quarta-feira, 24 de abril de 2024

O VELHO LEÃO DO CURADOR CALOU A SUA VOZ

Imagem do Facebook de Orfileno Bezerra

 

José Pedro Araújo (*)

Quando criança no meu velho Curador dos anos sessenta, chegou uma família para residir próximo à minha casa, quase defronte. O chefe dela era um cidadão afável, voz forte e alegre, que logo contagiou a todos os vizinhos, com o seu jeito amigável e feliz. Vinha ele conduzindo uma família que ainda não era tão grande, mas já trazia a tiracolo pelo menos três filhos. E pelo que eu trago na memória, o mais velho logo entrou para o rol dos meus amigos mais próximos, e tinha aproximadamente a minha idade. Passei a lhe chamar de compadre Valdemir. Atrás dele tinha uma garota de gênio forte, que logo fez amizade com a minha irmã, e era conhecida pelo apelido de Neném. A Neném era bem disposta, daquele tipo que não levava desaforo para casa. Mas, no fundo, por baixo da casca meio grossa, era uma pessoa adorável e que gostava de fazer favores para aqueles que privavam da sua amizade. Depois vinha um garotinho ativo e buliçoso, que por isso deve ter angariado o apelido pelo qual era conhecido, e que foi posto pelo seu próprio pai: Capote. Capote era daquele tipo que topava todo tipo de brincadeira e se enturmava até no meio dos garotos mais velhos, tão desabrida era a sua vontade se enturmar.  Depois a família foi crescendo rapidamente. Eu frequentava a casa deles diariamente, mas a imagem que eu carrego da dona de casa era a de uma mulher sempre esperando um bebê. A outra imagem, era ela já de resguardo, como chamamos na minha terra, descansando do trabalho tido para colocar mais um filho na estatística de nascimentos da cidade. E lembro disso porque D. Jó não se negava a tomar providência quando algum dos filhos cometia algum desatino. Deitada mesmo como estava, ela pedia ao faltoso que lhe entregasse um cipó que ela mantinha por perto, e aquinhoava o infeliz com algumas boas cipoadas. O cidadão pagava pelo seu erro ali mesmo, sem precisar que ela se levantasse da cama. Era durona, mas agradabilíssima conosco.

Preciso voltar para tratar do chefe daquela família tão agradável e animada. Ele era conhecido pelo nome de Leão do Norte, um nome que para aquelas pessoas que se derem ao trabalho de ler essa crônica, e que não o conheceram, vão achar que seu codinome era esse em razão de ser ele uma homem valente. E acertarão em cheio. Só que o Leão, assim como o rei dos animais, não demonstrava ser feroz, pelo simples fato de não precisar. E assim ele se comportava como um leão amigo, tratável, respeitador e muito dedicado ao trabalho, e não precisava mostrar a sua valentia para ninguém para ser respeitado. Entretanto, em algumas situações, ele mostrou toda a sua ferocidade e desassombro. Leão do Norte era uma designação de Cícero Rodrigues da Silva, cujo nome de batismo só vim a saber anos depois, quando ele procurou o meu pai para fazer anualmente as suas declarações de rendimento para apresentar ao outro leão, o da Receita Federal, e eu era o datilógrafo que fazia a conclusão do trabalho. “Seu Leão”, quando o conheci, trabalhava com a vendagem de ouro e relógios, profissão que exerceu por longos e longos anos, viajando pelo interior do Maranhão, Goiás (Tocantins) e Pará. Essas viagens eram constantes e duravam muitos dias, mas quando ele voltava para casa, tomos sabíamos de pronto. Primeiro porque o seu Jeep ficava estacionado na porta de casa. Depois, porque ele aproveitava para demonstrar toda a alegria que sentia quando retornava para o seio da sua família, e logo que a noite chegava, instalava na porta da casa a sua vitrola à pilha e colocava um disco de Luís Gonzaga para rodar, enquanto ele bebericava uma cerveja estupidamente gelada e aproveitava a fresca aragem que varria a rua Grande. Instalado em uma cadeira espreguiçadeira ele ia recebendo os amigos e logo a calçada estava tomada de gente. O vozeirão do velho Luís Gonzaga quase ficava soterrado pela voz animada do Leão e de seus amigos. E se fosse época de festas juninas, a fogueira mandada formar por ele era um das mais impressionantes da rua grande, onde morava. Naquela época, não existia luz elétrica na cidade, mas na porta do Leão do Norte a claridade imperava.

Só vou contar aqui uma das histórias em que o Homem-Leão precisou mostrar a sua ferocidade e destemor. Certa vez, voltando de uma de suas demoradas viagens para o sul do Maranhão e adjacências, chegou em casa quando já era noite. Cansado pelo longo sacolejar nas estradas de chão, chegou em casa e logo se preparou para dormir. Nem teve o cuidado de colocar as joias e o dinheiro que trazia com ele no cofre que possuía. Colocou a pasta com as joias, daquele tipo de couro que era muito usada pelos ourives ou joalheiros, estilo 007, que anos depois ficou muito na moda, e todo homem de respeito possuía uma para empreender suas viagens. Pois bem, “Seu Leão” colocou a pasta sobre uma cadeira no seu quarto, ao lado da cama, e sobre ela o revolver e alguns maços de dinheiro. Um certo indivíduo que vinha seguindo o comerciante desde muito tempo, só esperando a hora certa para atacar e fazer a sua presepada, pois sabia que tinha que agir com cuidado, penetrou na casa pelo quintal, logo que todos já estavam dormindo, e com a ajuda do pisca-pisca de uma lanterna pequena chegou ao quarto do casal e encontrou a pasta com as joias, o revolver e alguns maços de dinheiro, além de um pequeno saco de tecido que se achava junto à cadeira, e que continha uma boa quantidade de joias e relógios; pegou tudo e saiu sorrateiramente, fugiu. Ao acordar, o homem deu pela falta das coisas que foram surrupiadas e, experiente como era, tratou logo de ver como o ladrão havia entrado na sua casa. Depois seguiu os passos dele pelo quintal, e em determinado local em que ele havia parado para verificar o conteúdo do saco de pano, deixou cair um cordão de outro e alguns brincos. Seu Leão não teve mas dúvidas, dia amanhecendo ainda ele procurou a polícia e acompanhado de dois polícias saíram pela rua a procura de pista do foragido. 

Como a sua morada ficava bem próximo da entrada leste da cidade, ele intuiu que o indivíduo deveria ter fugido por ali, tomando a direção da cidade de D. Pedro. Logo encontrou uma pessoa conhecida que vinha da sua propriedade para a cidade, e lhe disse ter visto um sujeito bem apessoado, vestindo roupas relativamente boas, e deu outras características que logo despertaram a atenção do amigo. Ao ouvir isto, ele lembrou ter encontrado alguém com essas mesmas características em Grajaú, e depois em Barra do Corda, cidades que haviam passado por último antes de voltar para casa. E que o sujeito até havia encostado perto dele para lhe fazer algumas perguntas que ele respondeu descuidadamente, e por isto não havia desconfiado de nada.   

O sujeito que praticou o furto ainda pensou em esperar por algum transporte nas agências de ônibus que ficavam perto da casa, mas logo desistiu do seu intento quando observou o movimento na residência em que havia entrado para roubar, e colocou o pé na estada com destino a D. Pedro. Talvez pensasse em esperar por uma condução mais à frente. Mas, o fato de ser um estranho na cidade, e de se trajar até certo ponto decentemente, chamava a atenção de muita gente que ia encontrando com ele pela estrada. E não foi difícil para o Leão e os dois policiais o seguirem, sempre indagando às pessoas que ia encontrando pelo caminho e obtendo informações sobre a sua passagens. Enquanto o indivíduo ia a pé, “Seu Leão” ia no Jeep, e logo a menos de vinte quilômetros da cidade, avistaram o ladrão que ia em passo acelerado. Mas o meliante também viu o Jeep e logo reconheceu o seu dono, caindo no mato, fugiu em meio a um babaçual bem fechado. E então foi difícil encontrar uma pista do sujeito que parecia perito nesse tipo de fuga e logo conseguiu se distanciar de seus perseguidores. 

Os dois policiais mais atrapalhavam do que ajudavam, atrasando a perseguição e demonstrando não quererem se confrontar com o indivíduo que sabiam estar armado. E assim, o sujeito conseguiu se safar momentaneamente e ganhou distância. Já estava no meio da tarde quando “Seu Leão” conseguiu uma pista nova de que o sujeito havia parado para pedir água em uma determinada casa na margem de uma estrada rural. Ele então se apressou e logo avistou o fugitivo que ia já se afastando. E como ia sempre olhando para trás, o crápula viu que o seu perseguidor o havia encontrado novamente e cuidou de entrar no mato mais uma vez. Diga-se de passagem que o Leão do Norte estava a pé desde que tivera que abandonar o carro quando o sujeito os avistou ainda na rodovia e se embrenhou no mato. Mas desta vez ele chegou mais perto porque o indivíduo teve dificuldades para pular uma cerca de arame farpado e ele conseguiu chegar bem próximo dele e deu-lhe voz de prisão, no que o sujeito logo encontrou um jeito e pulou a cerca, fugindo pelo mato adentro. Seu perseguidor disparou alguns tiros na sua direção e ele revidou do jeito que podia. Os dois policiais haviam ficado para nessa ocasião, e “Seu Leão” teve que se encarregar da ação sozinho. Pulou a cerca e correu atrás do sujeito novamente e nesse momento iam trocando tiros até que seu Leão, ao pular por sobre um buraco, caiu dentro dele e sua arma lhe escapou da mão. O ladrão viu o que aconteceu e voltou um pouco atrás disparando a arma mas não se aproximou muito, preferindo depois continuar com a fuga. 

“Seu Leão” criou novas forças e voltou a correr atrás do sujeito, e o encontrou logo depois atrapalhado tentando pular outra cerca, sem conseguir. E quando recebeu nova voz de prisão, o indivíduo levantou os braços e se entregou. Estava com a arma descarregada.

Esta história me foi confirmada pelo autor dela, Leão do Norte, quando eu o encontrei pela última vez, anos atrás. Eu já tinha ouvido do meu pai essa versão, do mesmo modo que ele me contou. Nesse dia ele me disse que entregou o ladrão para os policiais depois de um bom tempo em que voltava para apanhar o seu Jeep, e os encontrou pelo caminho. Como bom Leão que era, não utilizou a ocasião para se vingar do ladrão.Entregou-o só com alguns hematomas.

E eu então, curioso para saber qual a razão do epíteto Leão do Norte, pelo qual ele era conhecido, aproveitei a ocasião para confirmar o que eu já sabia. Ele me contou que certa vez vendia joias em uma cidade de Goiás quando teve que dar uns safanões em um indivíduo que estava agredindo um padre, e que o religioso ficou tão seu amigo que todas as vezes que ele passava pela cidade se hospedava com ele. foi esse padre quem lhe colocou o apelido que espalhou por todos os lugares por onde ele passava. E ele gostou, achou uma ótima propaganda. 

Esse homem, nascido na cidade de Santa Filomena, no estado de Pernambuco, no dia 08/05/1932, ontem nos deixou para fazer a sua última viagem, desta vez rumo ao Além, lugar para onde todos nós iremos um dia. Mas deixa atrás de si uma fileira imensa de amigos e admiradores que hoje estão muito entristecidos com a sua partida. Mas, sabedores de que este Leão tem lugar seguro na eternidade, local para onde só vão os mansos de espírito e bondosos de alma, consolam-se. 

Que Deus o receba no seu reino de Glórias, Leão do Curador!  

(*) José Pedro Araújo é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.