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Frades Capuchos em Desobriga pelo sertão |
José Pedro Araújo
Em visita ao velho e querido
Curador, encontrei-me com o Professor Jean Carlos Gonçalves, jovem pesquisador
que vive de “escarafunchar” velhos arquivos e tomar depoimentos de pessoas
gradas que acompanharam a marcha da ocupação da região que se convencionou
chamar “Japão maranhense”. Já esclareci em outra crônica, que a região central
do estado do maranhão ficou conhecida por esse epíteto em razão da dificuldade
de acesso a ela, por se constituir em algo praticamente inalcançável, posto
estar localizada no mais profundo da mata indevassável. É naquele espaço geográfico, que estão
localizados os municípios de Presidente Dutra, Tuntum, Dom Pedro, Graça Aranha,
Gonçalves Dias, São Domingos, Santa Filomena, São José dos Basílios, entre
outros. Coletar fragmentos da história dessa região passou a ser uma missão de
vida do jovem professor, assim como para mim também. E todos sabem que
barreiras um pesquisador tem que superar para encontrar o que procura. A falta
de informações confiáveis, aliada ao descaso com a preservação dos documentos
que retratam a história desses municípios, fica patente a cada passo dado na
busca pela reconstituição da história regional, portanto.
O encontro com professor Jean
Gonçalves se constituiu em um dos momentos em que a bateia do garimpeiro faiscador
arremata uma luminosa pepita valiosa. Diz-se nesses momentos, que o indivíduo
“bamburrou”. E foi como eu me senti naquele momento. Explico. Estávamos em
animada conversa, quando veio à baila a informação sobre uma carta escrita pelo
frei capuchinho Adriano de Zânica ao seu superior na Itália, relatando a
odisseia da sua viagem de Gênova, no velho continente, a Barra do Corda, no centro
do estado Maranhão. Foram doze dias de
aventuras inimagináveis realizadas pelo religioso, tempo gasto somente entre a
capital do estado nordestino e a cidade eleita como ponto final da viagem. E
onde está a importância desse evento para a história? Está, sobretudo, no fato
de encontrar um depoimento tão valioso sobre a travessia empreendida por alguém
desde a capital do estado, trespassando a mata do Japão maranhense, e em um
tempo em que o país enfrentava mais uma revolução civil, a chamada revolução de
1930. Mas, e principalmente, porque não existem registros de como esse
acontecimento foi recebido pelos interioranos, sobretudo os da região em causa.
Dias depois do nosso encontro,
como havia me prometido o nosso professor-pesquisador, enviou-me uma cópia da
tal carta. Fiquei deslumbrado com o que li ali. O texto da missiva se constitui
em história pura, e repleta de novidades para nós outros. Traz, como já afirmei, informações até então
nunca abordadas sobre a deflagração da Revolução de 30 em regiões tão afastadas.
Todos os estudos sobre esse período da história do Maranhão que lancei olhos têm
se restringido aos reflexos da chamada derrubada da república velha, apenas e
tão somente no âmbito da capital maranhense. Daí a importância desse documento
para a história da região e, de resto, do estado. Em outra oportunidade
falaremos sobre isso. Hoje, trataremos apenas das aflições e desconfortos
vividos pelo nosso aventureiro capuchinho que transitou por caminhos para
tropeiros no selvagem hinterland maranhense, uma verdadeira epopeia para alguém
recém-chegado do velho continente.
Frei Adriano saiu do porto de
Gênova com idade que não posso precisar, mas ainda jovem, a julgar pelas fotos
da época, e apesar da longa barba que era uma marca registrada dos frades
daquela ordem religiosa. Todavia, se partimos da informação dada por ele de que
14 ou 15 anos atrás havia servido como bersalheiro (componente das forças
armadas italiana), deveria ter, no máximo, 35 anos quando aportou no Brasil. Fez
a travessia do Atlântico no navio Júlio
César, que classificou de “bela
embarcação”, em direção à América desconhecida. Em São Luís, abrigado no Carmo,
o Convento da Ordem a que pertencia, tomou aulas de português para completar a
sua aprendizagem teórica sobre a língua da terra, e foi escolhido, juntamente
com outro frade, frei Abraão, para ministrar a palavra de Deus aos índios da
região centro-sul do Maranhão. Segundo suas próprias palavras, ficou
imensamente feliz com a escolha do seu nome: “Ele(o superior, Frei Estevão de Sexto São João), entrega-nos somente
duas Obediências. Abrimo-las trepidantes pelo medo de não encontrar nelas o
nosso nome. Uma era para frei Abrão, destinado a Imperatriz, e outra justamente
para mim, destinada a Barra do Corda. Louvado seja Deus! Também desta vez estou
entre os eleitos”. Feliz com a
escolha, portanto, o religioso nem desconfiava que seus próximos dias fossem de
dura provação. A começar pela viagem da capital até a distante cidade cordina,
encrava no sertão profundo e quase inalcançável do Maranhão.
Por sua vez, as démarches da
revolução que atingia o país naqueles dias, e que se atrasara para ser
deflagrada no estado, aconteciam justamente naqueles dias. E isso provocou atraso
de alguns dias no deslocamento dos dois frades para suas áreas de atuação, “o
campo destinado ao apostolado”. Chegado o dia ansiado, embarcaram eles no trem que
fazia o percurso São Luís-Teresina. O destino deles era a cidade de Codó,
situada a meio caminho entre as duas capitais, onde deveriam encontrar outro
meio de transporte que os levasse até o destino final.
Embarcar na Maria Fumaça já foi
motivo de certa gozação, posto consideraram o trem uma réplica das primeiras
locomotivas usadas pelos europeus nos idos do século XIX. Nem sabiam o que lhes
esperava mais a frente. Debruçado na janela do trem, ia o missivista nominando
as povoações por onde passavam, e os lugares onde paravam para abastecer a
locomotiva com água e lenha. Confessou-se cada vez mais extasiado com a bela e
luxuriante vegetação que ia encontrando pelo caminho, paisagem muito diferente
do ambiente encontrado na sua velha Itália. A viagem durou dois dias, visto
terem parado em Coroatá para pernoitarem, no dia seguinte, e só retomarem
viagem às seis horas da manhã do outro dia, chegando a Codó no meio da manhã.
Terminava aí o trecho de relativo conforto. Mas eles ainda nem desconfiavam
disso.
Em Codó, dois dias depois,
conseguiram vaga em um caminhão pertencente a um comerciante de Dom Pedro, e
foram acomodados na carroceria junto à mercadoria e a outras cinco pessoas que
iam para a mesma cidade do empresário. Começava ai uma viagem cheia de percalços,
tanto pelo desconforto do caminhãozinho, quanto pela qualidade da estrada que
não passava de um caminho para carro-de-bois, alargado agora para dar passagem
a veículos automotores. Só conseguiram sair da cidade, apesar de terem
embarcado quatro horas antes, quando a tarde já chegara ao fim, às dezoito
horas. Pela descrição feita, tomaram a estrada que passa pelo povoado Dezessete,
segue para o Triângulo, e depois vai até a Mata do Nascimento, nome antigo pelo
qual Dom Pedro era conhecido. Chamar aquele caminho de estrada é faltar com o
respeito com as estradas verdadeiras, pois nunca uma máquina havia aplainado
aquele carreiro aberto em meio a uma densa floresta. E mesmo assim, os
passageiros tinham que se manterem sempre atentos para não serem atingidos por
galhos de árvores ou mesmo receber picadas de marimbondos. Depois de algumas
paradas em casebres de palha na beira da estrada, quando os outros passageiros
aproveitavam para “molhar o bico” com talagadas de cachaça, chegaram finalmente
ao povoado Santo Antônio dos Pretos, à beira do rio Codozinho(a povoação, que
dista 60 km de Codó, hoje é um Projeto Quilombola. Historiadores
contam que os antepassados dos habitantes atuais receberam aquelas terras
através de doação do Imperador Pedro II, logo após o advento da Lei Áurea).
Era meia-noite, e a ideia inicial
era pernoitarem ali, pois a viagem à frente havia ficado muito difícil em razão
de uma chuva torrencial caída um pouco antes. Não se atreveram, contudo. Os
habitantes do lugarejo, adeptos do Terecô, estavam em festa e se embriagavam em
volta de alentadas fogueiras. Decidiram seguir em frente, mesmo correndo sérios
riscos. E os riscos não demoraram a aparecer. A estrada estava em péssimas
condições e o pequeno caminhão começou a atolar seguidamente. Foi, segundo o autor
da missiva, uma noite de horrores.
Empurrar o caminhão, passou a ser
uma tarefa distribuída entre todos os passageiros. Uma coisa não passou também despercebida
pelos religiosos: apesar dos esforços, das muriçocas, da escuridão, ninguém
blasfemava contra a má sorte. E assim, para encurtar a história, foram
prosseguindo até próximo a Mata do Nascimento, quando tiveram que parar devido
a notícias recebidas de que os revoltosos se encontravam na vila e que,
certamente, requisitariam o caminhão para deslocamento das tropas ali aquarteladas.
Depois de muito relutar, o proprietário do transporte resolveu chegar até a
cidade. E, de fato, teve o caminhão requisitado, recebendo a ordem de voltar
para Codó com os revoltosos. Alguns dos passageiros, inflamados, resolveram se
incorporar ao movimento revolucionário naquele instante. Um deles, por obra da
providência divina, seria de grande importância para os religiosos no dia
seguinte, como veremos logo à frente.
A questão agora era como seguir
viagem. Mas o proprietário do caminhão não os deixou totalmente na mão. E como
aquele veículo deveria ser o único existente na cidade, contratou um tropeiro
para levar os dois religiosos até a cidade de Barra do Corda, distante dali
cerca de 170 quilômetros. Os religiosos ficaram alarmados. Frei Adriano, por
exemplo, confessou nunca ter se utilizado de alimárias como montaria. Mas, o
que fazer? Era mais uma provação, mas estava dentro dos desígnios de Deus,
conjeturou. E, no dia seguinte, às oito da manhã, começou a sua via-crúcis. Mesmo
o tropeiro tendo lhe afirmado que escolhera para ele o animal mais manso e
estradeiro, o pobre religioso teve que ser puxado pelo cabresto por longos
trechos, visto o animal se negar a seguir viagem. E o olhar de riso que ia
encontrando pelo caminho por parte das pessoas que encontrava o fazia se sentir
mais oprimido ainda. Mas seguiram mesmo assim.
Uma hora e meia, depois da
partida, chegaram ao cume da serra da Boa Vista, limite dos municípios de Codó
e Barra do Corda à época. Ali também terminava o território da Arquidiocese do
Maranhão, e começava o campo da Prelazia de Grajaú. Vejam com que palavras eles
comtemplaram aquela bela visão: “Desta
altura, com indizível emoção, como outrora Moisés do cimo do Monte Nebo pode
contemplar finalmente a tão suspirada Terra Prometida, nós também pudemos
admirar o campo destinado ao nosso apostolado. Uma extensa interminável floresta
se oferece aos nossos olhares como um imenso tapete verde-escuro, levemente ondulado”.
O Cimo da Serra da Boa Vista, hoje é limite dos municípios de Presidente Dutra
e Dom Pedro.
Já quase chegando ao povoado do
Curador, foram alcançados por dois caminhões cheios de revolucionários. Confessaram
ter passado por um susto imenso. Mas, felizmente, não foram molestado, tendo os
caminhões seguido em frente. Já passava das oito da noite quando chegaram à
povoação do Curador que descreveram como “um
pequeno povoado que faz parte do município de Barra do Corda. Aqui nossos
missionários deixaram marcos consoladores do seu zelo incansável. Aqui Frei
Heliodoro (Heliodoro de Inzago), Superior atual em Barra, com indizíveis sacrifícios,
erigiu uma bela igrejinha, a primeira que encontramos depois de um percurso de
mais de 150 km... Quando chegamos, o
pequeno povoado(Curador) parece ter estado tomado de assalto. Os habitantes,
tomados de forte terror, atravancaram-se em suas casinhas, fechadas também as
janelas, as luzes apagadas. A rua estava deserta. Somente aqui e acolá núcleos
de revolucionários armados estão de sentinela, enquanto algumas escoltas, de
lanterna na mão, passam de uma habitação para outra, obrigando com modos
autoritários a abrir as portas”.
No povoado do Curador, dia 25 de
outubro, os religiosos receberam abrigo em um casebre de palha na praça da
igreja, onde descansaram a noite e se alimentaram frugalmente, como já vinham
fazendo. Pretendiam seguir viagem no dia seguinte. Mas, quando descarregavam a
bagagem, foram abordados por um dos revolucionários que queria saber a
identidade deles e o que pretendiam fazer por ali. Alertado quem eram, o homem
ainda tentou tirar-lhes as redes, sendo nessa hora impedido por outro engajado,
exatamente um dos rapazes que haviam viajado de caminhão com eles de Codó até a
Mata do Nascimento( Dom Pedro). Na defesa dos dois religiosos, o rapaz,
recém-integrado ao movimento revolucionário, pelo visto, teve que apontar arma
para o colega, e assim lograr sucesso na sua defesa.
Seus problemas não haviam acabado
ainda, durante suas estadias no Curador. Dia seguinte, cedo da manhã, foram
abordados novamente quando preparavam os animais para continuar a viagem. E
mesmo após mostrarem as credenciais com autorização para viagem até o destino
final, emitidas pelos novos mandatários do estado, só foram liberados para
prosseguirem no final da tarde. Mesmo com a noite se aproximando, decidiram
seguir em frente. Temiam novos problemas.
Pernoitaram na localidade Canafístula
(Canafístula dos Pacas), em um casebre onde, coincidentemente, havia falecido, seis
anos antes, um Capuchinho, frei Carmelo de Brescia, em decorrência de febres palustres. Na manhã
seguinte, já no povoado de Tuntum, viram quando alguns revolucionários armados abordavam
as residências em busca de armamentos. E, mesmo cansados, e estando frei Abraão
acometido de forte gripe e muito alquebrado, decidiram seguir viagem imediatamente
a fim de evitarem problemas com aqueles homens.
O restante da viagem transcorreu
dentro do mesmo diapasão: fome incontrolável, sede, cansaço extremo, picadas de
mutucas e muriçocas, sol e calor inclementes; desconforto pela marcha dos
burricos, mas animados por uma variação de paisagens deslumbrante e uma
algaravia de pássaros que enchia o ambiente de beleza e alegria. No último dia
da viagem, 28/03, encontram um emissário do Frei Heliodoro que os conduziu até
a sua humilde morada e lhes ofereceu uma refeição em regra. A primeira em
muitos dias. E, perto do final do dia, encontraram-se com o próprio padre
superior, Frei Heliodoro, que veio ter com eles no meio do caminho. Estavam
quase no final da jornada empreendida desde a Itália. A alegre recepção deu
novo alento aos aventureiros que, doze dias passados, e depois de muitos
sofrimentos e medos, estavam finalmente perto de apearem de suas mulas para descansar.
Às 23:00 horas desse mesmo dia entraram na pequena Barra do Corda, que nesse
tempo contava com cerca de 3.000 almas.
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