José Pedro Araújo
Morar próximo a uma cadeia
pública deixa um acúmulo de lembranças macabras na sua memória. Todas elas
tristes, incompreensíveis. Construída na Praça Diogo Soares, em cuja
proximidade fica o Oton Hotel, acredito que a cadeia pública do Curador tenha
sido uma das obras realizadas pelo prefeito Ariston Leda. As primeiras
lembranças que me vêm daquele vetusto prédio, era a de uma casa velha tristemente
abandonada, suja, paredes cheias de buracos, piso de ladrilho encardido, uma
péssima visão. Mas as piores lembranças que me ficaram foi do povo que era
alojado por lá; dos gritos e lamentos provindos de lá.
As noites de uma cidade pequena, em
que reina a escuridão, são propícias para se ouvir tudo o que de bom ou de ruim
acontece enquanto a escuridão comanda tudo, desde o canto dos galos notívagos,
até mesmo as falas, os assobios, os cânticos de pessoas que transitam pelas
ruas em horas em que a maioria dos outros humanos já está recolhida para
dormir. Na minha casa, situada no início da Rua Grande, bem pertinho do local
que aqui descrevo, dormíamos, eu e mesmo irmãos, na sala de estar, primeiro
cômodo da casa, logo na entrada. Só muitos anos depois fomos aquinhoados com um
quarto somente nosso, como já possuía um a minha única irmã. Todavia, essa
localização tinha as suas vantagens também. No dia seguinte dávamos conta de
tudo o que acontecera na rua na noite anterior, pois, como já adiantei algumas
linhas acima, dava para ouvir até mesmo o arrastar das sandálias das pessoas
que transitavam pela rua quando as portas já estavam cerradas
para mais uma noite de sono. Aliás, aquela sala na entrada da casa foi depois
transformada, definitivamente, em quarto, e ainda hoje quem dorme por lá é
incomodado com a barulheira que brota da rua, hoje muito maior em razão da
quantidade de carros e motos que transitam por ali.
Entretanto, o barulho que ainda
permanece vivo na minha lembrança é o dos gritos e lamentos provindos da velha
cadeia pública situada a pouco mais de uma centena de metros do meu dormitório.
A pequena distância e o profundo silêncio da noite permitiam que se ouvissem
toda a gritaria e pedido de clemência que brotavam daquela casa de detenção.
Até parece que os soldados responsáveis pela manutenção dos presos em regime
fechado tinham predileção pelo horário noturno para aplicar-lhes as suas
reprimendas ou mesmo tomar os seus depoimentos. O certo, é que não foram poucas
as vezes em que acordávamos com o choro e as lamentações dos pobres miseráveis
que passaram por ali. E pelo tamanho diminuto da cidade, até que foram muitos.
Um dos casos que mais me marcaram
foi o de um pedreiro acusado de ter furtado algo em uma casa de família
importante, quando lá prestava serviço de construção ou reforma. Esse caso
ficou bem marcado porque o pedreiro era muito conhecido e respeitado pelas
maneiras gentis e afáveis com que tratava a todos. Mais ainda pela forma
elegante com que se vestia ao terminar mais um dia de puxado serviço. Era
assunto entre todos que ele se trajava elegantemente ao deixar a obra para
retornar para casa. Não relaxava uma calça de linho bem engomada, uma camisa de
fina de cambraia de linho sem um vinco, complementado por sapatos limpamente
engraxados e polidos. O mulato completava o quadro de asseio com uma boa dose
de perfume que deixava um rastro por onde passava, e pelos cabelos
encaracolados devidamente penteados e alisados com uma boa quantidade de
brilhantina Glostora.
Pois foi esse fino dândi inglês
acusado de furto em uma das casas em que trabalhava na época. Parece que
sumiram de lá algumas joias da patroa, e recaiu sobre o pobre profissional a
culpa pelo seu desaparecimento. Para os donos da casa não havia dúvida: o único
estranho por ali era o pedreiro, pois a outra pessoa da casa que não era da
família, era uma moça que já trabalhava lá desde muito tempo e, portanto,
sobravam as suspeitas para ele. Mesmo sem nunca ter sido ele acusado de qualquer prática
parecida com a supressão de bens de outra pessoa. O homem foi trancafiado na
velha cadeia e vitimado pelos velhos costumes de se tomar o depoimento de
pessoas com o estimulo de uma pesada palmatória esculpida em fornido pedaço de
pau d’arco. Nessa noite a palmatória cantou desabusada e os gritos de pedido de
ajuda do pobre homem transpuseram as paredes sujas e esburacadas do velho
presídio. Foi uma noite de terror que trouxe profunda contrariedade a minha mãe
que sempre disse se tratar de uma grande injustiça, a acusação sem provas que
pesava sobre aquele rapaz.
Todavia, debaixo de uma saraivada
de palmadas nas mãos e de socos e pontapés, a noite nem havia terminado e o
acusado já confessava o crime para escapar do massacre a que era submetido.
Fora ele sim, afirmou na frente dos seus algozes. Só não lembrava mais em que
local havia deixado o produto do seu crime. E tome mais bolo nas mãos já
inchadas. E na manhã seguinte, como sempre faziam para desmoralizar o preso,
conduziram-no, após terem lhe raspado a cabeça, rua acima e rua abaixo para
toda a comunidade vê-lo.
Causou completa perplexidade e
comoção a visão daquele rapaz sendo conduzido daquela forma. Não foram poucos
os que acreditaram que se cometiam uma grande injustiça com aquele trabalhador.
Afinal, quem não admitiria culpa ou ter praticado os piores crimes depois de passar por tão grande suplício?
E de fato estavam certos aqueles que acreditaram na sua inocência. Não demorou muito e a empregada da casa em que o
crime havia acontecido terminou por confessar que ela praticara o furto das
joias da patroa. Alegou que tinha verdadeira fixação por elas, e não resistira
a presença de um estranho na casa sobre quem poderia recair toda a culpa. Não
previra que, até mesmo o seu coração ardiloso também haveria de ser tocado pela
triste visão daquele inocente sendo exposta de maneira tão vil e desonrosa.
Para tristeza de muitos, o
inocente, que além de todos os atributos que já enumerei acima, possuía uma boa
dose de vergonha na cara, logo que se viu liberto, juntou as suas coisas e
tomou rumo ignorado. Nunca mais se ouviria falar dele naquela comunidade. Dos
seus inquisidores, nem um pedido de desculpa foi emitido aos cidadãos do
Curador. Como sempre.
Esse foi apenas um dos casos
acontecidos na cadeia antiga.
Certa feita, a cidade foi
acordada pelo rumor de que, na noite anterior, muitos presos haviam se evadido
de lá, alguns muito perigosos, depois de arrombarem uma das paredes da cela.
Como a maioria da população, fui ao local para verificar o ocorrido e me
deparei com um buraco de grandes proporções perfurado na parede de fundo que
dava para um terreno baldio ao lado. Esse foi só um dos casos de fuga de presos
naquele presidio, o que culminou com a desativação do triste cárcere da
cidade. E com isso, o velho costume de
conduzir os acusados por furto pelas ruas da cidade, também foi abolido. Começava,
depois disto, a história da goiabeira sinistra da prefeitura.
As noites nas imediações da Praça
Diogo Soares passaram a ser tranquilas, sem o som terrível de choro e
lamentações. O barulho mais ouvido por lá, passou a ser o do canto dos galos
anunciado a meia noite ou o surgimento de uma nova aurora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário