sábado, 16 de novembro de 2024

Antônio Galinha



Antônio Galinha

José Pedro Araújo(*)


Cinco da matina. Nem um minuto a mais. A cidade ainda na semi-escuridão acordava com um barulho ensurdecedor de buzina. Melhor dizendo, barulho de buzinas. A que escandalizava o pessoal era do tipo movida por ar comprimido e possuía quatro cornetas. Fazia um barulhão antipático e ensurdecedor. Quem se preparava para viajar, apressava os últimos preparativos e rumava para a Praça da Bomba, pois sabia que o velho Galinha não admitia atrasos. Os outros moradores da região, também retirados do sono profundo pelo ruidoso conjunto de gaitas, viravam-se de lado em busca novamente do sono. Precisavam aproveitar os últimos minutos que ainda lhes restava da noite para descansar da pesada luta diária. Uns poucos resmungos, mas ninguém se importava de fato. Era o velho Antônio Galinha quem acordava meia cidade para alertar que o velho Chevrolet Misto partiria daí a instantes com destino a Teresina, no Piauí. Faço aqui uma interrupção para dizer - para os mais novos - que Misto era um tipo de transporte que possuía meia cabine para os passageiros e o restante era ocupado pela carroceria aberta de caminhão para transportar a bagagem. 

O motorista, Antônio Galinha, era um piauiense bem humorado, baixo no tamanho, barriga estufada e barba sempre por fazer. E tinha como marca registrada a camisa sempre aberta a mostrar um peito cabeludo e já com muitos fios brancos. O homem era um ás no volante e era respeitado pelos nossos conterrâneos também por isto. Nos muitos anos que atendeu à comunidade nunca provocou um acidente que viesse a, pelos menos, provocar machucaduras nos seus passageiros, e isso num tempo em que as estradas era de piçarra e cheia de crateras.

O Misto partia de Presidente Dutra às cinco da manhã, como já afirmei acima, e chegava em Teresina lá para o final da tarde, quando não quebrava pela estrada. Aí, só Deus sabia dizer quando os passageiros colocariam os pés na capital do Piauí. Para quem se admira com o tempo gasto, basta dizer que no passado essa viagem levava mais de um dia, e isso já na boleia ou carroceria de um caminhões. Naquele tempo, a estrada era praticamente um caminho para carro de boi. Agora não. Transitávamos por via piçarrada e num transporte apropriado para carregar passageiros. Não mais em cima de caminhões sujeitos às intempéries e poeira. Bem, a poeira ainda se mantinha como um problema. Mas os bancos de madeira já possuíam acolchoamento de plástico. Um luxo e um progresso em relação aos velhos e duros bancos de madeira. 

Foi com o Galinha que eu fiz a minha primeira viagem interestadual. Corria o mês de janeiro do ano de 1966 e o passeio para o Piauí eu ganhei por ter sido aprovado no primeiro ano do ginásio. Foi um deslumbramento, apesar de o ônibus ter quebrado mais de uma vez. E o último prego foi definitivo, o Misto não conseguiu mais prosseguir, apesar dos esforços do velho motorista. Tivemos que fazer uma baldeação, e o restante da viagem se deu em outro carro que nos socorreu. Mas pude me deliciar com as luzes da cidade já acesas. Foi outro deleite atravessar o Rio Parnaíba e ver as lâmpadas reluzindo, refletidas nas águas escuras do velho monge. Mas isso já é outra história.

O velho Misto do Galinha ainda transportou os passageiros do Curador por muitos anos, até ser confrontado com o futuro. Foi superado pelos novos modelos de ônibus, os tais expressos com suas carrocerias de metal e poltronas individuais acolchoadas. Acima temos uma foto de um Misto para ilustrar os modernos tempos que vivíamos. Encerro a presente crônica com um esclarecimento: o proprietário e motorista do Misto não tinha o menor complexo pelo nome estranho. Até mandou desenhar figuras de galinhas nas laterais da carroceria!

Texto publicado em 15/010/2015).

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.




segunda-feira, 28 de outubro de 2024

O MEU PRIMEIRO ENCONTRO COM OS BEATLES

Imagem recolhida do Google

José Pedro Araújo (*)

 

Antes de me alongar, preciso fazer aqui uma ressalva: já havia me encontrado com os Beatles anos antes. Contudo, não sabia que se tratava deles, no que pese a fama estratosférica dos Quatro Jovens de Liverpool. E esse primeiro contato incógnito se deu quando ouvi pela primeira vez a música And I Love Her, no final do ano de 1.965, pelas ondas da rádio Timbira do Maranhão. Nesse tempo, passava eu as minhas tardes tomando conta da loja do meu pai situada na Rua Grande, mesmo sem saber responder nada sobre os preços dos artigos à venda. A loja comercializava tecidos, perfumaria, cintos, peças de plásticos, chapéus finos, entre outros produtos. E meu pai, para poder discutir preços com a clientela, apreçava os artigos com dois códigos com letras do alfabeto. O primeiro trazia o valor de custo do produto, enquanto o segundo identificava o valor mínimo que a mercadoria poderia ser vendida. Eu, criança ainda, desconhecia a forma de conversão das letras em números, razão pela qual, sempre que aparecia algum cliente, tinha que chamar por meu pai ou pela minha mãe para atendê-lo.

A minha função, portanto, era apenas a de vigiar a loja nas horas mortas da tarde, quando a clientela permanecia em suas casas curtindo a sesta e protegendo-se da canícula impiedosa da tarde. Nessas horas, ficava eu de sentinela, enquanto meus pais também tiravam o seu rápido cochilo em redes brancas e perfumadas. Irrequieto como toda criança, eu sentia que aquilo era uma forma disfarçada de me castigar pelas estripulias que costumava realizar. Assim, insatisfeito com o “aprisionamento”, resolvi que precisava fazer alguma coisa para matar o tempo e superar a insatisfação de ver os meus colegas irem para o jogo de futebol na Praça Diogo Soares ou tomar banho no riacho Firmino. Tinham tolhido o meu tempo, acreditava. Hoje, diria que o motivo adotado pelos meus pais era muito justo.

Voltando ao assunto do título acima. Para aqueles que se surpreendem com o fato de somente ter tomado conhecimento da existência da mais famosa banda do mundo já próximo da sua extinção, justifico dizendo que naquela época a televisão ainda não havia chegado até nós, e que as revistas de variedades chegavam na cidade com um preço muito alto. Não dava para mim. Assim, o rádio era o principal veículo de comunicação que nos chegava, trazendo notícias e tocando as músicas de sucesso que ocupavam os primeiros lugares nas paradas.  E eu não me incomodava muito com o que os falavam, queria era ouvir a música que tocava logo depois.

Havia até encontrado uma maneira de superar o tempo que se arrastava com cansada lentidão: ouvir música em um velho rádio portátil que o meu genitor mantinha encostado em um canto por estar sem serventia. Tive que improvisar uma antena para ele com algumas cordas de aço para violão, que também comercializávamos na nossa loja. Havia identificado que o rádio até ligava, mas o aparelho só emitia um chiado confuso, não se ouvia nada mais.

Trabalho feito, observei que o problema estava sanado ao ligar novamente o aparelho, pois o som que saiu do receptor era de boa qualidade. Passei a sintonizar algumas emissoras de rádio em diversos Estados, como a rádio Globo do Rio, a Sociedade da Bahia, a Clube de Pernambuco, e a Timbira de São Luís. Até passei a contar com alguns programas em diversas delas. Na rádio Clube de Pernambuco, por exemplo, tinha predileção pelo Programa do Bolinha, que transmitia os maiores sucessos do Hit Parade na época. Enquanto isso, na Timbira ouvia o programa Alegria na Taba, e foi nesta que ouvi pela primeira vez a música And I Love Her. Não fiquei sabendo quem cantava, pois, como já afirmei alguns parágrafos atrás, não me interessava muito pela prosopopeia do locutor, mas achei a música especialmente bela, mesmo sem compreender uma só palavra que eles diziam no idioma de Shakespeare.

Dois anos depois, ocorreu o meu encontro definitivo, que eu considero o primeiro, com a maior e mais badalada banda de música de todos os tempos: The Beatles. Já estudava no Ginásio Presidente Dutra e, certo dia, ao entrar na sala de aula, encontrei alguns colegas travando uma acalorada discussão sobre o nome correto de certa banda de música, cujo rosto dos quatro componentes aparecia na capa de trás de um caderno que os jovens estudantes traziam nas mãos. Nessa época a língua estrangeira ensinada no colégio era o Francês, portanto, não sabíamos nada de Inglês, já vou logo esclarecendo como forma de defesa. Discussão vai, discussão vem, e um dos colegas resolveu pedir a minha opinião sobre a pronúncia correta do nome estampado no alto da capa. Gaguejei qualquer coisa que não me lembro mais, decorridos tantos anos, mas, com certeza, não respondi o que eles queriam, pois a discursão continuou açodada.

O que ficou na minha memória, entretanto, foi o rosto dos quatro rapazes cabeludos e trajando uns terninhos estilosos, com o nome destacado sob cada um: John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Star. Nunca mais esqueci a imagem nem tampouco os nomes daquele grupo e o de seus componentes. Aquele foi, de fato, o nosso primeiro encontro. Os Beatles se transformou em um divisor de águas no meu gosto musical, e até hoje gosto de ouvi-los nos meus momentos de lazer e de relaxamento. Daí achar que a banda não morreu. Nunca se desfez! Daí também achar que os rapazes de Liverpool passaram, em carne e osso, pela minha sala do velho ginásio fundado pelo insigne Dr. José de Ribamar Fiquene, juiz da comarca e fundador e proprietários daquele inesquecível educandário.

(Texto publicado anteriormente em 13/01/2015. Ampliado e corrigido).

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.

 

  


 

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O Curador, a gênese

Imagem de uma vila em formação na região do Japão maranhense

José Pedro Araújo (*)

O biotipo do homem era o de um índio. Sobre a cabeça, cabelos pretos e longos, barba ralíssima num rosto queimado pelo sol causticante que cobria o sertão central do Maranhão em seus verões abrasadores. Chegou, olhou e... ficou. Do rosto inquieto e amarelado saltava uns olhos amendoados e curiosos que buscavam um lugar ideal, um cantinho onde pudesse erguer o seu barraco. E rapidamente se decidiu por uma pequena elevação do terreno, a coisa de quinze, vinte metros da água. Material para erguer a sua oca, não era problema ali. Perto abundavam espécies nobres de madeira, prontas para o uso. Era só amolar o machado e começar a luta para ver a árvore portentosa caída ao chão. Aqui uma aroeira madura, quase no fim da vida vegetativa, apresentava-se pronta para ser a forquilha central – aquela que recebe o peso da moradia e garante a sua segurança. A forquilha de canto, também achou a poucos metros dali, mesmo local de onde arrastou um caule vistoso e longilíneo para servir de cumeeira.

Cavou alguns buracos no terreno macio e fresco, ergueu e fincou as forquilhas, colocou os frechais nos encaixes, e começou a trabalhar para, na parte superior, colocar a peça de madeira que receberia o peso dos caibros, a cumeeira. Pronto. Estava armada a estrutura que receberia as palhas de babaçu que completaria o teto da primeira residência erguida no local que logo passaria a ser conhecido como Curador.

Depois, o primeiro morador passou à tarefa de soerguer as paredes, de palha também, para evitar que algum animal peçonhento ou selvagem atacasse o construtor na calada da madrugada enquanto dormia.  Próximo dali, uma lagoa piscosa mantinha-se placidamente aquecida pelos raios dardejantes do sol de estio. Ela também oferecia comida abundante ao visitante, para completar a dieta suprida por algumas caças silvestres que vinham saciar a sede nas suas águas dadivosas. Possuía, assim, o recém-chegado, garantia de segurança alimentar permanente naquele lugar intocado e preservado da ação de humanos, além da água para suprir todas as suas necessidades.

Deve ter acontecido assim, na sequência: aproveitando-se da terra dadivosa e do que a natureza oferecia para a construção da sua choupana, cuidou o nosso primeiro habitante de se preparar para o futuro, para os dias de completo isolamento e solidão. Não se sabe quanto tempo demorou até aparecerem outros moradores.

Quem era esse sujeito? De onde veio? Demorou-se muito por aqui ou a sua morada foi efêmera? O certo é que se tratava de um Curandeiro. Era o tal José Curador, líder de uma das maiores aldeias Guajajara? Para esta pergunta ainda não encontramos resposta exata. De certo mesmo só sabemos que ele partiu em busca de outras plagas, quando o homem branco começou a habitar a região. Foi-se à procura do desconhecido sem deixar endereço. Se a identidade do primeiro morador, o tal Curador, é ainda um tanto nebulosa e cheia de indagações sem respostas, o nome da segunda pessoa que estabeleceu morada na região é agora bem conhecido. Tratava-se do Coronel Diogo Lopes de Araújo Salles, um cearense que estabeleceu a sede de uma das suas fazendas no lugar Santa Maria, hoje um subúrbio da cidade. Por conta disso, poderíamos até lhe prestar justa homenagem, afixando uma placa em alguma esquina com o seu nome, pelo menos.

Temos também a certeza de que ele lançou mão da madeira farta e das palmas luxuriantes das palmeiras de babaçu aqui existente para se abrigar do tempo e dos bichos que infestavam a região. A sua história, é bastante conhecida também, uma vez que se tratava de um homem poderoso e que se estabeleceu em definitivo na sede da região, em Barra do Corda. Dos que vieram com ele, um sobrinho deixou parentes entre nós, os Carvalhêdo. Confesso que tinha uma imensa curiosidade de saber quem eram esses pioneiros e, quando me deparei com a identidade deles, foi como se tivesse ganho um presente que há muito eu almejava, tal foi a alegria que tomou conta de mim.

 O segundo, o terceiro, o quarto morador, foram chegando, se fixando na região e a localidade passou a tomar a forma de um pequeno povoado. E estes cuidaram também de abrir caminhos de ligação para os maiores centros urbanos da região à custa de muito esforço para romper a mata fechada. Depois disto, mais pessoas passaram pelo povoado, e muitos foram logo aproveitando as terras livres e desimpedidas para situarem pequenas fazendolas e criar um gadinho. As clareiras começaram a ser abertas na mata imponente para dar lugar ao plantio do milho, da mandioca e do feijão, que logo receberia a companhia de outro cereal que, em pouco tempo, estaria presente em todas as mesas: o arroz.

Quem eram essas pessoas, aos poucos a história vai se revelando, e de onde vieram, pelos menos a sua maioria, isso nós sabemos também: eram quase todos nordestinos tangidos pela calamidade da seca que, ciclicamente, se abate sobre fração considerável desta terra de contrastes. Eram, especialmente, cearenses e piauienses, os dois estados mais próximos. Outra certeza é que traziam consigo poucos pertences e nenhuma riqueza. Ao invés disso, traziam consigo uma vontade férrea de assentar moradia e amealhar riqueza na ubérrima região do Japão maranhense. E traziam ainda outra certeza: a de que nunca mais padeceriam da falta de chuvas, da seca que destruía tudo o que conseguiam semeavam com grandes sacrifícios.

De outro modo, não teriam que replantar por tantas vezes a semente do legume que enterravam no solo, e que depois se multiplicava e enchiam os paióis até o teto. Outra certeza que temos, é que de que a ocupação da região que logo ficaria conhecida como Curador, deu-se após a abertura de uma picada na mata, e que recebeu o nome de estrada, a partir da cidade de Caxias até a vila de Barra do Corda. Isso teve início em 1858, e foi por ela que uma leva de retirantes que se encontrava perambulando pelas ruas de Caxias conseguiu chegar à região.

E logo ao chegar e se estabelecerem, tiveram a certeza de que o que plantassem, colhiam, e que o gado que aqui situassem não mais morreria de sede, nem suas montarias minguariam até não poderem mais carregar nada sobre si, nem mesmo o seu próprio peso. Haviam encontrado o seu oásis pleno de oportunidades nas terras dadivosas deste sertão central do Maranhão, e desse local nunca mais arredariam pé.

O local também virou ponto de passagem. O caminho que partia de Barra do Corda para Caxias ganhou um novo traçado, e agora as distâncias estavam mais reduzidas. Já não era mais preciso ir acompanhando o leito sinuoso do rio Mearim, que dificultava sobremodo a viagem quando o vinha o período das grandes chuvas que inundava tudo, impedindo a passagem das pessoas por longos e longos dias. O caminho agora era feito pela espinha dorsal do estado, reto e sempre em frente. Sabiam também os viajantes que logo a frente encontrariam guarida no novo povoado que se formava entre a lagoa do Curador, o riacho Firmino e o rio Preguiça. Os grandes estirões que duravam dias a fio, agora contava com aquela comunidade que aumentava a olhos vistos, à medida que o tempo passava. Já era até possível ver que uma ruazinha tortuosa subia serpenteante rumo ao topo de uma elevação que distava cerca de mil metros da margem da lagoa. E que lá no alto, alguém logo se propôs a construir uma rudimentar capela em intenção a São Bento, decisão tomada no sentido de buscarem proteção contra a presença das numerosas serpentes que infestavam a região.

Sobre o cume daquele monte, passou-se a construir algumas habitações também. O povoado ganhava jeito de vila, corpo de vila. Pobre, é verdade, mas sempre receptivo e acolhedor, um ponto de apoio para a grande travessia entre os dois arruados mais conhecidos.

Quando d. Zezé (Maria José Nunes Barros) veio acompanhar os pais que já estavam com uma fazendinha instalada nas margens da Lagoa de Pedra, assombrou-se com a pobreza do lugar: apenas vinte e sete pobres casebres de palha ocupavam a ruazinha que nascia com extensos quintais protegidos por cercas de faxina! Os olhos da menina de onze anos fitavam indagativos a viela que se formava e que passou a se chamar Rua Grande e, depois, muito depois, Magalhães de Almeida. E ela foi testemunha ocular do seu desenvolvimento.

Vi muitas vezes o semblante da octogenária senhora se encher de saudade quando relatava tal passagem da vida da nossa querida comunidade. Ela acompanhou por longos noventa anos o esforço do povo para fazer crescer a pequena vila até atingir a sua maioridade. E foi também privilegiada espectadora quando ela foi alçada a condição de cidade sede. Foi também testemunha quando a primeira bodega abriu suas portas. Encantou-se com a construção da primeira casa de tijolos, e sua cobertura de telhas, no largo que mais tarde homenagearia o santo guerreiro, São Sebastião.

Assim, passaram-se os dias, chegaram novas famílias – sempre enviadas pela seca que castigava o nordeste central – e estas traziam consigo novidades dos centros mais desenvolvidos. De Pastos Bons e Barra do Corda também vieram muitas pessoas, atraídas pela qualidade das terras do Japão. Essa mistura de raças deu causa à formação dos troncos familiares do Curador. Somos o resultado dessa miscigenação profícua: branco com negro, negro com índio, índio com branco. Puro caldeamento. Esses, somos nós.

(Texto publicado anteriormente em 10/01/2015. Ampliado e corrigido).

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.

 


 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A PAZ AGORA RESIDE NO ARRAIAL

 

Prédio da Prefeitura Municipal de P. Dutra - MA


José Pedro Araújo

Em tempos não muito distantes de nós o título acima não encontraria lugar em um texto qualquer que fosse elaborado após o transcurso de eleições na minha aldeia. Ao contrário, ainda hoje estaríamos chorando pelos nossos entes queridos que haviam sido feridos ou até mesmo tombado durante as disputas eleitorais processadas no velho Curador. Foi por conta disso que ganhamos a pecha de cidade violenta onde as discussões políticas acabavam invariavelmente em tiroteios e, não raro, com mortos a serem pranteados. Poderíamos dizer também, para aliviar um pouco as nossas consciências, que esse mesmo tipo de querela, que não tinha nada de democrática, ocorria em todo o país naqueles anos, e de um modo mais acentuado, em todo o nordeste do país. Em São Luís mesmo, aclamada como sede culta do nosso estado, a decantada Atenas brasileira, os casos de violência corriam solto durante os pleitos eleitorais, culminando, em certa época, com dezenas de casas incendiadas e tiroteios alarmantes no perímetro que envolve o palácio do governo, e levavam semanas. Contudo, para os pasquins partidários que circulavam na capital, nos altos sertões a violência envergonhava o povo maranhense em decorrência dos confrontos sangrentos praticados naquelas plagas.

Pois é. Saímos das eleições ocorridas domingo passado, com um saldo bastante positivo. Nenhum crime de morte foi praticado no velho município. As discussões foram travadas tão somente no âmbito dos discursos inflamados e, diga-se de passagem, com alguns pescoções distribuídos pelos quatro cantos do município, mas sem que o sangue escorresse pela terra. Alguns até podem dizer que pescoções, murros pesados, são desferidos até mesmo em festas de família, e por que não em disputas pelo voto?  É verdade também que muitas futricas, mentiras vergonhosas, e até mesmo conchavos que envergonham a boa política, foram disseminados no período que antecedeu o domingo das eleições. Mas isso maltrata, magoa, e até deixa sequelas profundas nas pessoas atingidas, mas logo será esquecido. Nas próximas eleições, quem magoou, esquecerá; e o magoado, fará de conta que nada de grave ocorreu, pois estarão juntos com o seu agressor, no mesmo palanque. Alguns dirão que isso é normal, desde que foi instalado o pluripartidarismo desbragado, quando dezenas de partidos foram criados e, nesse caso, praticamente ninguém mais ganha eleições sem fazer coligações com outros partidos. Isso nos serve de consolo?

Assim ocorreu no nosso município. Grupos políticos que travaram disputas ferozes nas eleições municipais passadas, se juntaram nestas eleições, e aí os inimigos já eram outros, nossos aliados de outras refregas. Famílias se dividiram, lutaram umas contra as outras como se nunca estivessem estado juntas. Isso é a democracia, dirão. Mas de qual democracia estamos falando, se as disputas se dão no campo dos interesses pessoais e não por ideologia? Talvez precisemos mudar o significado do termo criado pelos gregos para caracterizar os embates entre adversários que defendiam ideias contrárias. Até mesmo os conceitos que passaram a definir esses grupos em disputa, direita e esquerda, hoje até são usados à larga, talvez mais até do que no passado, mas não dizem muito do que os caracterizava no passado. E vou além. Na minha humilde opinião, só servem mesmo para que os líderes políticos instiguem seus partidários para o confronto com os seus adversários. Adversários, como já afirmei lá para trás, que em eleições passadas militavam nas mesmas trincheiras. Aproveitando para justificar a minha posição que, deverá ser contestada por muitos que vierem a lançar olhos sobre este despretensioso texto, exemplifico o que afirmei mostrando que aqui em Teresina, cidade em que resido, o Partido dos Trabalhadores se aliou com um universo de outras agremiações que podem ser rotuladas de qualquer coisa, menos de partidos de esquerda. Logo ele que em eleições já distantes, se negaram a se juntar com algumas outras rotuladas de direita. E se nos dedicássemos a perder alguns minutos do nosso tempo para levantar o passado de alguns dos candidatos mais em evidência alojados no Partido dos Trabalhadores, veremos que outro dia mesmo, estavam eles defendendo aguerridamente as cores do extinto PDS/PFL, agremiações políticas que defendiam encarniçadamente o governo militar que mandou no país por longos vinte e quatro anos, e que eles hoje rotulam de ditadura.

Hoje devemos comemorar no nosso município de Presidente Dutra o fato de sairmos destas eleições com o couro intacto, com a saúde em dia para podermos esperar o próximo pleito daqui a dois anos e, quem sabe, sairmos pelas ruas da nossa cidade abraçados, ou pelo menos ombreados, com alguns dos nossos adversários destas eleições que se encerraram no domingo passado. E viva a democracia brasileira! Com as suas incongruências e os seus sofismas grudentos e maledicentes. Mas é essa a que temos, e devemos agradecer por levarmos as nossas disputadas apenas para o campo das palavras, não através dos desforços que já nos deram muitos motivos para derramarmos lágrimas.   

sábado, 21 de setembro de 2024

O SURPREENDENTE NESCAU, UM CÃOZINHO PERFORMÁTICO

Imagem do Google

 

José Pedro Araújo (*)

Acossados pelo calor exorbitante que nos aflige nesses dias correntes, resolvemos descer para o belíssimo e aconchegante litoral piauiense para combater à altura o desconforto sentido aqui na capital. Além do prazer de estarmos desfrutando daquele belíssimo cenário, aproveitamos prazerosamente a hospitalidade de minha irmã e do seu marido, instando-nos na sua bela e aconchegante residência litorânea. Foram dias muito agradáveis que nos aconselhavam a alongá-los o mais que pudéssemos, mas a lembrança do provérbio italiano nos dizia que já era hora de voltarmos para casa. (“visita, é igual aos peixes, começa a cheirar mal após o terceiro dia”). E assim, a contragosto, achamos que não era producente abusar da hospitalidade de casal, apesar de sentirmos que o momento ainda nos era favorável, tal era a alegria com que os anfitriões nos saudava sempre que um novo dia começava.

Em um dos dias passados ali, o escritor Raimundo Lima, meu cunhado, convidou-nos para ir à sua praia favorita naquela manhã. Apesar de ficar um pouco afastada, e talvez por isto, trata-se de um lugar esplêndido que encanta tanto pela beleza do ambiente, quanto pela sua simplicidade, além de se constituir em um ótimo destino para quem gosta de realizar alguns mergulhos em águas calmas e de um verde já tendendo para o azul. Contudo, desconfio que o meu anfitrião gosta mesmo daquele local por duas razões: em primeiro lugar, uma razão que é comum a todos os escritores, a ausência de burburinho e de grande movimentação de pessoas. Mas é a segunda razão que considero a sua favorita: o tratamento familiar e camarada que recebe do empresário Bujão, o dono da barraca da sua predileção. Mas, o fato, é que poucos lugares, nesse pedaço encantador de litoral, podem se assemelhar à bela e paradisíaca praia de Maramar. E para mim é o motivo principal para gostar demais daquele local também. Tanto, que no dia seguinte, resolvemos repetir a dose de prazer e alegria naquele oásis de paz e beleza. Mas aí, por conta do feriado do Sete de Setembro, o nosso paraíso já estava convulsionado de pessoas que tornaram o ambiente aconchegante em um burburinho sem igual. Gente barulhenta e que, por achar que a zoada que eles fazem ainda precisa de acréscimo, carregam consigo umas caixas de som horrorosas e que avultam a algazarra que já fazem com os seus horríveis pancadões, entrecruzando os altos sons que chegam de todas as direções, e transformando-os em algo pouco inteligível e de mal gosto.

Confesso que fiquei um pouco enciumado com a invasão do nosso esplêndido paraíso perdido. Mas, fazer o quê? Mesmo com toda aquela invasão de alienígenas, o lugar ainda é o melhor para se curtir e apreciar com prazer entre tantos os que por lá existem.

O fato que mais me chamou a atenção, contudo, aconteceu no primeiro dia. Estávamos em animada conversa, enquanto apreciávamos um gigantesco prato de Manjubinhas fritas e algumas geladas cervejinhas, quando senti que algo ou alguém bateu na minha perna no intuito de chamar a minha atenção. Olhei para o lado e vi, sentado nas suas patas traseiras, um cachorro que olhava diretamente para mim. Achei que havia algum engano de percepção, e voltei a minha atenção para o meu cunhado Pedro, brasiliense que não perde a oportunidade de desfrutar as delícias do seu estado natal sempre que ela lhe aparece, que se achava ali conosco.  Novamente senti aquela pancadinha camarada na minha coxa e vi que o cãozinho continuava aguardando pela minha atenção. Ato contínuo, admirado com a esperteza do animal, peguei algumas manjubinhas e dei para ele, que não perdeu tempo e foi logo mastigando-as com imenso prazer. Voltei a atenção para o meu cunhado, e quase me esqueci do esperto cão. Mas ele, após comer os peixinhos que lhe havia dado, voltou a bater na minha coxa mansamente com a sua patinha. Olhei para ele e vi que o seu gesto não havia sido um mero acaso, mas que ele realmente fazia assim para chamar a minha atenção. Fiquei extasiado com a inteligência daquele Pet que se comportava com a maior calma e elegância, mas que continuava insistindo, dizendo querer mais da iguaria que consumíamos naquele momento.  Depois da terceira vez que o servi, querendo continuar a minha confabulação com o meu interlocutor, passei a mão na sua cabeça com carinho e o empurrei sem muita força, para lhe passar a ideia de que já estava bom. E ele, sem contestação, virou-se para o meu cunhado, levantou a patinha e bateu levemente na sua coxa também. Virou o assunto da mesa naquele momento e ele desfrutou o quanto pode da sua esperteza e da nossa generosidade. Quando ele se foi, perguntei à garota que servia nossa mesa qual o nome daquele elegante animal, e ela nos disse que era Nescau. Nem é preciso dizer que a risada foi geral. Aquele delicioso cãozinho, pelos amarelados com manchas pretas, talvez para evidenciar a sua grande camaradagem, havia sido agraciado com o nome de um dos produtos mais significativos da nossa infância quando a hora do lanche chegava.

A presença daquele animalzinho amigo foi o assunto do restante daquele dia, e também da nossa surpresa quando ele não deu o ar da sua graça no dia seguinte, ocasião em que o calmo oásis de Maramar foi assaltado pela avalanche de turistas que o inundou no dia seguinte. Deixou em nós um certo sentimento de frustração, a sua ausência.

Hoje, parando para analisar a esperteza daquele cachorrinho, volta a me assaltar uma dúvida: será que realmente a inteligência é um dom adstrito somente aos seres humanos? A propósito disto, voltou a minha lembrança a história de um burrinho que o meu tio Zeca Barros possuía nos já longínquos anos da minha infância, chamado Roxinho, em razão da sua pelagem direcionada à cor roxa. Aquele animal surpreendia pela sua inteligência e amizade com o meu tio. Umas das coisas que mais causava a admiração de todos, era que ele, quando em trânsito por alguma estrada, quando sentia a vontade de fazer xixi ou cocô, deixava o leito do caminho, procurava um local na sua margem e dava vazão às suas necessidades. Outra das suas consagradas virtudes, era que não importando em que local e distância ele ia, nem se apenas o frequentava em primeira vez, ele voltava para casa sem ninguém o dirigir. Bastava soltar-lhe o cabresto que ele seguia o caminho correto sozinho. Por último, quando o meu tio ia buscá-lo no pasto, esperava-o na porteira de entrada e só precisava chamar-lhe pelo nome. Ele, mesmo que se achasse em ponto distante, vinha correndo e encostava a cabeça ao peito do meu tio em sinal de alegria.

Nos dias atuais, algumas situações que demonstram um grau elevado de inteligência dos animais, correm pela internet com muita evidência, mostrando alguns fatos que só vêm demonstrar que os seres ditos inumanos são, sim, detentores de uma certa inteligência e sentimentos de maior valor, igualando ou superando o dos humanos. Uma imagem que vi há pouco tempo, e que inundou a internet com admirável voracidade, foi a de um animal, parecido com um veado, interrompendo a passagem de veículos em uma rodovia. E quando o primeiro automóvel parou ao seu lado, o homem que desceu dele também demonstrou toda a sua humanidade e respeito por ele, acariciando a sua cabeça e seguindo-o quando viu que ele o convidava com gestos insistentes. E qual não foi a sua surpresa, quando aquele cervídeo o conduziu para fora da rodovia e o levou até o local onde se encontrava um filhote preso pelas pernas a uma cerca de arame. Impressionado, o homem voltou ao seu veículo em busca de um alicate e correu de volta para soltar o animalzinho preso, que, ao se sentir liberto, fugiu em disparada. Logo depois, já novamente junto ao seu carro, o homem foi surpreendido pela segunda vez, e viu que o animalzinho ajudado por ele havia voltado na companhia da mãe, ou pai, e permitiu ao seu libertador que ele tocasse a sua cabeça com carinho e em agradecimento. A essa altura, a quantidade de carros parados e de espectadores já era monstruosa. Todos, viva e alegremente surpresos com o que acabavam de presenciar. Houve montagem naquelas imagens?  Pode até ser, mas, mesmo assim, não deve ter havido um treinamento antecipado para que aqueles animais apresentassem tão brilhante performance.

Por essas e por outras é que hoje tenho pena de matar até mesmo uma simples formiga de uma das que estão inundando a minha casa. E parece até que elas também usam das suas inteligências para transitarem pela sala de estar quando me encontro sozinho, especialmente à noite.  

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.