sexta-feira, 27 de julho de 2018

VIDA DE AGRÔNOMO (2) – Um caso de Priapismo.

O autor no início da carreira vistoriando um plantio de milho

José Pedro Araújo

Vou continuar o texto do lugar onde parei na sua primeira parte. Estava sendo apresentado à cidadezinha de Lago Verde, meu primeiro local de trabalho, em um final de tarde dos mais belos que já presenciei, com o sol declinando rapidamente no horizonte. Envergonhado por estar encarapitado sobre um monte de malas que a carroça transportava, desci e me comportei como as demais pessoas que seguiam atrás do veículo. A rua comprida e empoeirada parecia não ter fim e, serpenteando entre duas fileiras de casas pobres, a maioria de taipa, seguia rumo ao centro da povoação. Até que, em dado momento, o veículo estancou, e o seu condutor anunciou o final da viagem. Olhei em volta e vi que estava em frente a uma pensãozinha humilde, que depois soube ser a melhor da cidade. E foi ali que obtive a informação de que o escritório da EMATER ficava a poucos metros de distância, o que muito me alegrou.
Até então não sabia em que local iria me alojar. Tentei negociar com a dona da pensão, e não fiquei satisfeito em saber que ela não poderia disponibilizar um quarto somente para mim, uma vez que somente existia um - e que era grande o suficiente para alojar cerca de quatro a cinco pessoas - destinado a receber seus hóspedes costumeiros: representantes comerciais ou viajantes que precisavam pernoitar na cidade. Portanto, caso aceitasse permanecer ali, teria sempre a companhia de estranhos. Resolvi pensar um pouco, antes de fechar contrato.
 Em seguida fui conhecer o escritório da empresa. Na verdade se tratava de um amplo salão, com uma pequena divisória ao fundo, que ficava ao lado da residência do seu proprietário, junto à sua mercearia. Com este senhor obtive as chaves do escritório e observei que poderia me instalar por lá mesmo até conseguir outro lugar mais adequado. No quartinho do fundo ele deveria ter instalado um sanitário, conforme havia ficado acertado no ato do contrato, coisa que ele não fez, optando por construir um no quintal, conforme era hábito na localidade. Vi que o tal banheiro ficava ao lado de um poço de onde seria captada a água utilizada para as minhas abluções. Foi o meu segundo contratempo em pouco menos de uma hora em que eu estava na cidade.
Mas ele justificou a quebra de contrato alegando que na cidade não havia água encanada e a energia elétrica só havia sido instalada na comunidade uma semana antes. Assim, não tivera tempo para adquirir e instalar uma bomba para retirar a água do poço. Bom, apesar de já está bem habituado com a água brotando de uma torneira ou de um chuveiro, não seria a primeira vez que eu teria que captar água de poço com um instrumento que chamávamos de gangorra (sarilho). Voltei à pensão para apanhar a minha bagagem e contratei apenas a alimentação mensal com a dona do estabelecimento.
Instalei-me no próprio escritório, e passei a organizá-lo, uma vez que os móveis estavam todos jogados a um canto, posto que eu seria o primeiro técnico a trabalhar ali. Posicionei a minha mesa de frente para a porta de entrada, a do técnico que viria me fazer companhia de frente para a minha, de costas para uma janela contígua à porta, e a terceira mesa, que deveria ser ocupada pela extensionista social, posicionei-a ao lado da parede divisória com a casa do proprietário do prédio, ao lado do fichário. Esses dois servidores somente chegariam dias depois para assumir seus encargos. O jipe que iria me proporcionar o acesso às comunidades agrícolas que eu iria atender, só chegou também na semana seguinte, posto estar sendo preparado em uma oficina da sede, em Bacabal.
Aos poucos fui me acostumando com o local, fazendo amizade com as pessoas, e tomando conhecimento sobre o município, suas povoações, estradas, principais culturas exploradas, suas atividades econômicas mais importantes, enfim. E nesse meio tempo fiz amizade com o delegado de polícia e com seus dois auxiliares, um cabo e um soldado, que também eram comensais na mesma pensão. E esses três personagens, ao serem perguntados onde se divertiam na cidade, informaram-me que a diversão por ali se restringia a um lugarzinho que eles chamavam de “Boate”, aonde iam quase todas as noites tomar cerveja e ouvir música. Logo passei a ser cliente assíduo do lugar simples como de resto era a cidadezinha: paredes de taipa, cobertura de palha de babaçu e piso de chão batido. Nada mais que isso. Mas ostentava o pomposo nome de “Boite Night and Day”.
Certo dia estava terminando de organizar o fichário com os verbetes de cada um dos clientes no município, antes atendidos pelo escritório de Bacabal, quando ouvi um grande murmúrio na rua. Fui observar o que se passava, e verifiquei que uma espécie de procissão acabava de adentar à cidade, proveniente do interior. E no centro do grupo uma pessoa estava sendo conduzida em uma rede pendurada a uma longa vara de madeira roliça. No momento em que passava em frente ao escritório, a pessoa que ia sendo conduzida, desceu da rede e, gemendo alto e se contorcendo, passou a caminhar junto ao grupo que o transportava. O jovem, que não deveria ter superado a barreira dos vinte anos, vestia uma longa camisola de tecido branco, que lhe ia até aos pés. Para as pessoas que não são muito afeitas às coisas do interior, explico que era daquela maneira que se transportava as pessoas doentes do interior para a cidade, antes da popularização dos meios de transporte a motor: em uma rede atada a uma longa vara para transportar os doentes, e também os já falecidos. Nessas ocasiões, várias pessoas seguiam atrás, em procissão, à espera para substituírem aqueles que transportavam o paciente quando se sentiam cansados. Daí o cortejo que seguia atrás.
Chamei um dos que seguiam com o grupo, e perguntei-lhe o que estava acontecendo. Ele me respondeu que o rapaz que eles traziam, desde um povoado distante cerca de dez quilômetros dali, estava com um problema grave: padecia de uma ereção do aparelho reprodutor masculino que já durava mais de um dia. Estava justificada a vestimenta esquisita do infeliz mancebo, que não conseguiria mesmo vestir uma calça ou qualquer outra roupa que fosse.
Fiquei impressionado com a informação. Imaginei a dor que o pobre rapaz sentia naquele instante, daí andar daquela forma, contorcendo-se e gemendo. A procissão passou - ia em busca do  posto de saúde - ou do único veículo de transporte que havia na cidade: um velho jipe. A intenção última era levar o doente para o hospital em Bacabal, pois ali não havia médico. Apenas uma auxiliar de enfermagem promovia o atendimento às situações mais simples.
Como eu nunca antes havia ouvido falar em um caso assim, logo que encerrei o expediente daquele dia, fui ao posto médico que não ficava muito distante da minha pensão. Queria saber notícia do pobre paciente. E a atendente, que àquela hora acabava de encerrar também suas atividades, informou-me que o rapaz havia sido transportado para Bacabal, uma vez que ali não havia recursos para o seu tratamento. Perguntei-lhe se ela já havia tido algum outro caso como aquele, e ela respondeu que não. Mas já ouvira falar de casos iguais. Disse-me ainda que a doença era conhecida como Priapismo. Ou algo parecido com isso. Como sempre carregava comigo o meu dicionário, além de alguns livros técnicos, outros literários, voltei ao escritório para ver se o verbete constava no meu velho companheiro. Estava lá.
Nunca mais vi ninguém padecendo do mesmo mal. Ainda bem. A visão daquele rapaz se contorcendo em dores ficou para sempre na minha mente.

7 comentários:

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  4. Caro Araújo,
    Cheguei a pensar que alguém iria sentir inveja do novo Príapo.
    Mas ante o que você conta, o rapaz passou por uma verdadeira tortura.
    Vade retro.

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    1. No momento em que o vi, pereceu-me que ninguém invejaria a sua condição.Ademais, tivesse ele alguma cultura, deve ter se lembrado de Midas: assim como o rei da Frígia, o poder adquirido não lhe seria para nada!

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    2. O certo é que a engrenagem do "macaco hidráulico" enguiçou, e causou um grave prejuízo ao dono.

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