José Pedro Araújo
Existe nos tempos que correm uma
certa polêmica sobre a reforma administrativa que o governo planeja apresentar
por estes dias no congresso nacional. Dentre os pontos que podem causar um
estrago significativo para os servidores públicos está a que trata sobre as
carreiras típicas de estado. Há quem diga que muitos cargos rotulados com este
título não deveriam estar ali, como já se ouviu de “muitos entendidos”.
Contudo, não à toa, o enquadramento de uma carreira nessa categoria vem a
reboque das grandes responsabilidades ou perigos a que os profissionais
ocupantes destes cargos são submetidos. E por isso mesmo, precisam de maior proteção
estatal contra poderosos quando se veem na mira delas.
É o caso da carreira de Perito
Federal Agrário(um eterno quase carreira típica) – e que nos interessa aqui nesse texto – que juntamente com os Fiscais
Federais Agropecuários, Fiscais da Receita, ou mesmo os Policiais Federais, que
precisam da proteção do estado contra a sanha dos mais poderosos para poderem exercer
a sua missão. O Perito Federal Agrário, por exemplo, é um dos que sofrem
tremendas pressões quando tem que executar a sua missão nas desapropriações de imóveis
rurais pertencentes a grandes e poderosos latifundiários, via de regra também
políticos ou protegidos por alguns destes. Nestes instantes, seus cargos estão em
iminente perigo, sob ameaça de demissão, ou até mesmo coisa pior. Ocupados por
Engenheiros Agrônomos concursados, os peritos são aqueles profissionais que
assinam os laudos propondo a desapropriação de imóvel que não está em consonância
com a sua função social, requisito primordial previsto na Constituição Federal
em relação à exploração de propriedades rurais.
O caso que relato aqui, demonstra
a necessidade desses profissionais estarem protegidos contra o insidioso e
perverso ataque de poderosos contra a sua manutenção no emprego, e até mesmo,
da sua própria vida. O caso se deu assim:
Certa vez recebi a determinação
do meu chefe imediato de chefiar uma equipe de vistoria para realizar trabalhos
em imóvel rural localizado na região do Médio-Parnaíba. Fiquei sabendo de
imediato, que o caso era grave, por se tratar de uma terra pertencente a uma
família poderosa que reagia fortemente ao propósito do governo de dar nova
destinação ao imóvel em questão. Mais que isto. Seu proprietário já havia
barrado a entrada de técnicos do INCRA na fazenda e impedido, com isto, o seu
trabalho. Quando fui escolhido para desempenhar a missão, alguns colegas me
alertaram que isto poderia ser uma vingança pessoal do meu chefe imediato, com
quem tinha problemas de relacionamento nessa época. Não acreditei nisso. Preferi intuir que a
minha escolha se devia mais à minha experiência em casos assim, do que propriamente
algum resquício de vindita pessoal.
Alertado ainda pelo engenheiro da
equipe barrada, tomei conhecimento de que o proprietário do imóvel os havia
recebido com muita dureza, impedindo até mesmo que a equipe adentrasse ao
imóvel para conversarem sobre o real motivo daquela visita. Embarquei para a
região sabendo das dificuldades que nos esperavam. Comigo, viajava um Topógrafo
e um Técnico de Cadastro, além do motorista. A equipe ia muito preocupada, mas
alertei logo que não forçaríamos nada. Caso fossemos impedidos de acessar ao
imóvel, retornaríamos para Teresina e relataríamos o ocorrido a fim de que nossos
superiores adotassem as medidas cabíveis em casos assim. Melhorou o ânimo da equipe,
mas não de todo.
Mesmo chegando ao município já
com a tarde bem avançada, preferimos iniciar os trabalhos imediatamente, antes mesmo
de procurarmos alojamento em alguma pousada, pois a propriedade ficava próxima
à cidade, e não teríamos dificuldades de encontrá-la, já que o nosso motorista já
fizera parte da equipe anterior que havia sido barrada na sua intenção, e
conhecia a sua localização. Por outro lado, como há uma notificação prévia do
Instituto sobre o dia previsto para o início dos trabalhos, gostaríamos de
chegar ao imóvel na data aprazada para evitar que o proprietário pudesse alegar
uma possível ausência da área em razão de não termos cumprido com o prazo
marcado para o início dos trabalhos.
Chegando à porteira de entrada da
fazenda, já observei a presença de três homens com aspectos carrancudos sob a
sombra de árvores, logo após a cerca limítrofe. Desci do veículo e, ao me aproximar
da cancela, fui instado por um dos homens a não ultrapassar a cerca, que parasse
por ali mesmo. O homem se destacou dos outros dois e, dois passos depois parou
e me encarou com rudeza. E mais uma vez falou em alto e bom som: “seja lá o que
vieram fazer aqui, aconselho a voltarem pelo mesmo caminho por onde vieram”.
Observei que os três estavam armados e faziam de tudo para que notássemos isso.
Um dos homens, chapéu enterrado na cabeça, aspecto bélicos, deixava ver o cabo
de um revólver de forma muito acintosa.
Continuei caminhando para a porteira, e o proprietário do imóvel -
constatei depois quem ele era - disse-me mais uma vez que não ultrapasse o limite
do terreno. Falou isso de maneira muito incisiva, de forma que quem estivesse a
algumas dezenas de metros de distância pudesse ouvir perfeitamente o que
ordenava. Parei e disse-lhe que queria apenas conversar sobre o objeto da nossa
viagem até ali. Mas o indivíduo continuava irredutível, e mais que isso,
parecia que o seu nervosismo somente se acentuava. “Sei o que vieram fazer
aqui. E não permito que entrem na minha propriedade”, foi a sua resposta.
Parei antes mesmo de tocar na
porteira, e disse-lhe, de forma branda, mas fazendo ver a ele que não estava
intimidado com a recepção. Disse-lhe, por fim, que me sentiria muito
constrangido em ter que voltar ali, alguns dias depois, acompanhando por um
contingente da polícia federal para poder realizar o meu trabalho. Mas que
seria isto o que iria acontecer, caso fosse impedido de entrar na propriedade. Afirmei-lhe ainda que aquela seria a primeira vez,
e que por isso não me sentia nem um pouco feliz em ter que proceder daquela
maneira. Disse-lhe, por fim, que tinha uma proposta a lhe fazer, que poderia, dependendo
do seu ponto de vista, ser do seu agrado.
O homem ficou a me olhar por
alguns instantes, e, afinal, disse-me que eu poderia entrar. Mas, somente eu.
Os outros componentes da equipe teriam que ficar fora e aguardar pelo resultado
da nossa conversa. Não concordei e disse-lhe que ou entrava toda a equipe, ou ninguém.
Eu sabia que não poderia fazer nenhuma concessão ao indivíduo daquele tipo ao
indivíduo. E mais que isso, precisava aproveitar que estava inseguro para que a
missão tivesse sucesso.
Passados alguns instantes, ele autorizou
a um dos seus homens que fosse abrir a porteira para permitir que o carro do
órgão pudesse adentrar à sua terra. Fui caminhando com eles até a casa sede,
que ficava a uns trezentos metros da entrada, sem que fosse proferida uma só
palavra. Os homens se mostravam em um estado de nervos que qualquer palavra
dita fora do contexto, poderia provocar uma reação que eu não saberia até onde
poderia nos levar. Sentamo-nos no alpendre e eu passei a lhe fazer a proposta
que eu tinha em mente rapidamente. Aqui faço um pequeno intervalo para afirmar
que havia folheado o processo e lido um ofício encaminhado pelo indivíduo em
que ele dizia possuir um rebanho com uma certa quantidade de cabeças de gado, e
que não teria para onde leva-los quase viesse a perder a sua terra. E que o
número de famílias que vivam no imóvel, e que agora reivindicavam a posse da
terra, era muito pequeno para o tamanho do imóvel. Isso me deu a dica que eu
precisava.
A proposta que lhe fiz era
técnica, e levava em consideração, tanto ao tamanho do seu rebanho, quanto o
número de famílias a serem beneficiadas caso aquele imóvel viesse a ser
expropriado. Propunha, portanto, uma divisão do imóvel ao meio. Notei que o
homem ficara um pouco mais sossegado, e passou então a negociar comigo tentando
perder a menor fatia da terra possível. Contudo, mostrei para ele que os nossos
critérios eram eminentemente técnicos, como já afirmei, e que não poderíamos abrir
mão da fração do imóvel necessária para o assentamento daquelas famílias para
elas pudessem tirar dela o seu sustento familiar.
Passou então ele a negociar a
questão da água. Dentro da área existia uma lagoa muito importante, histórica
mesmo, e muito piscosa, que ele queria manter para si. E também a parte que limitava
com o rio, pois seu rebanho precisa de muita água, principalmente no período da
estiagem. Não concordei com o argumento. Propus-lhe que ficasse com um manancial
ou com o outro. Que as famílias assentadas precisariam também de acesso a água,
pois fatalmente iriam criar um gadinho, mesmo pouco.
Afinal, fechamos a negociação que
me pareceu boa para os dois lados. Antes, disse-lhe que precisávamos da aquiescência
das famílias para poder fechar o acordo. Saímos de lá e fomos até a casa do líder
do grupo de ocupantes, e colocamos na mesa a nossa proposta para resolver a
questão que poderia se arrastar por muito tempo, caso não chegássemos a aquiescência
do grupo. Notei que ficavam aliviados, e até mesmo muito feliz com o resultado.
Dias depois, já em Teresina, recebi a visita do fazendeiro (também advogado e
funcionário graduado do estado), que queria tratar de algumas outras questões
que haviam ficado fora da conversa inicial. Como a transferência de todas as
famílias de dentro da parte do imóvel que ficaria com ele para a área desapropriada.
Disse-lhe que isso estava implícito para mim, e que já até havia tratado disso
com os assentados. Mas que eles somente poderiam sair de lá quando a
instituição construísse as suas nova moradias. Quis ainda se aproveitar para renegociar a
questão da água, mas fui irredutível, e notei que ele ficou um pouco agastado
comigo.
Dias depois desse acontecimento,
estava eu abastecendo o carro em um posto de combustível na zona leste da
cidade, quando senti aquele incômodo como se alguém estivesse me observando insistentemente
pelas costas. Virei-me, e me deparei com o olhar rancoroso do dito
proprietário, que me observava de pé, fora do carro. E quando viu que eu havia
me virado para observá-lo, entrou no seu veículo e se foi, sem uma palavra.
Fique, naturalmente, preocupado, pois achava que já estivesse tudo em paz com
ele.
Chegando à repartição, no dia
seguinte, tomei conhecimento de as coisas andavam um pouco complicadas em razão
da ingerência de membros do sindicato na questão. E que estes tentavam tirar
proveito da desapropriação para reivindicar mais terra para si e para algumas
outras famílias associadas à entidade. Entrei no circuito mais uma vez e falei
com o meu chefe que estava havendo uma quebra de acordo e que isso
desmoralizava completamente a instituição, além da equipe que realizara as
negociações. Fui compreendido por ele e, pouco depois o superintendente enviou
correspondência ao sindicato do município em que o imóvel estava jurisdicionado
reafirmando o compromisso anterior.
Pouco tempo depois assumi o cargo
de Superintendente Regional e pude dar cumprimento a todos os itens do acordo
firmado. Foram muitas as vezes que o fazendeiro esteve na Superintendência para
resolver questões relativas ao imóvel. Contudo, no final, foi tudo resolvido, e
até ganhei, se não a amizade, mas o respeito do ex-proprietário.
Esse foi apenas um caso que
terminou bem. Em outros, alguns colegas por esse Brasil afora perderam até
mesmo a vida em questões parecidas.
A perda de um imóvel rural,
muitas vezes em mãos de uma família há várias gerações, deixa profundas chagas
na alma do expropriado. E nem é preciso falar na perda de poder quase
ditatorial a que uma propriedade eleva a quem tem a posse de um grande
latifúndio. E por isso, a sua importância extrapola muitas vezes ao seu real valor
de mercado, transformando-se em um feudo, e conferindo ao seu proprietário imensos
poderes políticos, e até de polícia, em uma determinada região. O papel do Perito
Federal Agrário, na questão do reordenamento e redistribuição fundiária do
país, e no beneficiamento de milhares e milhares de famílias de trabalhadores
rurais sem-terra, é vital e imprescindível. E por isso mesmo é tão árduo. E muito desconfortável. E estes técnicos, em
muitas situações, têm que expor suas próprias vidas para realizar o seu mister.
Trabalho duro e mal remunerado.
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