José Pedro Araújo
Antes de entrar no centro
cirúrgico, Dr. Pedro Martins deu uma espiada pela janela do corredor e observou
o vai-e-vem dos foliões lá embaixo. Eram os últimos que insistiam em
transgredir a norma cristã de continuar com o carnaval na quarta de cinzas. Naquele instante as lembranças voaram
de encontro a um passado ainda não tão distante. O som do batuque penetrou pela
janela e aumentou o ritmo das batidas do seu coração.
Baixou a máscara cirúrgica e
respirou intensamente o ar que penetrava pela janela e entrou no recinto
asséptico, onde já lhe esperavam para mais uma intervenção médica. Enquanto
recebia as luvas, outra instrumentista amarrava os cordéis da bata azul.
Mas a sua mente estava longe, e as lembranças fluíam como nunca na sua memória:
Salvador fervia ao som dos trios elétricos que arrastavam multidões pelas
avenidas do circuito Barra-Ondina. E ele, vivendo os últimos meses da sua
carreira acadêmica, misturava-se à multidão de sambistas, sozinho, vez que se
perdera dos colegas logo no início do desfile.
De repente, no ruge-ruge daquela
tarde que já se encaminhava para o fim, viu-se envolvido por um grupo de
alegres passistas. Com elas chegou também um nível de alegria muito superior ao
que já era grandioso. E como estavam todas vestidas com o mesmo tipo de
fantasia, diferente da maré humana que trajava um tipo diferente de abadá, logo
Pedro identificou um grupo de amigas que havia saído para se divertir sem
ligação alguma com algum trio. Lindas, corpos esculturais, sambavam desinibidas, sorriso largo nos rostos inundados de alegria.
Eram seis. Meia dúzia de beldades
destacadas nesse mar apinhado de mulheres estonteantes. E ele, laçado pelo grupo
feliz, qual criança dentro de uma roda de ciranda, viu-se encantado e começou a
girar para observar melhor aqueles rostos de fada. Rápido giro, parou o olhar em uma e logo conseguiu
o que perecia impossível: fixou-se na que lhe pareceu mais bela, mais simpática,
mais alegre. Pronto. Estava lá aquela que lhe ocuparia o coração por todo o
restante do carnaval, até a quarta-feira de cinzas chegar.
Dez anos passados, ali estava ele
a rememorar, mais uma vez, aquele sorriso maroto, cintilante como as estrelas
do céu em noite sem nuvens. Mais uma vez, o batuque que ainda se ouviam advindo
de um ponto ou outro da cidade, trazia para junto de si aquela gargalhada
galhofeira, aquele lábios doces e sensuais que beijou por todo o restante do
carnaval. E foi só. Passada a quarta feira de
cinzas, procurou-a no hotel em que se hospedava e lhe veio a triste notícia:
havia partido logo na madrugada.
Passaram-se muitos carnavais, mas
não passou aquela lembrança que lhe ficaria para o resto dos seus dias. O
coração ritmado pelo som dos tantãs era comandado agora pelo som melífluo do
sorriso que tinia qual cristais em contato. Era a música que fazia o seu ser se
mexer e, inescapavelmente, levava-o àquele estado de melancolia ao relembrar
aqueles três dias de intensa paixão. E agia tão forte sobre ele, que nunca mais
se abriu para outra emoção amorosa, outra paixão, mesmo que carnavalesca. Não que
não houvesse mais voltado às ruas de Salvador para procurá-la durante os
carnavais que se seguiram. Voltou sim. Por três anos, consecutivamente. E nada
de Helena, nem um fiapo de sorriso que ao menos se assemelhasse a sua alegria
de sol rompendo nuvens condensadas de água. Depois não foi mais a sua procura. A
dor de não encontrá-la era maior do que a que lhe magoava o coração com suas
lembranças. Não voltou mais às ruas de Salvador, também. Nunca mais, durante os muitos
dias de carnaval que inundavam e espalhava a alegria pela cidade.
Certa vez, de um amigo obtivera
uma boa ideia: “procura pelas redes sociais, dissera ele. Se ainda estiver
viva, com certeza aparecerá em uma delas”. Não teve coragem de tentar. E se ela
estivesse casada, fosse já mãe. Não! Preferia ficar com aquela esperança ainda
que meio impossível, inalcançável. E assim passaram-se os anos, e o sentimento
foi se transformando em dor de perda, e o seu coração foi se fechando mais e
mais para outras emoções.
Até aquele dia em que, resoluto,
ao sair da sala de cirurgia, decidiu que já era tempo de tentar algo, fazer alguma coisa diferente. Nem que fosse para sofrer uma brutal decepção. Então,
foi direto para a sua sala e ligou o computador para acessar o Facebook. Ali,
diziam, encontraram muita gente de quem nem mais se recordavam. O coração estava
irrequieto, não podia negar, pulsante como nunca.
Ligou o computador e, no espaço
destinado à pesquisa, digitou as letras amadas: H,e,l,e, outra vez, n,a. Apareceram
uma infinidade de helenas. Precisaria digitar um sobrenome para iniciar a
filtragem. Não sabia. Nunca lhe ocorrera perguntar. Mas também, amor de
carnaval era assim: bastava um nome, e pronto. Às vezes, nem isso. Mas como lhe
fazia falta!
Decidiu-se. Começara pela
profissão. Também não sabia. Estado natal. Também não. Cidade de origem. Pior.
Quedou desanimado. E então começou a rolar lentamente na tela a infinidade de
helenas que o face lhe disponibilizara. Olhava o rosto e passava adiante. Não era
aquela. Helena disso, Helena daquilo, o rosto lhe dizia que não. Mesmo que
estivesse diferente agora, o sorriso jamais mudaria. Reconheceria de imediato. Era
certo que ela, caso estivesse ali, estivesse sorrindo. Tempos depois, já
desanimado e decidido a parar com aquilo, passou displicentemente por uma Helena
que lhe fez voltar atrás, alarmado e com o coração ao pulos: estava ali. Era ela!
Seus olhos encheram-se de
lágrimas e os dedos, tremendo, dificultavam atender ao comando do cérebro. A muito custo, foi em busca de mais informações. Pouquíssimas fotografias,
nenhuma informação sobre aquela Helena, a sua profissão, a cidade onde morava,
nada! Ficou abatido, era daquelas que pouco usava a rede, assim como ele
próprio. Desesperou-se.
Resolveu tentar, assim mesmo, um
contato. Quem sabe se dessa vez a sorte lhe sorriria! Digitou o nome amado:
“Helena?”. Não esperava resposta
imediata, estava claro. Apenas uma tentativa, pensou desanimado. E tomou um
susto quando viu aparecer uma mensagem na tela: “Quem é?”. Os dedos desobedeceram
de vez ao comando. E mesmo assim, dizer o que? Parou emocionado. E quase perde
o "time". Ainda pensou em levantar e ir embora. Mas resolveu colocar aquilo em
dia. Desse no que desse. E então respondeu: “Pedro”.
Quando a resposta lhe veio, após
passados alguns minutos, parecia ver como se as letras na tela estivessem tremidas:
“Não sei quem é”, foi a resposta. Ao invés das letras trêmulas, julgou agora vê-las decepcionadas.
Ele insistiu: “Pedro Martins, o carnavalesco de Salvador!” O tempo de resposta
foi maior. “De que carnaval?”, letrinhas emocionadas agora, mas, reticentes. “2008!”.
Nova pausa. Depois: “vi a sua foto, agora te reconheci”. Isso foi o início da
troca de mensagens, porque, depois, o diálogo fluiu e vieram somente notícias
boas, alvíssaras. “Estás casada?”. “Não! Não, divorciada!?” “Também não!
Solteira mesmo. Nunca encontrei o meu folião amado!”
Lágrimas de emoção começaram a
cair sobre o teclado, e os dedos, agora cúmplices, corriam ligeiro em busca de
mais e mais informações. “Não vou perder o "time" agora: nome completo e
endereço?” Residiam em cidades próximas, foi a surpresa seguinte.
Dia seguinte, quinta-feira comum,
sem nome, uma vez que somente a quarta-feira de cinzas recebeu um nome de batismo,
estava ele desembarcando no Aeroporto de Recife para o reencontro esperado por
longos dez anos. E ao penetrar no salão de desembarque, lá estava o rosto amado
a sorrir feliz. Mas, os últimos vinte metros que lhe separavam da mulher amada foram
os mais extenso da sua vida, e alargou demais o tempo até tê-la em seus braços
outra vez. Refletiu muito e rápido durante o trajeto, como se estivesse
recebendo as cinzas da conversão sobre a sua testa, e aduziu: a vida teria um
recomeço!
Parabéns, amigo. Excelente.
ResponderExcluirObrigado. Continue nos acompanhando.
ExcluirAdorei, continue…. Lindo!!!!!
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