apiedados cercavam a rede daquele infeliz homem.
                O ilustre orador disse ainda que Clodoaldo, depois de uma longa e penosíssima viagem, mais morto do que vivo, chegara finalmente a Teresina. Depois disto, viajou para o interior em tratamento. Piorou. Mudou-se para Campo Maior, depois voltou para Teresina, sem melhoras. Sempre doente, decidiu passar uma temporada na fazenda de um amigo, coronel Jeremias Pereira da Silva, no município de Valença, onde permaneceu por nove meses. Ali, Clodoaldo Freitas melhorou consideravelmente a sua saúde. Higino acrescenta que foi nesse lugar onde Clodoaldo teve o maior desgosto político de sua vida ao receber inusitada notícia da extinção do partido Democrata que tanto defendera, prestando “por longos anos, dia a dia, através de amarguras e de tantos sacrifícios, os mais abnegados serviços.
                No início do mencionado discurso, Higino Cunha fala que, em 1871, o jovem Clodoaldo Freitas segue para São Luís do Maranhão, em companhia do seu parente Aristides Mendes de Carvalho, para cursar o Seminário das Mercês. Nessa instituição Clodoaldo estudou por três anos, onde escreveu versos, um romance e três dramas que nunca foram publicados. Depois, desistindo da carreira sacerdotal, transferiu-se para o Liceu Maranhense, onde fez alguns preparatórios, já determinado a cursar Direito. Em agosto de 1875, retornou para Teresina. Em fevereiro de 1876, concluiu seus estudos no Liceu Piauiense. Nesse mesmo ano segue para Recife, onde se matriculou na Faculdade de Direito, recebendo o grau de bacharel em Ciências jurídicas e Sociais, em 05 de novembro de 1880. Seus contemporâneos notáveis foram José Maria Martello, Álvaro de Assis Osório Mendes, Jayme Albuquerque Rosa, Miguel José de Britto Bastos, João Alfredo de Freitas, Joaquim Ignácio Amazonas de Almeida, Clóvis Bevilaqua e outros.
                Em 21 de janeiro de 1881, Clodoaldo chega a Teresina, em plena situação liberal, estando na presidência da província do Piauí o seu parente Dr. Firmino de Sousa Martins. Por essa época, alguns parentes seus haviam falecidos: Deolindo Mendes da Silva Moura e Constantino Luiz da Silva Moura. Seu muito amigo, David Moreira Caldas, republicano, jornalista e poeta, também havia morrido havia dois anos. Destaca também o orador já citado, que Clodoaldo quando retornou para Teresina já tinha sido nomeado promotor público da Capital por Portaria datada de 11 de dezembro de 1880, iniciando o exercício do cargo em 22 de janeiro de 1881. Depois disto, torna-se juiz municipal de Valença por força do Decreto de 29 de novembro de 1881, só tomando posse do juizado em 16 de março de 1882.
                Do supracitado discurso, extrai-se ainda que Clodoaldo Freitas casou-se a 22 de outubro de 1881, com Corina de Noronha Couto, filha de um modesto comerciante de nome Marcelino José Couto. Diz também que Clodoaldo casou-se com Corina por amor, tendo preterido outras duas moças ricas e formosas, por não devotar nenhum sentimento amoroso por elas. O casal teve oito filhos, dentre eles os poetas Lucídio e Alcides Freitas, sendo que apenas o caçula Marcelino Freitas sobreviveu ao pai.
                Outro notável acadêmico que discorre sobre a vida e obra de Clodoaldo Freitas foi o teresinense Cristino Castelo Branco (1892 – 1983) - membro da Academia Piauiense de Letras, advogado, desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí, escritor e memorialista. Isso aconteceu a 10 de setembro de 1955 na Academia Piauiense de Letras, em discurso proferido em homenagem ao centenário de nascimento de Clodoaldo Freitas.
Dentre outros relevantes fatos narrados nessa belíssima oração, Cristino recorda que Clodoaldo Freitas, mesmo ocupando o cargo de promotor público, após seu retorno para Teresina, não se limitou ao desempenho das funções do cargo. “O espírito público, o patriotismo, a vocação de luta, herdados do pai, impelem-no para a imprensa, para a política, para o jornalismo de combate”.
            Complementa o ilustre orador: 

               Começa então a sua grande e notável atuação na vida piauiense, a qual se estende, em vários setores, por um largo período, até 29 de junho de 1924, quando falece repentinamente em sua residência, aos sessenta e nove anos de idade, como desembargador, que o fora nos últimos anos de vida, dos mais íntegros e dos mais ilustres que já passaram pelo Tribunal de Justiça do Estado.
No que diz respeito ao jornalismo de combate praticado por Clodoaldo Freitas, Monsenhor Chaves (no seu livro OBRA COMPLETA - capítulo Clodoaldo Severo Conrado de Freitas) assevera que na época o jornalismo era de baixo nível, de linguagem solta ou vulgar, onde as agressões pessoais eram comumente estampadas nas manchetes dos jornais, inclusive noticiando fatos ligados à vida privada dos adversários. Nesse tempo, nem a honra das senhoras escapava daquele jornalismo sujo.  
No seu mencionado livro, Monsenhor Chaves comenta:
             Clodoaldo, no ataque, argumentava, expendia conceitos, mas também revidava com diatribes às que lhe eram assacadas. Ele, tão amigo da verdade, no aceso da luta, deslembra-se dela, se tal lhe parecia necessário ferir o adversário. Então prevalecia o velho princípio de que a quem não tem rabo de palha, prega-se.
            Atacando certa feita, o governador Coriolano de Carvalho, escreveu essa enormidade: “Aqui não tinha família, a não ser dois pretinhos desacreditados que moram em Barras e algumas parentas velhas, tias aposentadas na prostituição”.    
Como se observa nos comentários acima, o jornalismo da época era ferrenho. A luta entre os contendores era implacável. Aos vencidos, o castigo, o desprezo e a intolerância. Não havia perdão.
E foi por isso que Clodoaldo Freitas, muitas vezes derrotado em suas lutas políticas, exilou-se para outros estados, vivendo do pão que o diabo amassou, como foi o caso de sua viagem para o Estado do Amazonas, o refúgio, segundo Higino Cunha, de todos os desprotegidos da fortuna.  É provável que o motivo desse infeliz degredo, em Lábrea, tenha sido em decorrência do entrevero que Clodoaldo teve com o governador Coriolano de Carvalho.
 Historicamente, Clodoaldo era um perdedor nato nas refregas políticas, e, por isso mesmo, teve que morar, várias vezes, em outros estados atrás de recursos financeiros para prover seu próprio sustento e o da família. E esquecer suas desilusões políticas longe da sua terra natal. Assim, andou pelos estados do Amazonas, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Pará e Maranhão, exercendo os mais diversos cargos públicos. Tornou-se professor, juiz municipal, juiz de direito, chefe de polícia, jornalista, diretor de imprensa oficial e colaborador de jornal.  Foi também Diretor da Imprensa Oficial em São Luís e colaborador da fundação da Academia Maranhense de Letras. No Pará foi eleito deputado estadual. No entanto, apesar de suas peregrinações pelo Brasil a fora, Clodoaldo amava sua terra natal. Não compreendia, e tampouco sabia viver longe do Piauí. Sua estada em outros estados do Brasil era efêmera; nunca se prolongava por muito tempo. Cristino Castelo Branco lembra que Clodoaldo, de repente, dava na telha de voltar para casa. Abandonava tudo, todos os interesses, todas as posições, todos os cargos, e voltava. Voltava sempre.
Quanto à vida cultural de Clodoaldo Freitas, Monsenhor Chaves afirma que Clodoaldo Freitas foi um importante intelectual da sua época e grande propulsor da vida cultural piauiense ao lado de Higino Cunha e Abdias Neves. A produção literária de Clodoaldo é vastíssima. Sem mencionar as diversas obras inéditas, podemos destacar alguns livros seus: História do Piauí, Vultos piauienses, Memória de um velho, O Piauí – canto sertanejo, Os fatores do coelhado, Roda dos fatos, O inferno de Dantes, Os últimos dias de Pompéia, Contos a Teresa.
Quanto à República, proclamada em 1889, Clodoaldo teve uma profunda decepção com essa nova forma de governo implantado no Brasil, uma vez que combateu severamente as autoridades monárquicas da época. Sobre isso, Higino Cunha diz que, para Clodoaldo Freitas, a nascente República, “apenas era, no conceito de todos, o amplo horizonte, em que, naturalmente, se teria de espanejar, pois fora ele um republicano histórico e era impossível que os seus serviços fossem esquecidos”.

Em seguida, Clodoaldo interroga:
Todos acreditavam que, afinal, lhe rompera o dia da separação e da justiça. Quem poderia preteri-lo nesta terra? Quem como ele se batera pela república, sacrificando os proventos de uma carreira fácil no partido?

Sobre isso, o historiador e emérito professor Fonseca Neto, no livro TERESINA 160 ANOS, diz que Clodoaldo Freitas foi um “infeliz republicano no Piauí - um desenganado”. Clodoaldo acreditava que a República de 1889 traria a renovação e a esperança para o povo do Piauí e do Brasil. Ledo engano! A República tomou rumos diferentes. A oligarquia se fortaleceu, tanto em nível local, regional ou nacionalmente. No interior, os coronéis e as oligarquias tornaram-se fortes mandatários das decisões. Em nível nacional, adota-se uma política oligárquica voltada para atender os interesses do poder central, desconsiderando, portanto, as demais regiões do país. Ou seja, o povo não participava das decisões políticas a nível regional ou local, e tampouco a nível nacional. Daí a grande decepção de Clodoaldo Freitas com a tão sonhada república.
Clodoaldo, apesar das agruras que passou por todo esse tempo, recebeu a maior conquista da sua vida. Foi nomeado desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí por Miguel Rosa no apagar das luzes do seu governo. Essa nomeação foi uma verdadeira fortuna para Clodoaldo, uma vez que isso aconteceu inesperadamente, à última hora, já com mais de sessenta anos de idade.   
“Mas a asa negra do infortúnio acompanhou Clodoaldo Freitas até na última fase da sua vida, quando perdeu o seu extremoso filho, a sua mais fagueira esperança, o talentoso poeta e jurista Lucídio Freitas” - disse Higino Cunha com muito pesar.
O notável poeta e jurista, Lucídio Freitas, faleceu a 14 de maio de 1922, aos 28 anos de idade, em decorrência de uma tuberculose que contraíra anos atrás.  Um outro irmão, Alcides Freitas, médico e poeta, quatro anos mais novo, também faleceu dessa terrível doença, aos 22 anos de idade. Alcides publicou seu famoso e único livro, Alexandrinos (poesias), escrito em parceria com o irmão Lucídio.
No ano anterior, Clodoaldo Freitas vendo o sofrimento do seu querido filho, já vencido pela terrível doença, fez dois sonetos que traduzem os sentimentos de uma insuportável dor que um pai pode passar vendo seu filho, no leito, aguardando a hora da chegada da “indesejada das gentes”. Esses dois belíssimos sonetos foram lidos, com viva emoção, no já mencionado discurso de Cristino Castelo Branco, testemunha ocular da enorme aflição da família dos poetas trágicos. Eis algumas estrofes dos referidos sonetos:
                     
                    Dor de pai

Eu nunca me prostrei ante os altares
Nem jamais invoquei de Deus o nome;
Vendo entretanto o mal que te consome,
Ergo, contrito, ao céu tristes olhares!
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Na agonia mortal dessa certeza,
Contemplo a definhar, cheio de espanto,
Gênio, glória, beleza e mocidade!
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Sofresse o teu sofrer e eu pudesse
Transferir para mim tantos horrores,
Talvez menos horrores padecesse...
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Aqui, abro um parêntese para falar porque decidi escrever sobre Clodoaldo Freitas, um dos maiores intelectuais que o Piauí teve no final do século XIX e primeira quadra do século XX.
 Em 1961, minha família veio de Barras do Marataoan para Teresina, onde fomos morar numa pequena e humilde casa situada na Rua Tiradentes, do lado oeste do Estádio de Futebol Lindolfo Monteiro. Permanecemos ali não por muito tempo. Meu pai alugou outra casa nas imediações também daquele campo de futebol. O novo lar era uma das três casas de uma pequena vila, que ficava no final da rua, já chegando ao rio Parnaíba.  Essa casa tinha o número 46 da Rua Clodoaldo Freitas, conhecida também como Rua Palmeirinha. Em frente à vila tinha uma carnaubeira que presenteava às crianças que moravam na vizinhança, seus deliciosos frutos cor de jambo. Nas madrugadas, a competição pelas frutas era acirrada. Hoje, a vila e a generosa carnaubeira não existem mais; as crianças onde estão?
Na época, ainda muito criança, peguei-me, muitas vezes, matutando, a indagar quem seria Clodoaldo Freitas, nome dado a antiga Rua Palmeirinha. Deve ter sido uma pessoa muito importante, pensava eu. A outra rua em que residimos anteriormente tinha nome de Tiradentes. Esse nome me era bastante familiar, pois já tinha estudado no livro de História do Brasil que se tratava de Joaquim José da Silva Xavier, um herói nacional, o mártir da Independência do Brasil. Nesse didático, não vi o nome de Clodoaldo Freitas. E bem que o seu nome poderia estar lá, uma vez que ele foi um valoroso intelectual piauiense defensor da república no Brasil, ao lado de outros grandes heróis nacionais.
Clodoaldo Freitas foi, nas palavras de Cristino Castelo Branco, “um homem público, republicano histórico, lutou sempre por um regime político diferente daquele em que viveu, um regime sem hipocrisia e sem mentira, além de se tornar uma das figuras mais característica, mais impressionantes, mas representativas da sua terra e da sua gente, do modo de ser, da simplicidade, da pobreza honrada, das lutas políticas, das campanhas de imprensa, das letras e do patriotismo”.
Em 30 de dezembro de 1917, Clodoaldo Freitas, como grande e influente intelectual da época, ao lado do seu filho Lucídio Freitas, Higino Cunha, João Pinheiro, Édison Cunha, Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Benedito Aurélio de Freitas e Fenelon Castelo Branco, fundou a nossa gloriosa Academia Piauiense de Letras - APL. Clodoaldo deixou ao filho, Lucídio Freitas, o grande idealizador da Academia, a herança de ser o principal articulador e promotor das primeiras atividades da APL, o que não veio acontecer em razão do agravamento da doença e falecimento do jovem e auspicioso poeta, ocorrido a 14 de maio de 1922.
Clodoaldo Freitas foi o primeiro presidente da APL, ocupando a Cadeira nº 01, que tem como patrono José Manuel de Freitas (Desembargador Freitas). Atualmente a cadeira é ocupada pelo eminente historiador e professor Antônio Fonseca dos Santos Neto (Prof. Fonseca Neto).

(*) Chico Acoram Araújo é Contador, Funcionário Público Federal e cronista.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Coronel Jesuíno Sousa da Piracuruca

Cel. Jesuíno Sousa e sua prolífica família


José Pedro Araújo

Coronel Jesuíno Sousa era um dos grandes fazendeiros de Piracuruca, dono de vastas fazendas situadas naquele município e em Batalha, chegando seus limites a se entender até o município de Barras. Homem inteligente e de visão apurada, não aprendeu a ler nem a escrever, mas possuía uma capacidade excepcional para fazer contas de cabeça e, acima de tudo, de visualizar o futuro. Nenhum cálculo mal feito lhe escapava à percepção quanto pedia aos filhos que procedesse a alguma soma ou subtração. A falta de aprendizagem nos bancos escolares, foi prontamente compensada com a experiência de vida, a observação detida e o fino faro para os bons negócios. Negócios honestos, lícitos, pois como sempre dizia ao final de uma transação, a coisa só termina bem quando os dois lados ficam satisfeitos.

Esse homem sábio, nascido em um lar pobre e de família numerosa, nunca se dobrou à sina comum aos que vem ao mundo com esse viés hereditário, e logo se rebelou contra o estado de pobreza que açambarcava a sua família: desde a sua infância dedicou-se com afinco ao trabalho e aos negócios. Para exemplificar isto, vou contar um fato que ouvi uma ocasião sobre a determinação deste homem de compleição física pequena, mas sabedoria enorme. Certa vez, ainda muito jovem, ao atravessar a Fazenda Lagoa do Saco, uma das grandes fazendas da região, tocando uma pequena tropa de burros de um determinado cidadão a quem prestava seus serviços, prometeu que ainda seria dono daquelas terras que tanto admirava. E de fato, muitos anos depois, conseguiu comprá-la dos herdeiros do antigo proprietário. E não somente esta, mas outras duas grandes propriedades que faziam limite com ela: Cajazeiras e Santa Maria. As três somavam uma área contínua de mais de dois mil e duzentos hectares de ótimas terras com pastagem natural abundante, várias nascentes e extensos carnaubais. Nelas o coronel criava um numeroso rebanho de gado vacum e uma grande quantidade de ovinos e caprinos, além de explorar seus carnaubais.  

Mas o início da sua história começou na pequena Fazenda Cocal, situada no município de Batalha, lugar em que estabeleceu a sua morada e criou a numerosa prole. Naqueles anos, a Carnaúba embasava a economia do estado, e Piracuruca situava-se no centro do maior polo produtor de cera, principal produto extraído desta palmácea. A Fazenda Cocal, apesar de contar com terras boas para a agricultura (fruticultura em especial, pois de lá retirava muitas carradas de laranja e banana para serem comercializadas) e pecuária, não possuía um carnaubal rentável. E o coronel acreditava que as grandes fortunas da região estavam baseadas na criação extensiva de bovinos e na exploração de seus carnaubais. Fora disto, não havia grandes oportunidades de enriquecimento, pois o comércio ainda era muito incipiente e o que provinha da agricultura mal dava para o sustento das famílias. Munido de grande determinação, o jovem Jesuíno instalou um pequeno comércio na própria fazenda, e começou a trabalhar incansavelmente para contornar o problema relacionado ao seu pequeno carnaubal: resolveu plantar carnaubeiras por toda a extensão da sua propriedade. Era um trabalho pesado e com resultados em longo prazo, visto que a árvore da carnaúba leva vários anos até chegar ao ponto de permitir a extração das suas folhas. Estima-se em dez anos esse tempo necessário, quando as palhas já podem ser retiradas para a extração do pó que se transformará em cera.

Precisava ser um homem muito determinado para acreditar que, através do plantio da palmácea, iria conseguir superar a pobreza das suas terras em relação a este vegetal. Mas ele foi em frente. Como até então ninguém havia feito isto, poucos acreditavam que ele teria sucesso na sua empreitada. Com exceção dele, é claro. E foi assim que, usando apenas a sua intuição, vez que não existia ainda uma técnica desenvolvida para o plantio desta espécie cerífera, coube a ele fazer uma seleção das plantas mais produtivas para povoar a sua fazenda. Depois foi só esperar para colher os primeiros resultados. E eles foram dadivosos, animadores, ao ponto de atiçar-lhe o ânimo para ampliar a quantidade de árvores adotando o mesmo método.

E foi assim que ele - para encurtar a história – com trabalho e muito empenho, começou a utilizar a renda extra que obtinha com as suas atividades corriqueiras, para adquirir novas propriedades. Como uma única exigência: teriam que possuir extensos carnaubais. E assim, produzindo e vendendo cera de carnaúba, deu cumprimento a sua promessa e adquiriu a Fazenda Lagoa do Saco. E depois muitas outras.

Seus rebanhos também foram aumentando à medida que novas terras foram sendo adquiridas. Naqueles tempos, é importante que se diga, criava-se extensivamente nas vastas áreas de pastagem nativa existentes na região, sem a necessidade de grandes investimentos com pastos, cercas ou aguadas. Isso, até que o arame farpado veio interromper esse tipo de exploração pecuária. Naquela época também, os rebanhos se dispersavam por toda a região e, muitas vezes, ultrapassavam os limites do próprio município. E por conta disto, em épocas previamente definidas, como nos momentos de vacinação, ou mesmo de escolha de amimais para a vendagem, os vaqueiros saíam para campear por toda a região, trabalho que demorava semanas, até mesmo meses.

Vaqueiro, nesse tempo, era uma profissão respeitada e isso fazia com que muitos jovens se dedicassem a esse tipo de trabalho. Um bom cavalo de sela, arreios vistosos e uma boa vestimenta de couro (gibão, perneira, peitoral, luvas e chapéu de couro), transformava o homem em uma figura quase mitológica, um herói das plagas nordestinas. E isso encantava muitos jovens.

Certo dia, já avançado na idade e residindo em Piracuruca, Coronel Jesuíno recebeu a notícia, por um de seus filhos, de que um determinado novilho estava causando um verdadeiro alvoroço na região de Batalha, onde o fazendeiro possuía várias propriedades. Isso começou quando os vaqueiros saíram a campo para juntar a boiada que se achava no ponto de venda para o abate. O gado, criado daquela maneira, às vezes oferece alguma dificuldade na hora de juntá-los, nada, contudo, que atrapalhe o ofício daqueles homens acostumado à sua corriqueira lide. Mas dessa vez havia aparecido um boizinho que estava fazendo história: ninguém conseguia pôr as mãos nele, apesar das inúmeras tentativas. Soube ainda que essa história já havia corrido o mundo e transformara o boi em uma verdadeira entidade. Alguns diziam até mesmo que ele tinha pauta com o demônio, era encantado. Tudo porque, em várias ocasiões, tinha conseguido se evadir mesmo estando cercado por numeroso grupo de vaqueiros em um capão de mato. E quando eles penetravam na vegetação, não mais o encontravam lá. Havia sumido.

O fato é que a cada tentativa de lançarem mão no boi, o arredio animal dava sempre um jeito de escapar aos seus perseguidores e sumir no mato. Apesar de não ser um animal muito grande, o que causou espanto à populaça foi que o Marruá fora criado junto à comunidade Caraíbas, povoação próxima a Batalha, e era sempre visto no pátio de uma determinada casa, onde habituou-se a passar a noite. Todavia, mal o dia clareava, sumia sem que o seu paradeiro fosse conhecido.

Quando chegou a sua vez de ser aprisionado para ser conduzido ao açougue, o boizinho se revelou e ninguém conseguia pôr as mãos nele. Foi então que a história se espalhou na região e chamou a atenção de inúmeros vaqueiros ansiosos por ganhar fama. E cada vez mais homens vinham em busca do arisco animal, mas ninguém lograva êxito. Nem mesmo os vaqueiros mais afamados da região. Ao tomar conhecimento da história, e da verdadeira festa que estavam organizando para o final da semana seguinte, um dos filhos do Coronel, munido de uma câmera para filmagem, desceu para o local do acontecimento que estava chamando tanto a atenção de todos.

Lá chegando, já encontrou uma multidão que ultrapassava a três centenas de pessoas, mas de cem deles afamados vaqueiros determinados a capturar o boi fujão. A empolgação já era grande naquele instante porque a noticia de que o animal fora visto em determinado local se espalhara como um rastilho de pólvora. Naquele instante, os vaqueiros já se dirigiam ao local indicado, cada um deles na expectativa de aprisionar o animal fujão e ganhar o laurel de maior vaqueiro da região. O pessoal que acompanhava atentamente o movimento postou-se em um beco, entre duas cercas, e ficou à espera que, finalmente, o boizinho aparecesse conduzido por algum dos inúmeros vaqueiros que seguiram em seu encalço. 

Daí a alguns minutos, alguém gritou para avisar que o boi vinha vindo. Causou o maior frisson quando bicho surgiu na entrada do beco, em disparada, livre e com um grande grupo de vaqueiros em seu encalço. O descendente do coronel, que havia levado um filho pequeno, além da câmera para a filmagem do grande momento, quando viu que os populares corriam assustados e procuravam a saída do beco, tentou proteger o menino e também partiu em desabalada carreira. Seu propósito era se abrigar no seu carro que ficara estacionado à sombra de uma árvore. Mal teve tempo de se servir da proteção do tronco de outra árvore que encontrou pelo caminho. Safou-se por pouco de ser atropelado pelo novilho. A câmera deixou registrada a cena da sua fuga, e não o boi fugitivo.

Depois disto, o boi sumiu em meio à vegetação e não mais foi encontrado. Decepção geral. Horas depois do acontecimento, a vaqueirama já se mostrava derrotada mais uma vez, trazia o semblante decaído e um enorme sentimento de frustração invadia a alma de cada um deles. Foi quando se destacou do grupo um homenzinho, a pé, descalço, pés largos e acostumados a palmilhar o solo quente da região e enfrentar os espinhos que infestam o carrascal, seguiu sozinho no rastro do animal. Levava com ele apenas uma velha corda de laçar atada ao ombro. Quem o visse naquela pisada ligeira, jamais apostaria no sucesso da sua procura, uma vez que os vaqueiros mais experimentados que havia por ali haviam falhado bisonhamente.

Outro filho do Coronel Jesuíno, responsável pela operação de captura do boi, já se preparava para ir embora, quando lhe chegou a notícia de que o boi havia sido encontrado pelo homenzinho descalço, e provavelmente capturado. Surpresa geral. Quem já estava indo embora, voltou atrás e ficou à espera do tal boi fujão. Não demorou muito e lá vinha o boi mansamente conduzido pelo homem do laço. A pé, vinha seguido por grande séquito, homens vestidos de couro e montados em seus cavalos de campo. Ninguém acreditava que aquilo estivesse acontecendo. O animal escorregadio e que todos acreditavam ser uma entidade espiritual, que há dias vinha fugindo dos melhores e mais renomados vaqueiros, vinha agora manso e cordato pela estrada, conduzido por aquele pequeno homem sem cavalo e sem fama de grande vaqueiro. 

Em Piracuruca, quando o Coronel Jesuíno Sousa tomou conhecimento que o boi havia sido, finalmente, capturado, enviou ordem expressa para que ninguém tocasse naquele animal. Justo, como sempre fora, afirmou que o boizinho havia lutado bravamente, e por isso, ganhara a sua liberdade definitiva. Mas a ordem, para seu desgosto, chegou tarde. Com receio de que aquele animal fujão escapasse novamente, seu filho havia determinado a sua execução e a carne fora encaminhada ao açougue para ser comercializada. Triste fim para o boizinho que havia prendido a atenção do povo de toda uma região por muitos dias, com a sua fama de aparição.

Esta é apenas uma das histórias que cercam a vida do Coronel da Piracuruca, Jesuíno Sousa. Homem correto e despido de luxos que criou numerosa família que hoje se acha espalhada por este vasto país.
Se vivo estivesse, hoje estaria festejando o seu 117º aniversário de nascimento!

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

DIDI

Didi e sua mãos calejadas


Elmar Carvalho(*)

Quando eu voltava ao meio dia e meia para casa, vi o Didi a trabalhar na casa de um dos meus vizinhos. Estava literalmente com as mãos na massa, razão pela qual elas estavam sujas de argamassa. Enquanto o Didi trabalhava, meu vizinho enxugava uma cerveja estupidamente gelada, a olhar o trabalho.

Parei o carro, para cumprimentá-los. Fiz menção de pegar na mão do Didi, mas ele negaceou, dizendo que suas mãos estavam sujas. Respondi que elas estavam sujas para ele próprio, mas para mim estavam mais limpas do que as de certos engravatados, mais limpas do que os colarinhos de certos políticos, sobretudo do Distrito Federal.

Conheço-o faz vinte e cinco anos, desde que vim morar no conjunto Memorare, onde resido até hoje, onde eu e minha mulher criamos nossos dois filhos. Ele ganha a vida prestando pequenos serviços aos moradores, sempre respeitador e bem-humorado, sem nunca se queixar, sem nunca se maldizer.

Conquistou a estima e a amizade de todos. Às vezes, amanhecia sem um centavo no bolso, mas nunca demonstrava preocupação, e tudo acabava dando certo para ele. Didi sempre me faz lembrar as palavras de Cristo, quando falava que as aves não têm celeiro, mas nunca lhes falta o que comer; que os lírios do campo não fiam e não tecem, mas que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestia como um deles.

Didi é mais milionário do que muitos arqui-milionários porque pouco possui, mas o que tem lhe é o bastante, e nasceu desprovido da ganância e da ambição. Portanto, tem o reino do céu, aqui mesmo na terra. Sem dúvida, é um bem-aventurado.

(*) Elmar Carvalho é juiz aposentado, poeta e membro da Academia Piauiense de Letras.