sexta-feira, 9 de março de 2018

LEMBRANÇAS DE OUTROS INVERNOS

HORIZONTINA - Propriedade da família Araújo



José Pedro Araújo

Quando o dia começa assim escuro, enfarruscado e com o sol totalmente encoberto por nuvens espessas de chuva, me vem a lembranças de invernos passados (assim conhecemos o período chuvoso no nordeste, único inverno que conhecemos), quando as chuvas caíam torrenciais, insistentes, sobre a minha terra. A água despejada à potes enchia rios e igarapés que transbordavam e se espraiavam sobre as várzeas e campos baixos. Às vezes passávamos dias com esse fenômeno benfazejo que traz de volta o verde para as matas ,a alegria aos pássaros, e a fartura aos lares nordestinos.
Quando as primeiras chuvas de dezembro molham a terra, o agricultor sai de casa, enxada no ombro, assobiando melodias alegres pelos caminhos agora húmidos e vão escavacar a terra e jogar a semente sobre o solo apetitoso e ávido por fazê-las engravidar e parir bons frutos. Dois meses depois desse começo esperançoso é época de colher os primeiros produtos: a melancia, o milho, o feijão verde, o melão ou o meluí - pequenos melões ovalados, casca branca e sabor inesquecível de roça nova. Depois virão o arroz e, finalmente, muitos meses depois, a mandioca.
Era nesse período intermediário que a garotada visitava as roças da família ou dos parentes, para um dia muito alegre no campo. Um costume, que acredito ter advindo dos indígenas que habitavam a região, era as pequenas choças encravadas no meio da roça, cercadas pelo milharal e pelo arrozal por todos os lados. Essas pequenas choupanas, de uso temporário, sem paredes e com teto coberto pela palma do babaçu, servem de abrigo para os agricultores durante o período em que a roça estiver em atividade.  Ali eles instalam a cozinha provisória (normalmente três pedras grandes e uma trempe sobre elas), penduram redes e constroem pequenos jiraus para servirem de armário ou de assento. E são de uma utilidade à toda prova, dada a alternância de chuvas fortes durante o dia, ou do sol que despeja seus raios inclementes sobre a terra, nem bem a chuva passa. Também servem de paiol para abrigar a colheita farta.
Quando era tempo de melancia ou de milho verde, costumávamos ir para a Preguiça, região onde os Barros tinham as suas propriedades, e ainda as têm. Apesar de muito próxima da cidade, os caminhos se transformavam em verdadeiro desafio para os transeuntes. A água abundante amolecia o barro visguento, enchia as várzeas e engordava os rios e riachos, transformando o curto trajeto em uma prova de resistência e coragem. Depois de superar os atoleiros vinha, em primeiro lugar, o Sucuruiú, um riacho que tomava uma largura muito grande e formava uma correnteza que assustava os visitantes de primeira viagem. Como não havia ponte, passávamos sobre uma pinguela de madeira, de um tronco só, comprida e escorregadia para pés enlameados.
Atravessado esse primeiro obstáculo, tínhamos mais desafios pela frente, pois em determinados trecho do caminho a água chegava à altura do peito, tínhamos que vadeá-la até chegarmos a terreno mais alto. Ai se chegava ao rio Preguiça. Ali a correnteza era mais forte e o processo de superá-lo o mesmo: por sobre uma pinguela de madeira roliça. As águas remansosas do rio impunham mais respeito e temor, mas quem o superasse estaria em breve degustando as melancias mais doces que se podem querer. Ou comer o milho verde mais saboroso de que eu me lembro de já ter saboreado. Milho sem agrotóxico; milho natural, não transgênico, igual ao que os primeiros habitantes consumiam, os índios. 
Saíamos pela roça dentro em busca das melancias mais saborosas, aplicando piparotes no fruto escolhido para sabermos se estava no ponto de consumo, e quando não a abríamos logo ali, colhíamos e levávamos para o rancho para comê-la solidariamente com outros. Apreciava ficar com a cascar para raspar e tomar o caldo saboroso que restava nela. Era uma festa. Enquanto isso, o milho estava assando sobre as brasas para ser consumido em seguida.
E no fogão improvisado, o almoço era preparado para logo mais, gostoso, cheiroso, imperdível. Este, depois de pronto, era arrumado em uma bacia grande da seguinte forma: primeiro uma camada de arroz, sobre ela o feijão, outra camada de arroz e, finalmente, a carne e o caldo era derramado em cima daquela montanha de comida. Nessa altura a fome tomava conta de todos nós, pois já havíamos tomado banho de rio e tramado todo o tipo de brincadeiras. Exercitáramos muito, enfim. E isso avultava a nossa fome.
Às vezes também a chuva vinha dar um toque especial e caía volumosa sobre o teto de palha, escorrendo ligeira e ciciante para o leito do Preguiça que ficava logo ali próximo. Dia frio, com chuva, parece que a fome aumenta. E nesses dias, ela reclama comida farta. Era o que tínhamos ali naquele piquenique improvisado na roça: comida gostosa e volumosa.
Como eu ia dizendo, alimento perfeitamente arrumado dentro da bacia era a hora de chamar a meninada para o banquete. Sentávamos em torno dela, mesmo no chão, cada um com uma colher na mão, e nos debruçávamos sobre a tarefa gostosa de desmanchar a arrumação que se tinha feito naquela bacia, de derrubar a montanha de comida. Mais um tempo e não restava nada no fundo do recipiente anteriormente arrumado com esmero. Alguns, normalmente os mais velhos, esticavam as redes e descansavam confortavelmente deitados, enquanto outros, normalmente a meninada, saia pela roça em busca do quê fazer. E assim passava o dia: comida, banho de rio, às vezes pescaria, brincadeiras, uma alegria só.
À tarde, antes da chuva das cinco horas, presença constante e com hora marcada, era a hora de retornar para casa. A mesma dificuldade da vinda, só que um pouco mais cansados. Mas valia a pena. Como valia. Caminhar por sob as árvores, mesmo pelo lamaçal, era gostoso demais. É essa recordação que me vem em dias em que a chuva começa logo muito cedo, e o dia fica com aquela cara de roça de melancia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário