HORIZONTINA - Propriedade da família Araújo |
José Pedro Araújo
Quando o dia começa assim escuro,
enfarruscado e com o sol totalmente encoberto por nuvens espessas de chuva, me
vem a lembranças de invernos passados (assim conhecemos o período chuvoso no
nordeste, único inverno que conhecemos), quando as chuvas caíam torrenciais,
insistentes, sobre a minha terra. A água despejada à potes enchia rios e
igarapés que transbordavam e se espraiavam sobre as várzeas e campos baixos. Às
vezes passávamos dias com esse fenômeno benfazejo que traz de volta o verde
para as matas ,a alegria aos pássaros, e a fartura aos lares nordestinos.
Quando as primeiras chuvas de
dezembro molham a terra, o agricultor sai de casa, enxada no ombro, assobiando
melodias alegres pelos caminhos agora húmidos e vão escavacar a terra e jogar a
semente sobre o solo apetitoso e ávido por fazê-las engravidar e parir bons
frutos. Dois meses depois desse começo esperançoso é época de colher os
primeiros produtos: a melancia, o milho, o feijão verde, o melão ou o meluí -
pequenos melões ovalados, casca branca e sabor inesquecível de roça nova. Depois
virão o arroz e, finalmente, muitos meses depois, a mandioca.
Era nesse período intermediário que
a garotada visitava as roças da família ou dos parentes, para um dia muito
alegre no campo. Um costume, que acredito ter advindo dos indígenas que
habitavam a região, era as pequenas choças encravadas no meio da roça, cercadas
pelo milharal e pelo arrozal por todos os lados. Essas pequenas choupanas, de
uso temporário, sem paredes e com teto coberto pela palma do babaçu, servem de
abrigo para os agricultores durante o período em que a roça estiver em
atividade. Ali eles instalam a cozinha
provisória (normalmente três pedras grandes e uma trempe sobre elas), penduram
redes e constroem pequenos jiraus para servirem de armário ou de assento. E são
de uma utilidade à toda prova, dada a alternância de chuvas fortes durante o
dia, ou do sol que despeja seus raios inclementes sobre a terra, nem bem a
chuva passa. Também servem de paiol para abrigar a colheita farta.
Quando era tempo de melancia ou
de milho verde, costumávamos ir para a Preguiça, região onde os Barros tinham
as suas propriedades, e ainda as têm. Apesar de muito próxima da cidade, os
caminhos se transformavam em verdadeiro desafio para os transeuntes. A água
abundante amolecia o barro visguento, enchia as várzeas e engordava os rios e
riachos, transformando o curto trajeto em uma prova de resistência e coragem. Depois
de superar os atoleiros vinha, em primeiro lugar, o Sucuruiú, um riacho que
tomava uma largura muito grande e formava uma correnteza que assustava os
visitantes de primeira viagem. Como não havia ponte, passávamos sobre uma
pinguela de madeira, de um tronco só, comprida e escorregadia para pés
enlameados.
Atravessado esse primeiro
obstáculo, tínhamos mais desafios pela frente, pois em determinados trecho do
caminho a água chegava à altura do peito, tínhamos que vadeá-la até chegarmos a
terreno mais alto. Ai se chegava ao rio Preguiça. Ali a correnteza era mais
forte e o processo de superá-lo o mesmo: por sobre uma pinguela de madeira
roliça. As águas remansosas do rio impunham mais respeito e temor, mas quem o
superasse estaria em breve degustando as melancias mais doces que se podem
querer. Ou comer o milho verde mais saboroso de que eu me lembro de já ter saboreado.
Milho sem agrotóxico; milho natural, não transgênico, igual ao que os primeiros
habitantes consumiam, os índios.
Saíamos pela roça dentro em busca
das melancias mais saborosas, aplicando piparotes no fruto escolhido para
sabermos se estava no ponto de consumo, e quando não a abríamos logo ali,
colhíamos e levávamos para o rancho para comê-la solidariamente com outros. Apreciava
ficar com a cascar para raspar e tomar o caldo saboroso que restava nela. Era
uma festa. Enquanto isso, o milho estava assando sobre as brasas para ser
consumido em seguida.
E no fogão improvisado, o almoço
era preparado para logo mais, gostoso, cheiroso, imperdível. Este, depois de
pronto, era arrumado em uma bacia grande da seguinte forma: primeiro uma camada
de arroz, sobre ela o feijão, outra camada de arroz e, finalmente, a carne e o
caldo era derramado em cima daquela montanha de comida. Nessa altura a fome tomava
conta de todos nós, pois já havíamos tomado banho de rio e tramado todo o tipo
de brincadeiras. Exercitáramos muito, enfim. E isso avultava a nossa fome.
Às vezes também a chuva vinha dar
um toque especial e caía volumosa sobre o teto de palha, escorrendo ligeira e ciciante
para o leito do Preguiça que ficava logo ali próximo. Dia frio, com chuva,
parece que a fome aumenta. E nesses dias, ela reclama comida farta. Era o que
tínhamos ali naquele piquenique improvisado na roça: comida gostosa e volumosa.
Como eu ia dizendo, alimento perfeitamente
arrumado dentro da bacia era a hora de chamar a meninada para o banquete.
Sentávamos em torno dela, mesmo no chão, cada um com uma colher na mão, e nos
debruçávamos sobre a tarefa gostosa de desmanchar a arrumação que se tinha
feito naquela bacia, de derrubar a montanha de comida. Mais um tempo e não
restava nada no fundo do recipiente anteriormente arrumado com esmero. Alguns,
normalmente os mais velhos, esticavam as redes e descansavam confortavelmente
deitados, enquanto outros, normalmente a meninada, saia pela roça em busca do
quê fazer. E assim passava o dia: comida, banho de rio, às vezes pescaria,
brincadeiras, uma alegria só.
À tarde, antes da chuva das cinco
horas, presença constante e com hora marcada, era a hora de retornar para casa.
A mesma dificuldade da vinda, só que um pouco mais cansados. Mas valia a pena.
Como valia. Caminhar por sob as árvores, mesmo pelo lamaçal, era gostoso
demais. É essa recordação que me vem em dias em que a chuva começa logo muito
cedo, e o dia fica com aquela cara de roça de melancia.
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