Acerto de Contas!
José Pedro Araújo
Acordei na manhã seguinte com o barulho da cidade. Estava
desacostumado com aquilo. Buzinas, barulho de motor, vozes em altíssimo volume,
mas não me incomodava, apenas acordaram-me. Tomei outra chuveirada e ao olhar
para o espelho observei como estava magro, com o rosto mais fino do que jamais
tive, pele muito curtida pelo sol, e uma barba grande e volumosa quase
enterrava o meu nariz. Os cabelos também estavam de um tamanho que só estivera
nos meus anos de juventude. Mas, o rosto ainda era o meu. Os olhos claros e
serenos saltavam brilhantes daquele emaranhado de cabelos. As roupas que havia
comprado na véspera me caíram bem, pois, como já falei, estava mais magro, mais
esguio.
Desci para o café às oito horas com aquele sentimento de
vitória contra tudo e contra todos. E com o dinheirinho que aquele pobre homem
havia me deixado, faria o meu retorno para casa, esperava. Comi como nunca no
café da manhã e pedi ao recepcionista que me informasse um salão de beleza
próximo. Não foi difícil, pois logo próximo havia um, a pouco mais de três
quadras do hotel. Precisava remover a barba e cortar o cabelo. E assim fiz, e admirei-me
mais uma vez o meu aspecto, mas magro ainda, após me barbear e tosar os cabelos
longos.
Foi somente depois disso que me dirigi ao consulado de
Portugal. Não tive dificuldades em ser recebido, o movimento ali era pequeno. Lá
a minha história logo passeou de sala em sala, e muitas pessoas deixaram o que
faziam e foram me conhecer. O cônsul português manteve contato com a embaixada
brasileira em Manila e lá também foi uma surpresa geral. O próprio embaixador
disse que queria falar comigo, que a história do meu desaparecimento tinha
saído na mídia internacional e que o Itamaraty havia determinado que me
procurassem naquelas águas. Agora, depois de ouvir uma súmula da minha epopeia,
prontificou-se a enviar ordem para emissão de uma passagem, enquanto preparavam
um salvo-conduto para eu poder embarcar de volta para o Brasil, já que não possuía
mais qualquer documento.
Nem me dei ao trabalho de falar que podia comprar a minha
própria passagem, pois teria que me demorar em explicações de como conseguira
aquele dinheiro. As minhas despesas de hotel também foram bancadas pela
embaixada e eu embarquei ainda naquele dia, no final da tarde, para Manila.
Naquela mesma noite fui recepcionado pelo embaixador do meu
país nas Filipinas. Além de receber um tratamento digno de um hóspede ilustre,
pois somente assim poderia me hospedar ali, fez-me ele uma surpresa que me
deixou muito contente. Como eu havia rapidamente lhe informado por telefone a
forma como acontecera o meu mergulho no mar, a curiosidade de todos na
embaixada era enorme. O chefe da embaixada mais uma surpresa: por uma dessas
ironias do destino, o mesmo navio em que eu havia embarcado encontrava-se em
águas Filipinas e dai há dois dias estaria ancorado no porto de Manila. E mais.
Havia contado com a colaboração da empresa norueguesa, sob cuja bandeira navegava
o navio, para entrar na embarcação com uma ordem judicial e prender os
acusados, caso ainda estivessem a bordo do mesmo.
Aproveitei os dois dias de espera para conhecer alguns pontos
turísticos inacreditáveis do país. Tudo com a ajuda da minha embaixada. E no
dia e hora aprazados para a chegada do navio, estávamos lá e subimos a bordo. Fomos
recebidos reservadamente pelo seu comandante que nos informou ter recebido
ordens expressas da companhia para adotar todos os procedimentos para o
reconhecimento e prisão dos envolvidos na grave ocorrência. Só pediam sigilo
sobre o fato e que nos mantivéssemos longe da imprensa. Por motivos óbvios, é
claro. Concordamos, mas deixamos os detalhes para depois. Em uma imensa e
reservada sala recebemos a presença de todos os funcionários do navio de sexo
masculino, em grupos de dez pessoas. Os que passavam pelo reconhecimento não
podiam ter contato com os que ainda iriam passar para não dar a conhecer sobre
os reais motivos do chamamento do comandante.
Foi um processo difícil para mim, pois somente sabia ser
possível reconhecer um dos meus atacantes, e isto em razão de um detalhe
apenas. Os demais, por possuírem, a maioria, origem asiática, tornavam-se todos
muitos parecidos. Ademais, temia as consequências de me postar frente a frente
com aquele sujeito truculento. Vai que ele quisesse concluir o serviço deixado
por terminar! Mas estava decidido a fazer o que tivesse que ser feito. Havia
envolvido muita gente nisso, não poderia recuar.
Como já estava prevendo, não foi nada fácil, e somente no
terceiro grupo de trabalhadores daquele gigante dos mares, reconheci um dos
meus agressores. Exatamente o que eu achava que seria mais fácil. E tudo por
conta de uma tatuagem imensa que ele trazia na mão esquerda: a cruz satânica. Aquela
cruz e a sua terminação inferior em formato de uma interrogação nunca me saíram
da mente quando a minha memória foi completamente restabelecida. Vê-la
estilizada e impregnada na sua pele, com aquele rabicho maligno subindo pela
sua munheca, fez-me voltar à mente todos os suplícios que passei desde aquele
malfadado dia. Aquele homem que a portava foi o que me pegou por trás,
laçando-me por baixo dos dois braços para me conduzir para o afogamento na
banheira. E como estivesse com as suas mãos entrelaçadas na minha barriga, a
direita sobre a esquerda, vi perfeitamente a tatuagem que ele trazia. E ficou
fácil a sua identificação agora.
Como eu estivesse com dificuldades para reconhecer seus dois
outros parceiros, o comandante o conduziu já devidamente algemado para outra
saleta exclusiva e, distante de nós, o fez denunciar os outros comparsas. Em
menos de cinco minutos, o chefe daquela embarcação monumental voltava com a
notícia de que o caso já estava resolvido e que os três homens desembarcariam
ali mesmo em Manila e seriam entregues às autoridades Filipinas.
Mais reservadamente, reforçou o pedido para que eu não levasse
o caso ao conhecimento da imprensa. E que, por conta disso, a empresa estava
pronta a me reembolsar o dinheiro surrupiado pelos funcionários e me agraciaria
com uma viagem com acompanhante para qualquer cruzeiro, e no melhor dos seus
navios. Negociei. Achei que a empresa estava se safando por muito pouco. E
depois de muita negociação, sai dali com duas vitórias: uma boa soma de
dólares, além do dinheiro ganho na máquina caça-níqueis, e a promessa da
empresa de instalar um sistema de segurança mais efetivo em favor dos clientes.
É certo que fui um louco conduzindo tanto dinheiro para a minha cabine, e foi
por isso que não forcei mais ainda a mão para sair do caso com uma grande soma
de dinheiro.
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