José Pedro Araújo (*)
O biotipo do homem era o de um índio. Sobre a cabeça, cabelos
pretos e longos, barba ralíssima num rosto queimado pelo sol causticante que
cobria o sertão central do Maranhão em seus verões abrasadores. Chegou, olhou
e... ficou. Do rosto inquieto e amarelado saltava uns olhos amendoados e
curiosos que buscavam um lugar ideal, um cantinho onde pudesse erguer o seu
barraco. E rapidamente se decidiu por uma pequena elevação do terreno, a coisa
de quinze, vinte metros da água. Material para erguer a sua oca, não era
problema ali. Perto abundavam espécies nobres de madeira, prontas para o uso.
Era só amolar o machado e começar a luta para ver a árvore portentosa caída ao
chão. Aqui uma aroeira madura, quase no fim da vida vegetativa, apresentava-se
pronta para ser a forquilha central – aquela que recebe o peso da moradia e
garante a sua segurança. A forquilha de canto, também achou a poucos metros
dali, mesmo local de onde arrastou um caule vistoso e longilíneo para servir de
cumeeira.
Cavou alguns buracos no terreno macio e fresco, ergueu e
fincou as forquilhas, colocou os frechais nos encaixes, e começou a trabalhar
para, na parte superior, colocar a peça de madeira que receberia o peso dos
caibros, a cumeeira. Pronto. Estava armada a estrutura que receberia as palhas
de babaçu que completaria o teto da primeira residência erguida no local que
logo passaria a ser conhecido como Curador.
Depois, o primeiro morador passou à tarefa de soerguer as
paredes, de palha também, para evitar que algum animal peçonhento ou selvagem
atacasse o construtor na calada da madrugada enquanto dormia. Próximo
dali, uma lagoa piscosa mantinha-se placidamente aquecida pelos raios
dardejantes do sol de estio. Ela também oferecia comida abundante ao visitante,
para completar a dieta suprida por algumas caças silvestres que vinham saciar a
sede nas suas águas dadivosas. Possuía, assim, o recém-chegado, garantia de
segurança alimentar permanente naquele lugar intocado e preservado da ação de
humanos, além da água para suprir todas as suas necessidades.
Deve ter acontecido assim, na sequência: aproveitando-se da
terra dadivosa e do que a natureza oferecia para a construção da sua choupana,
cuidou o nosso primeiro habitante de se preparar para o futuro, para os dias de
completo isolamento e solidão. Não se sabe quanto tempo demorou até aparecerem
outros moradores.
Quem era esse sujeito? De onde veio? Demorou-se muito por
aqui ou a sua morada foi efêmera? O certo é que se tratava de um Curandeiro.
Era o tal José Curador, líder de uma das maiores aldeias Guajajara? Para esta
pergunta ainda não encontramos resposta exata. De certo mesmo só sabemos que
ele partiu em busca de outras plagas, quando o homem branco começou a habitar a
região. Foi-se à procura do desconhecido sem deixar endereço. Se a identidade
do primeiro morador, o tal Curador, é ainda um tanto nebulosa e cheia de
indagações sem respostas, o nome da segunda pessoa que estabeleceu morada na
região é agora bem conhecido. Tratava-se do Coronel Diogo Lopes de Araújo
Salles, um cearense que estabeleceu a sede de uma das suas fazendas no lugar
Santa Maria, hoje um subúrbio da cidade. Por conta disso, poderíamos até lhe
prestar justa homenagem, afixando uma placa em alguma esquina com o seu nome,
pelo menos.
Temos também a certeza de que ele lançou mão da madeira farta
e das palmas luxuriantes das palmeiras de babaçu aqui existente para se abrigar
do tempo e dos bichos que infestavam a região. A sua história, é bastante
conhecida também, uma vez que se tratava de um homem poderoso e que se
estabeleceu em definitivo na sede da região, em Barra do Corda. Dos que vieram
com ele, um sobrinho deixou parentes entre nós, os Carvalhêdo. Confesso que tinha
uma imensa curiosidade de saber quem eram esses pioneiros e, quando me deparei
com a identidade deles, foi como se tivesse ganho um presente que há muito eu
almejava, tal foi a alegria que tomou conta de mim.
O segundo, o terceiro,
o quarto morador, foram chegando, se fixando na região e a localidade passou a tomar
a forma de um pequeno povoado. E estes cuidaram também de abrir caminhos de
ligação para os maiores centros urbanos da região à custa de muito esforço para
romper a mata fechada. Depois disto, mais pessoas passaram pelo povoado, e
muitos foram logo aproveitando as terras livres e desimpedidas para situarem
pequenas fazendolas e criar um gadinho. As clareiras começaram a ser abertas na
mata imponente para dar lugar ao plantio do milho, da mandioca e do feijão, que
logo receberia a companhia de outro cereal que, em pouco tempo, estaria
presente em todas as mesas: o arroz.
Quem eram essas pessoas, aos poucos a história vai se
revelando, e de onde vieram, pelos menos a sua maioria, isso nós sabemos também:
eram quase todos nordestinos tangidos pela calamidade da seca que,
ciclicamente, se abate sobre fração considerável desta terra de contrastes.
Eram, especialmente, cearenses e piauienses, os dois estados mais próximos.
Outra certeza é que traziam consigo poucos pertences e nenhuma riqueza. Ao
invés disso, traziam consigo uma vontade férrea de assentar moradia e amealhar
riqueza na ubérrima região do Japão maranhense. E traziam ainda outra certeza: a
de que nunca mais padeceriam da falta de chuvas, da seca que destruía tudo o
que conseguiam semeavam com grandes sacrifícios.
De outro modo, não teriam que replantar por tantas vezes a
semente do legume que enterravam no solo, e que depois se multiplicava e
enchiam os paióis até o teto. Outra certeza que temos, é que de que a ocupação
da região que logo ficaria conhecida como Curador, deu-se após a abertura de
uma picada na mata, e que recebeu o nome de estrada, a partir da cidade de
Caxias até a vila de Barra do Corda. Isso teve início em 1858, e foi por ela
que uma leva de retirantes que se encontrava perambulando pelas ruas de Caxias conseguiu
chegar à região.
E logo ao chegar e se estabelecerem, tiveram a certeza de que
o que plantassem, colhiam, e que o gado que aqui situassem não mais morreria de
sede, nem suas montarias minguariam até não poderem mais carregar nada sobre
si, nem mesmo o seu próprio peso. Haviam encontrado o seu oásis pleno de
oportunidades nas terras dadivosas deste sertão central do Maranhão, e desse local
nunca mais arredariam pé.
O local também virou ponto de passagem. O caminho que partia
de Barra do Corda para Caxias ganhou um novo traçado, e agora as distâncias estavam
mais reduzidas. Já não era mais preciso ir acompanhando o leito sinuoso do rio
Mearim, que dificultava sobremodo a viagem quando o vinha o período das grandes
chuvas que inundava tudo, impedindo a passagem das pessoas por longos e longos dias.
O caminho agora era feito pela espinha dorsal do estado, reto e sempre em
frente. Sabiam também os viajantes que logo a frente encontrariam guarida no
novo povoado que se formava entre a lagoa do Curador, o riacho Firmino e o rio
Preguiça. Os grandes estirões que duravam dias a fio, agora contava com aquela
comunidade que aumentava a olhos vistos, à medida que o tempo passava. Já era até
possível ver que uma ruazinha tortuosa subia serpenteante rumo ao topo de uma
elevação que distava cerca de mil metros da margem da lagoa. E que lá no alto, alguém
logo se propôs a construir uma rudimentar capela em intenção a São Bento,
decisão tomada no sentido de buscarem proteção contra a presença das numerosas
serpentes que infestavam a região.
Sobre o cume daquele monte, passou-se a construir algumas
habitações também. O povoado ganhava jeito de vila, corpo de vila. Pobre, é
verdade, mas sempre receptivo e acolhedor, um ponto de apoio para a grande
travessia entre os dois arruados mais conhecidos.
Quando d. Zezé (Maria José Nunes Barros) veio acompanhar os
pais que já estavam com uma fazendinha instalada nas margens da Lagoa de Pedra,
assombrou-se com a pobreza do lugar: apenas vinte e sete pobres casebres de
palha ocupavam a ruazinha que nascia com extensos quintais protegidos por
cercas de faxina! Os olhos da menina de onze anos fitavam indagativos a viela
que se formava e que passou a se chamar Rua Grande e, depois, muito depois,
Magalhães de Almeida. E ela foi testemunha ocular do seu desenvolvimento.
Vi muitas vezes o semblante da octogenária senhora se encher
de saudade quando relatava tal passagem da vida da nossa querida comunidade.
Ela acompanhou por longos noventa anos o esforço do povo para fazer crescer a
pequena vila até atingir a sua maioridade. E foi também privilegiada
espectadora quando ela foi alçada a condição de cidade sede. Foi também
testemunha quando a primeira bodega abriu suas portas. Encantou-se com a
construção da primeira casa de tijolos, e sua cobertura de telhas, no largo que
mais tarde homenagearia o santo guerreiro, São Sebastião.
Assim, passaram-se os dias, chegaram novas famílias – sempre
enviadas pela seca que castigava o nordeste central – e estas traziam consigo
novidades dos centros mais desenvolvidos. De Pastos Bons e Barra do Corda
também vieram muitas pessoas, atraídas pela qualidade das terras do Japão. Essa
mistura de raças deu causa à formação dos troncos familiares do Curador. Somos
o resultado dessa miscigenação profícua: branco com negro, negro com índio,
índio com branco. Puro caldeamento. Esses, somos nós.
(Texto publicado anteriormente em 10/01/2015. Ampliado e
corrigido). (*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.
|