Antônio Galinha
José Pedro Araújo(*)
Cinco da matina. Nem um minuto a mais. A cidade ainda na semi-escuridão acordava com um barulho ensurdecedor de buzina. Melhor dizendo, barulho de buzinas. A que escandalizava o pessoal era do tipo movida por ar comprimido e possuía quatro cornetas. Fazia um barulhão antipático e ensurdecedor. Quem se preparava para viajar, apressava os últimos preparativos e rumava para a Praça da Bomba, pois sabia que o velho Galinha não admitia atrasos. Os outros moradores da região, também retirados do sono profundo pelo ruidoso conjunto de gaitas, viravam-se de lado em busca novamente do sono. Precisavam aproveitar os últimos minutos que ainda lhes restava da noite para descansar da pesada luta diária. Uns poucos resmungos, mas ninguém se importava de fato. Era o velho Antônio Galinha quem acordava meia cidade para alertar que o velho Chevrolet Misto partiria daí a instantes com destino a Teresina, no Piauí. Faço aqui uma interrupção para dizer - para os mais novos - que Misto era um tipo de transporte que possuía meia cabine para os passageiros e o restante era ocupado pela carroceria aberta de caminhão para transportar a bagagem.
O motorista, Antônio Galinha, era um piauiense bem humorado, baixo no tamanho, barriga estufada e barba sempre por fazer. E tinha como marca registrada a camisa sempre aberta a mostrar um peito cabeludo e já com muitos fios brancos. O homem era um ás no volante e era respeitado pelos nossos conterrâneos também por isto. Nos muitos anos que atendeu à comunidade nunca provocou um acidente que viesse a, pelos menos, provocar machucaduras nos seus passageiros, e isso num tempo em que as estradas era de piçarra e cheia de crateras.
O Misto partia de Presidente Dutra às cinco da manhã, como já afirmei acima, e chegava em Teresina lá para o final da tarde, quando não quebrava pela estrada. Aí, só Deus sabia dizer quando os passageiros colocariam os pés na capital do Piauí. Para quem se admira com o tempo gasto, basta dizer que no passado essa viagem levava mais de um dia, e isso já na boleia ou carroceria de um caminhões. Naquele tempo, a estrada era praticamente um caminho para carro de boi. Agora não. Transitávamos por via piçarrada e num transporte apropriado para carregar passageiros. Não mais em cima de caminhões sujeitos às intempéries e poeira. Bem, a poeira ainda se mantinha como um problema. Mas os bancos de madeira já possuíam acolchoamento de plástico. Um luxo e um progresso em relação aos velhos e duros bancos de madeira.
Foi com o Galinha que eu fiz a minha primeira viagem interestadual. Corria o mês de janeiro do ano de 1966 e o passeio para o Piauí eu ganhei por ter sido aprovado no primeiro ano do ginásio. Foi um deslumbramento, apesar de o ônibus ter quebrado mais de uma vez. E o último prego foi definitivo, o Misto não conseguiu mais prosseguir, apesar dos esforços do velho motorista. Tivemos que fazer uma baldeação, e o restante da viagem se deu em outro carro que nos socorreu. Mas pude me deliciar com as luzes da cidade já acesas. Foi outro deleite atravessar o Rio Parnaíba e ver as lâmpadas reluzindo, refletidas nas águas escuras do velho monge. Mas isso já é outra história.
O velho Misto do Galinha ainda transportou os passageiros do Curador por muitos anos, até ser confrontado com o futuro. Foi superado pelos novos modelos de ônibus, os tais expressos com suas carrocerias de metal e poltronas individuais acolchoadas. Acima temos uma foto de um Misto para ilustrar os modernos tempos que vivíamos. Encerro a presente crônica com um esclarecimento: o proprietário e motorista do Misto não tinha o menor complexo pelo nome estranho. Até mandou desenhar figuras de galinhas nas laterais da carroceria!
Texto publicado em 15/010/2015).
(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.