A dona da casa na sala de jantar cercada por alguns netos e netas |
José Pedro Araújo
Por quanto tempo a imagem
de uma pessoa fica impregnada ao local em que habitou por um longo período?
Alguns meses? Muitos anos? Eternamente, considerando-se a eternidade como o
tempo em que permanecemos vivos? Essa pergunta veio a minha mente quando voltei
a casa onde nasci, poucos meses após o voo definitivo da minha mãe para os
campos celestiais que ela tanto cantou e almejou. Naquele momento estava a
minha irmã juntamente com minhas cunhadas a arrumar algumas coisas deixadas por
ela. Aquela casa toda tinha( e tem) a mão dela, o jeito dela, o gosto dela,
enfim. Não foi uma tarefa fácil para aquelas pessoas, obrigação que me furtei
de realizar.
No final, pegaram-se algumas
fotografias, alguns escritos com a caligrafia bem desenhada que ela se esmerava
em fazer, além de alguns poucos bricabraques que resolveram levar. O resto
ficou tudo lá, do jeito que estava. Ninguém teve coragem de remover os quadros
das paredes, os bibelôs das estantes; ou desarrumar a coleção de fotos da
família que ela mantinha em vários móveis espalhados pela casa. Mas a presença
dela está em todo o ambiente, desde a porta de entrada em que ela nos recebia
com gestos largos e sorriso alegre e cintilante.
E o que fazer então com aquela
casa que tem a sua imagem em cada canto, em cada centímetro, mesmo que
desnudada dos seus móveis? Decidimos que ficaria para o meu irmão caçula que
reside na cidade a tarefa de manter funcionando a habitação da família. Deste
modo, poderemos adentrar sempre que quisermos para matar essa saudade eterna
que habita conosco; esse sentimento arraigado no mais íntimo do nosso ser.
A propósito disto, não sei se laboramos
por uma boa causa ao passar para o meu irmão a responsabilidade de manter a
nossa casa de portas abertas e receptivas. Para ele tem sido difícil transitar
por ela e encontrar mamãe em cada pedacinho de espaço, em cada móvel espalhado
pelo seu interior. Dizia-me ele, poucos meses após a passagem da nossa mãe, que
ainda não conseguia dormir casa amada, e que por isso não havia feito a sua mudança
definitiva para lá. E ao mudar-se, tempos depois, pude observar
que manteve tudo da forma que mamãe deixou: os móveis, os eletrodomésticos, os
quadros nas paredes, as louças na cristaleira e as panelas no paneleiro. Tudo
como ela deixou. Não teve coragem de mexer em nada ainda, dar uma arrumação à
casa à sua feição e gosto.
Talvez não tenhamos sido tão
camarada ao deixarmos a responsabilidade com ele de cuidar do espaço que mamãe
organizou para nós e que nos traz tantas lembranças. A presença quase física
de mamãe naquela casa termina por se transformar em um fardo para ele na hora de
proceder alguma mudança no ambiente que agora é seu e da sua mulher. Apesar de
termos lhe dito que, como a casa agora é sua, poderá arrumá-la da forma que bem
lhe aprouver. Mas isso, bem sei, virá com o tempo, quando as saudades estiverem
bem agasalhadas e transformadas em lembranças felizes.
Já tinha sido difícil habitar
naquela velha casa depois que papai partiu. As suas lembranças também ficaram
em todos os cantos, e lá permanecem. Mas tínhamos o atenuante de encontrar lá o
sorriso cativante dela, a sua alegria quando nos recebia para alguns dias de
convívio com o nosso passado tão saudoso. Agora as coisas ficaram bem mais difíceis.
Daí a pergunta: foi um gesto de bondade passar a casa em que as digitais da
nossa mãe, e do nosso pai, estão em todos os centímetros quadrados do seu
espaço amado?
Ocorreu-me de escrever o presente
texto depois que eu li uma crônica intitulada “Recordações da Província na
Metrópole”, da lavra da acadêmica Ceres da Costa Fernandes, imortal da Academia
Maranhense de Letras, com residência no Rio de Janeiro. No texto muito bem
elaborado e emotivo, ela relata o que sentiu ao ter que desocupar um apartamento
que pertencera à sua mãe para pô-lo à venda. A cronista lembrou-se de uma
canção francesa que aprendera na sua infância em que um menino tentava vender
uma gaiola que pertencera a um canário que já não existia mais. “Mon Canari
s’est Envolé”.
Assim nos sentimos nós. Mas, como
passar adiante uma casa que tantas recordações nos traz, sem nela entrar? Que
fique então com quem pode manter um pouco das suas vivas lembranças, mesmo que
apenas parte delas, e que possamos adentrar a ela com o sentimento de ainda nos
pertencer. Desculpe, meu irmão, mas o ônus maior caiu sobre os teus ombros.
Ficou contigo a tarefa de manter vivo o ambiente alegre que nossos pais
construíram para nós, e que tantas lembranças nos traz.
Como dizer parabéns por uma obra de profunda tristeza? Como ficar imóvel diante de um texto tão bem elaborado? Procurar palavras de consolo se torna debalde diante da expressividade do exposto. Eu gostei muito da obra literária e como dificilmente eu faria melhor, digo: Parabéns.
ResponderExcluirObrigado pelo incentivo. É disso que vive o pequeno escriba. Continue a nos honrar com a sua presença e com seus comentários tão bem alinhavados.
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