quinta-feira, 26 de abril de 2018

A HISTÓRIA DE PRESIDENTE DUTRA (A rede de dormir) - Parte 10.

Gravura de Percy Lau


José Pedro Araújo

O costume do uso da rede de dormir - Há consenso de que a rede de dormir, também chamada pelos nordestinos em tempos idos “cama-da-terra”, seja uma invenção dos indígenas. Alguns historiadores também creditam aos missionários sua disseminação por todo o território brasileiro. Portanto, no período colonial, era a rede o principal instrumento de dormir dos brasileiros de norte a sul da colônia.
Se, com o tempo, esse costume foi sendo deixado de lado pelos sulistas, em decorrência do clima mais frio, aqui no norte e nordeste o hábito continuou firme. A propósito disto, o IBGE realizou um estudo circunstanciado sobre o assunto e  editou um excelente trabalho intitulado “Tipos e Aspectos do Brasil”. Nele trata, entre outras coisas, das “fazedeiras de redes”: [.. ] “parece que alguns usos e costumes estão tão arraigados e são tão originais como forma de relação entre o homem e o meio, que dificilmente serão modificados. A antiguidade e a difusão de uso da rede de dormir enquadra-se na afirmação”.
E continua discorrendo sobre as vantagens do uso da rede, afirmando no final: [...] “a simplicidade de uso, facilidade de transporte e a sua perfeita integração ao clima quente das baixas latitudes, parecem assegurar no nordeste brasileiro, constância ilimitada do seu uso”.

A felicidade do autor Bernardo Issler é inquestionável ao discorrer sobre o assunto. A integração da rede de dormir ao costume do nordestino, em especial do maranhense, é total e indissolúvel, uma vez que apenas os chefes de família possuíam camas em seus dormitórios, num passado não muito remoto. E mesmo assim, ao lado da cama sempre existia uma rede armada para o último sono da madrugada, ou o primeiro da noite de descanso da interminável labuta.  
Dada à importância desse objeto tão simples, e ao mesmo tempo indispensável, também era comum existirem nas casas teares manuais para a feitura de redes e mantas. A importância da rede logo deu causa ao aparecimento da primeira profissão para mulheres: a de fazedeiras de rede. E quem não sabia fazê-la, comprava de quem sabia. De maneira que todo mundo possuía redes, algumas de melhor qualidade, com vistosas varandas, enquanto que outras eram bem mais simples e menores, como as que eram usadas geralmente pelas crianças. Mas todos, invariavelmente, possuíam a sua “tipóia”.
É certo que, atualmente, as pessoas, na maioria das vezes sob influência dos meios de comunicação, abdicam do uso confortável da rede em troca de camas para dormir. A troca, em épocas de maior calor, não é nem um pouco vantajosa, mas, mesmo assim, alguns acham que o quarto fica mais bonito, diante de vistosas camas com seus lençóis e fronhas rendados ou bordados. Contudo, o uso da rede nunca será posto de lado aqui no nordeste brasileiro. Poderá ela até perder um pouco da sua importância, mas nunca deixará de existir como uma fuga para os dias quentes. Até mesmo na capital do estado, nas sacadas dos imponentes edifícios residenciais é possível ver lá no alto, balançando ao vento, uma bela rede colorida.
Assim, a fabricação de redes, como já citado, proporcionou o aparecimento das fazedeiras de rede, com seus teares de madeira, quase sempre de pau d’arco, ocupando espaço nas salas. Trabalhosas, as redes levam até dez dias para ficarem completamente prontas, posto que a operária tem que realizar suas tarefas de casa também. Alegam, contudo, que só precisariam de cerca de dois dias para concluir o trabalho de uma rede mais simples, se houvesse dedicação exclusiva ao mister.
Voltando ao assunto anterior, quando dizíamos da profissão de artesã de rede, o certo é que elas somavam um ganho extra à combalida renda familiar através da venda desse produto tão aceito pelo mercado. Quando criança presenciei o trabalho cuidadoso e meticuloso que empreendia uma tia minha no seu tear instalado na espaçosa e simples sala de estar. Impressionava-me a sua habilidade e paciência na tessitura do tecido que iria compor mais uma rede para a sua infindável coleção de filhos.
Hoje essa profissão está quase extinta na região em razão do aparecimento das redes tipo “lembrança do Ceará” e do brim sol-a-sol. Na maioria das vezes, elas são produzidas em larga escala, e comercializadas pelos vendedores de porta em porta. Mas essas possuem qualidade baixa, nunca substituirão aquele tipo mais luxuoso feito por mãos especialmente hábeis no interior de casas muito simples.
Por tudo o que relatamos acima, o fato é que o costume de dormir nessas “camas-da-terra”, continua imperando em nosso meio. E pelo visto, é um costume que não tem data para terminar.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

A CASA DOS MEUS PRIMEIROS DIAS

A dona da casa na sala de jantar cercada por alguns netos e netas


José Pedro Araújo

Por quanto tempo a imagem de uma pessoa fica impregnada ao local em que habitou por um longo período? Alguns meses? Muitos anos? Eternamente, considerando-se a eternidade como o tempo em que permanecemos vivos? Essa pergunta veio a minha mente quando voltei a casa onde nasci, poucos meses após o voo definitivo da minha mãe para os campos celestiais que ela tanto cantou e almejou. Naquele momento estava a minha irmã juntamente com minhas cunhadas a arrumar algumas coisas deixadas por ela. Aquela casa toda tinha( e tem) a mão dela, o jeito dela, o gosto dela, enfim. Não foi uma tarefa fácil para aquelas pessoas, obrigação que me furtei de realizar.

No final, pegaram-se algumas fotografias, alguns escritos com a caligrafia bem desenhada que ela se esmerava em fazer, além de alguns poucos bricabraques que resolveram levar. O resto ficou tudo lá, do jeito que estava. Ninguém teve coragem de remover os quadros das paredes, os bibelôs das estantes; ou desarrumar a coleção de fotos da família que ela mantinha em vários móveis espalhados pela casa. Mas a presença dela está em todo o ambiente, desde a porta de entrada em que ela nos recebia com gestos largos e sorriso alegre e cintilante.

E o que fazer então com aquela casa que tem a sua imagem em cada canto, em cada centímetro, mesmo que desnudada dos seus móveis? Decidimos que ficaria para o meu irmão caçula que reside na cidade a tarefa de manter funcionando a habitação da família. Deste modo, poderemos adentrar sempre que quisermos para matar essa saudade eterna que habita conosco; esse sentimento arraigado no mais íntimo do nosso ser.

A propósito disto, não sei se laboramos por uma boa causa ao passar para o meu irmão a responsabilidade de manter a nossa casa de portas abertas e receptivas. Para ele tem sido difícil transitar por ela e encontrar mamãe em cada pedacinho de espaço, em cada móvel espalhado pelo seu interior. Dizia-me ele, poucos meses após a passagem da nossa mãe, que ainda não conseguia dormir casa amada, e que por isso não havia feito a sua mudança definitiva para lá. E ao mudar-se, tempos depois, pude observar que manteve tudo da forma que mamãe deixou: os móveis, os eletrodomésticos, os quadros nas paredes, as louças na cristaleira e as panelas no paneleiro. Tudo como ela deixou. Não teve coragem de mexer em nada ainda, dar uma arrumação à casa à sua feição e gosto.

Talvez não tenhamos sido tão camarada ao deixarmos a responsabilidade com ele de cuidar do espaço que mamãe organizou para nós e que nos traz tantas lembranças. A presença quase física de mamãe naquela casa termina por se transformar em um fardo para ele na hora de proceder alguma mudança no ambiente que agora é seu e da sua mulher. Apesar de termos lhe dito que, como a casa agora é sua, poderá arrumá-la da forma que bem lhe aprouver. Mas isso, bem sei, virá com o tempo, quando as saudades estiverem bem agasalhadas e transformadas em lembranças felizes.

Já tinha sido difícil habitar naquela velha casa depois que papai partiu. As suas lembranças também ficaram em todos os cantos, e lá permanecem. Mas tínhamos o atenuante de encontrar lá o sorriso cativante dela, a sua alegria quando nos recebia para alguns dias de convívio com o nosso passado tão saudoso. Agora as coisas ficaram bem mais difíceis. Daí a pergunta: foi um gesto de bondade passar a casa em que as digitais da nossa mãe, e do nosso pai, estão em todos os centímetros quadrados do seu espaço amado?

Ocorreu-me de escrever o presente texto depois que eu li uma crônica intitulada “Recordações da Província na Metrópole”, da lavra da acadêmica Ceres da Costa Fernandes, imortal da Academia Maranhense de Letras, com residência no Rio de Janeiro. No texto muito bem elaborado e emotivo, ela relata o que sentiu ao ter que desocupar um apartamento que pertencera à sua mãe para pô-lo à venda. A cronista lembrou-se de uma canção francesa que aprendera na sua infância em que um menino tentava vender uma gaiola que pertencera a um canário que já não existia mais. “Mon Canari s’est Envolé”.

Assim nos sentimos nós. Mas, como passar adiante uma casa que tantas recordações nos traz, sem nela entrar? Que fique então com quem pode manter um pouco das suas vivas lembranças, mesmo que apenas parte delas, e que possamos adentrar a ela com o sentimento de ainda nos pertencer. Desculpe, meu irmão, mas o ônus maior caiu sobre os teus ombros. Ficou contigo a tarefa de manter vivo o ambiente alegre que nossos pais construíram para nós, e que tantas lembranças nos traz.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

A HISTÓRIA DE PRESIDENTE DUTRA (Parte 9) - Sem Água Encanada e Luz Elétrica

Lamparina à querosene, ferro de engomar à brasa e copos de cerâmica



José Pedro Araújo

A vida sem água encanada e luz elétrica As dificuldades enfrentadas pelos primeiros ocupantes da vila do Curador não diziam respeito apenas ao problema do isolamento, da insalubridade, ou mesmo da ameaça constante de animais selvagens ou peçonhentos. A falta de um manancial de água corrente permanente era um dos maiores obstáculos enfrentado pela população, vez que os dois pequenos rios que cortam a região são temporários. Se para abastecer os animais não havia problema, para fazer frente à necessidade diária humana isto era um agravante que atormentava a todos.
            Além do trabalho que dava captar água de pequenas nascentes, ou de poços perfurados nos quintais das casas, infligia à população graves problemas de saúde causados especialmente pela larga taxa de verminose que atacava a todos, a meninada em especial. Além disto, havia ainda problemas com a higiene, causados especialmente pela falta de produtos para a limpeza das casas e a desinfecção dos aparelhos sanitários. Por conta disso, se fazia necessário o uso de latrinas rudimentares no fundo do quintal, e muitos se utilizavam da Creolina como desinfetante. Utilizar esses sanitários rudimentares que ainda por cima se situavam no quintal, em razão do cheiro forte que exalavam, constituía-se em terrível desconforto, e um problema grave de higiene, como já dissemos.
Como seria possível, em razão do tamanho da cidade, viver-se sem a água jorrando diretamente das torneiras para fazer face a gama de utilidades que ela possui?
O aparecimento de caixas d’água para armazenar o líquido precioso foi outra novidade que chegou para benefício dos mais abastados. Somente estes possuíam condições financeiras para instalar uma destas, já que, junto com ela, deveria se instalar também um grupo gerador de energia para elevar a água do poço até este depósito.
Portanto, tomar uma chuveirada não era coisa para qualquer um. Somente uns poucos privilegiados detinham este poder. Impossível pensar uma situação desta nos dias de hoje.
Ouçam o depoimento do descendente de canadenses, Dugal Smith, nascido em Barra do Corda, e emigrado para os Estados Unidos da América há muitos anos. Descrevendo, para os americanos, como se vivia na nossa região lá pelos anos vinte ou trinta, ele discorre assim:

“A vida em geral era rústica. Com a falta de encanação e purificação da água, esta era trazida diariamente do rio, por membros da família ou empregados, e postas em potes de barro para ser mantida fria. O pior era que muitas vezes se viam animais mortos – vacas, cavalos, cachorros – descendo água abaixo em galhos de árvores às margens do rio. Os mais privilegiados pagavam alguém para trazer água para casa. O transporte era na costa de jumento – quatro latas de querosene, duas de cada lado. Se a água não fosse consumida no mesmo dia, tinha que ser jogada fora, pois que em vinte e quatro horas se viam nadando no pote grande quantidade de larvas de insetos, cabeças de prego, etc.”(Fazendo Progresso, p. 40/41, 198).

Se a água para beber era apanhada em nascentes como a que ficava próxima a lagoa do Binga, ou do lado riacho Firmino, lavar roupas era um exercício de paciência. As mulheres desciam a rua com as trouxas de roupa na cabeça para lavá-las nas lagoas, muitas vezes distante de suas casas. Somente anos depois apareceu a figura da lavadeira profissional para lavar a roupa dos mais abastados. A lavagem, nesse caso, também era realizada nas lagoas ou nos riachos.
E quando a noite chegava com a sua escuridão cobrindo tudo, trazia consigo outro problema não menos grave: a falta de luz elétrica. Para combater a escuridão, utilizava-se de pequenas candeias, a lamparina, cuja fabricação era feita por pequenos artesãos funileiros. A partir de latas de óleo vazias, estes artífices elaboravam pequenos vasos para depositar o querosene, encimados por um bico vazado por onde passava o pavio feito de algodão, também chamado de murrão. 
O sucedâneo da lamparina foi o candeeiro. Com mangas de vidro, essa luminária evitava que o vento apagasse continuamente a chama. Apareceram como ótima novidade, para depois, em outra fase, serem substituídos pelo eficiente candeeiro a gás, com seu facho de luz abrangendo uma área bem maior.
Nas cidades maiores, desde a idade média, as ruas eram iluminadas por lâmpadas a óleo ou a gás, acesas todos os finais de tarde por funcionários com varetas especiais em cuja ponta ardia uma pequena chama. Mais tarde, esses mesmos cidadãos faziam o caminho inverso para apagá-las. Isso só ocorria nas cidades mais desenvolvidas. Em pequenos povoados como o Curador, antes da chegada da luz elétrica, as ruas permaneciam em completa escuridão, posto que não se contava com as tais lâmpadas à gás para clareá-las. As pessoas, ao saírem de casa, defendiam-se da escuridão carregando seus candeeiros, depois substituídos por outros à pilha, um avanço considerável.
Em nossas pesquisas encontramos a cópia de um Decreto assinado pelo governador de então, no qual destacava determinada soma de recursos do orçamento estadual para a implantação de um sistema público de iluminação das ruas do velho Curador através dos conhecidos Petromax, lampiões à gás. Não conseguimos saber se isso de fato aconteceu. Ou por não terem sido liberados os recursos lá descritos, ou mesmo por desvio de finalidade no seu emprego. O certo é que ninguém testemunhou para nós afirmando que isso tenha ocorrido.
As bicicletas também ganharam seus faróis, acesos à partir de um pequeno dínamo preso junto à roda traseira, iluminando a rua e permitindo o trânsito à noite. Foi um salto muito grande o aparecimento desse instrumento “moderno”, que permitia o tráfego desses veículos nas noites escuras do sertão. Muito caros, a principio, somente alguns poucos privilegiados conseguiam comprá-lo, dado o baixo poder aquisitivo dos moradores.
Quem hoje aperta um pequeno interruptor para acender uma luz, ou transita à noite por ruas tão claras como se fosse dia, custa a acreditar que os desbravadores desta terra passavam por problemas de tal magnitude há pouco mais de trinta anos atrás. As facilidades que temos hoje são conquistas de um povo que soube esperar pelo futuro, sem esmorecer nunca frente aos desafios que enfrentavam. Se abrir uma geladeira para apanhar água gelada ou entrar em um box de banheiro para tomar um banho rápido se constitui em uma tarefa simples, num passado não tão distante assim, era uma coisa fora da realidade, quer se tivesse condições financeiras ou não. A vida ficou muito mais fácil para todos.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

As Minhas Copas do Mundo de Futebol (5)



José Pedro Araújo

Como passa rápido esse interstício entre uma copa do mundo e outra. São quatro anos relâmpagos, talvez porque entre o final de uma copa e o começo de outra temos as olimpíadas, e depois a Copa das Confederações. Não sei. O que sei é que quando menos nos espantamos, já estamos brigando nas eliminatórias para tentar uma vaga para o próximo mundial. Pela primeira vez o país ganhador do último campeonato teve que disputar as eliminatórias, pois apenas o país anfitrião estava classificado antecipadamente. E lá fomos nós em busca da nossa vaga para confirmar o fato de sermos o único país do mundo a disputar todas as copas realizadas até então.

O Brasil ainda chegou a se oferecer para disputar a copa de 2006, mas tinha concorrentes fortes para esse jogo fora dos gramados que, como ficou provado mais tarde, é bastante sujo, onde a compra de voto corre solta. Assim, estrategicamente, o Brasil retirou o nome da disputa para sediar o certame e apoiou a África do Sul, pensando em obter os votos dos membros do continente africano para a disputa seguinte. Mas deu Alemanha.

Então, fomos disputar as eliminatórias. Não fomos mal, e ficamos em primeiro lugar do grupo da América do sul. Estávamos pronto para defender o nosso título de último campeão do mundo no velho país europeu, um dos grandes do futebol mundial. Levamos uma seleção que impunha respeito pois contava com Kaká, Adriano, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo Fenômeno. Tínhamos chances reais de brigar pelo hexa campeonato.

O sorteio nos colocou, na primeira fase, em um grupo tranquilo, juntos com Croácia, Japão e Austrália. Vencemos as três partidas e fomos para as oitavas-de-final contra a seleção de Gana, a quem impusemos uma vitória sem contestação por 3x0. Nessas alturas já estávamos empolgadíssimo com a seleção brasileira e a cada jogo o número de torcedores aumentava na nossa casa. Meus filhos já estavam numa fase em que os amigos são muitos, e eles mesmos se encarregavam em organizar o evento. Mas a nossa animação vinha de antes. Depois das eliminatórias, confiantes na força do grupo que iria para a Alemanha, compramos uma tevê nova. A escolhida desta vez  foi uma Sony LED Bravia de 40 polegadas. Como evoluímos desde a copa de 66 quando ouvíamos as partidas através de um rádio SEMP de pilhas, por não termos energia por essa época na cidade!

Ia esquecendo-me de dizer que alguns meses antes do início das competições montávamos o Álbum de Figurinhas da Copa. Comecei a organizar o primeiro para o meu filho recém-nascido ainda na copa do mundo de 1982. E desde então damos sequencia a esta tradição que tem o dom de nos aproximar da competição antes mesmo que ela comece. O Álbum da 2006 já era montado pelos meus filhos, que faziam de tudo para concluí-lo antes dos primeiros jogos. E valia tudo mesmo, desde a simples aquisição dos saquinhos com os cinco cromos nas bancas de revistas, a troca com os colegas, e até mesmo a aposta no jogo de bafo. Tudo era motivo para arranjar uma figurinha que nos estivesse faltando no nosso álbum.

Voltando à copa daquele ano, animação nas alturas, inflada jogo a jogo, passamos paras as quartas-de-final. Os adversários seriam os franceses de Zidane. Aquele mesmo país que nos havia desmoralizado em Saint-Denis, quando perdemos a final pelo placar acachapante de 3x0. Chegara o dia da vingança.

Mas, o Brasil encontrou Zidane em uma fase esplendorosa, e apesar de não termos jogado mal, perdemos o jogo pelo placar de 1x0. Foi uma ducha de água fria. Para as semifinais a torcida na minha casa estava reduzida somente aos membros da família. E na final, bateu aquela tristeza de ver a Itália com uma seleção voluntariosa apenas, mas fraca individualmente, bater os franceses nas penalidades, depois de ter desqualificado os donos da casa na semifinal. A Itália sagrou-se campeã do mundo com méritos, mas com um futebol feio e retrancado.

Fazer o quê? Guardamos o nosso álbum de figurinhas, juntamos as nossas tralhas de decoração, e fomos curtir a nossa decepção com uma enorme dor de cotovelos. Agora era esperar a copa seguinte que seria disputada, agora sim, na África do Sul. Pela primeira vez o torneio seria disputado em um país africano. Dois anos depois tinha início às competições para definir quem ia para a África em 2010. Esperávamos seguir com a escrita de nunca faltar a esse compromisso tão importante para nós brasileiros.

Depois de nos classificarmos em primeiro na zona Sul Americana, e de vermos a Argentina amargar um quarto lugar, partimos confiantes para o país daquela copa. Mas, antes disso, ganhamos outra vez a Copa das Confederações, pela terceira vez, torneio preparatório que antecede à principal competição de futebol mundial.  Kaká e Luís Fabiano, ganhadores dos principais prêmios na Copa das Confederações, eram as nossas principais esperanças de título. Kaká, aliás, havia sido escolhido o melhor jogador do mundo três anos antes, e depositávamos as nossas maiores esperanças no craque do Real Madrid.

Na minha casa partimos para organizar os nossos jogos mais uma vez. Com alguma parcimônia na compra de bandeiras e camisas. Talvez não estivéssemos tão confiantes em razão dos últimos reveses. O certo é que foi só a bola rolar, e já estávamos no clima da copa. Ganhamos os nossos dois primeiros jogos e empatamos o terceiro com Portugal, classificando-nos em primeiro do grupo. Não foi nada muito animador, não jogamos aquele futebol de encher os brasileiros de urgulho. Precisávamos engrenar melhor, mas sempre havia a promessa de crescimento durante a competição para chegar tinindo no final do torneio. Nesse mesmo tempo, as duas últimas campeãs do mundo, França e Itália, não conseguiram passar da primeira fase e voltaram cabisbaixas para casa.
O nosso Álbum de Figurinhas da Copa já estava completo também.

Tentamos animar a torcida na nossa casa, e até reforçamos os comes-e-bebes para dar uma cara melhor de Copa do Mundo. Nas oitavas-de-final batemos o Chile com folga, 3x0. Estávamos melhorando, mas pegaríamos um osso duro nas quartas-de-final, a Holanda. Agora a Copa estava no nosso sangue, a animação era total. O jogo haveria de ser realizado no estádio Nelson Mandela Bay, e nós estávamos prontos para encarar uma seleção que era sempre difícil de ser batida, mas sobre a qual obtivemos vitórias nos últimos confrontos.

Fizemos um jogo horroroso, Felipe Melo aprontou das suas, e perdemos com um gol de cabeça do jogador mais baixo da seleção adversária, Sneijder. Do mesmo modo que a temperatura havido subido com as vitórias da seleção brasileira, caiu vertiginosamente como um balão vazio. Voltamos para casa mais uma vez ao parar nas quartas. Na final a Espanha se sagrou campeã, como todos já sabem, batendo a Holanda que amargou mais um vice-campeonato. Assistimos a final com aquele sentimento de que vença o melhor. Nada mais importava para nós. De bom nessa copa só a presença de Nelson Mandela, um ícone para todos os adeptos da liberdade, um homem acima de todas as suspeitas, diferente de uns e outros que tentaram nos enganar por aqui ao posar de bom moço. Mas, deixa isso pra lá, que em 2014 a Copa seria em nossa casa e precisaríamos nos preparar, pois a nossa seleção estava envelhecida e seria preciso trocar algumas peças.


quarta-feira, 11 de abril de 2018

A HISTÓRIA DE PRESIDENTE DUTRA (Parte 8) - A Dieta Alimentar





José Pedro Araújo


A dieta alimentar no Curador - O cardápio diário era composto, invariavelmente, pelo arroz, o feijão e por um pouco de carne de porco, ou de galinha de capoeira ou caipira. A caça também era deveras abundante, encontrava-se com facilidade animais como o tatu, o jabuti, o veado mateiro, a paca, o porco-do-mato, a capivara, entre tantos outros que faziam parte do cardápio da região.
Entre as aves, além da galinha já citada acima, criava-se o peru e a guiné, ou galinha-d’angola, comuns na maioria dos quintais da vila. Ainda havia as aves silvestres, como a nhambu, a galinha d’água, a jaó, a marreca, a codorniz, o jacu, entre tantos outros pássaros que, bem temperados, substituíam com folga as aves domesticadas.
No principio não existia açougue na vila. Mesmo quando os moradores puderam contar com a primeira “casa-da-carne”, somente aqueles que possuíam melhor poder aquisitivo compravam diariamente a carne fresca para o repasto daquele dia. Não era possível conservá-la para o dia seguinte, a não ser que a colocassem para secar ao sol após salgá-la.
Aos pratos mais tradicionais, era comum se adicionar a farinha branca(seca), além de algumas olerícolas encontradas facilmente no lugar, como o quiabo, o maxixe, a abóbora e a vinagreira. Trata-se esta última de uma folhagem com gosto bastante peculiar – azeda mesmo - que pode se transformar num prato extremamente agradável quando misturada com ovos e um pouco de sal. Esta, após levada ao fogo para cozê-la, recebe o nome de cuchá.
A vinagreira pode ainda ser preparada juntamente com o arroz, formando o chamado arroz-de-cuchá, prato muito apreciado, de modo especial na capital maranhense onde ganhou fama e admiração.
A carne que sobrava era preparada e posta em varais ao sol para secar, uma vez que não se possuía ainda os refrigeradores de hoje, fazendo com que se conservasse boa para o consumo por muitos dias. Surgiu daí, o nome carne-de-sol, usada como componente de alguns pratos típicos muito saborosos, como a Maria-Isabel, a paçoca de carne seca pisada ao pilão, e também o jabá, que adicionado ao feijão, torna-se bastante saboroso.
Criativos, logo o excesso da carne de porco começou a ser aproveitado na confecção de linguiças e outros embutidos, e o seu toucinho era transformado em banha de cozinha, usado por todos desde muito antes do aparecimento do óleo de babaçu ou de soja. Tempos depois, ao passarem a ser envasados em latas, já podiam ser adquiridos nas mercearias.
Dos rios, riachos e lagoas saíam também peixes para todos os gostos, desde o mandi dourado, ou o mandi mole, passando pelo curimatã, a traíra, o piau, ou o grande surubim. Até mesmo peixes pequenos como as piabas ou lambaris, eram aproveitados no dia-a-dia. No princípio esses peixes eram encontrados em abundância, constituindo-se em mais do que uma opção de alimentação, era também uma forma de se adicionar proteínas ao cardápio diário. Depois, com a prática da pesca predatória, essa importante fonte de alimento quase sumiu da mesa do presidutrense.
            Produtos à base de trigo, como biscoitos e pães, não faziam parte das refeições dos habitantes dos sertões no início da formação da vila do Curador. Em seu lugar, utilizavam-se a farinha de mandioca e a tapioca, ou goma de mandioca, além do fubá de milho pisado em pilões de madeira. A farinha branca, torrada em aviamentos encontrados em todos os pequenos aglomerados urbanos, era básica no dia-a-dia das famílias, como ainda hoje acontece. Pode ser usada junto com o arroz e o feijão no almoço ou no jantar, ou no desjejum, depois de adicionada ao leite fervido, quando se transformava em uma pasta denominada “escaldado”.
Outro tipo de farinha de mandioca muito usada na região era a farinha-de-puba, ou farinha d’água, feita a partir da massa de mandioca amolecida em poças de água ou pequenas lagoas. Confeccionada a partir da mandioca apodrecida, teve sua origem entre os índios que habitavam o território, como alguns dos pratos já descritos. Exclusiva da região, essa farinha possui uma coloração amarelada e um sabor bastante apreciado pelos maranhenses. Em alguns lugares esse tipo de farinha ganhou fama e preço, como no município de Santa Rita, mais precisamente no povoado Carema, onde desde os primórdios da nossa colonização já era por demais conhecida. Aqui na região também pode ser encontrada adicionada ao coco babaçu, ou ao gengibre, ficando com um sabor muito apetecível.   
O cuscuz de milho e o beiju de tapioca também substituíam, com vantagens, a falta de pães e biscoitos, sendo ainda muito apreciados nos dias de hoje. Somente o “escaldado” de farinha com leite parece ter desaparecido das refeições matutinas.
Algum tempo passado, já era comum a comercialização de bolos nas feiras, ou mesmo nas ruas, quando alguns meninos saíam por toda a cidade vendendo bolos fritos, além do tradicional e exclusivo bolo chapéu-de-couro, feito a partir da massa de arroz frita em óleo fervido. Esse bolinho também tem um sabor muito especial, e só é encontrado nesta região. Muito mais tarde, os vendedores de pães também transitavam pelo povoado com seus imensos cestos repletos do produto ainda quente. Uma festa para a meninada que o comia no lanche da tarde. Poderia ser do tipo doce - massa fina - ou adicionado o sal - massa grossa, o importante é que estivesse ainda quentinho.
O café em grãos era adquirido a granel nas quitandas, depois de torrado, às vezes com rapadura, era pisado ao pilão, vez que não existia ainda as tais torrefações que só chegaram por aqui muito mais tarde. Ainda assim, muitas famílias demoraram muito para mudar de hábito. Alegavam que o café torrado por eles mesmo possuía muito mais sabor. No que estavam cobertas de razão.
A galinha ao molho, a carne de porco assada ao forno à lenha, o frango caipira recheado, a carne de carneiro ao molho ou assada na brasa, além do peixe de água doce preparado ao leite-de-coco, são pratos da culinária maranhense que adicionados ao arroz-com-feijão, o conhecido baião-de-dois, além do arroz-de-cuchá, ou mesmo o arroz-com-fava, ainda fazem a festa aos domingos quando a família maranhense se reúne para comemorar alguma novidade alvissareira.
Encerrando a descrição da nossa culinária regional, volto à farinha de mandioca que nunca está ausente das mesas maranhenses. Para os oriundos de outros estados nordestinos, a preferência é dada à farinha branca ou seca, bem fina e torrada. Enquanto que para os autóctones, sangue indígena circulando nas veias, juntamente com o do negro e o do europeu, a farinha-de-puba, ou d’água, tem a preferência de dez entre dez pessoas. Sua coloração amarelada, grandes torrões e gosto característico, possui inigualável prestígio junto aos habitantes da região do Japão.
Diferentemente da farinha branca cuja massa é preparada a partir do desmanche da raiz de mandioca em um cilindro rotativo de madeira com algumas lâminas incrustadas, chamado caititu, a massa com a qual é feita a farinha de puba, é preparada com a mandioca amolecida, para depois ser levada a torrar nos fornos à lenha. Pode ainda ser utilizada para a feitura de fritos com carne seca, paçoca de carne seca pisada ao pilão, e também com a amêndoa do coco babaçu. Pode ainda ser adicionada ao leite quente, quando dá um saboroso escaldado, ou simplesmente adicionada ao prato de comida. Vai bem em todos eles.
          Todo pequeno proprietário de terra possuía seu próprio aviamento para fazer farinha de mandioca. A engenhoca era montada junto à casa de morada. Em um pequeno galpão era fixada a roda, o caititu, a prensa, os cochos, e o forno à lenha para torrar o produto final. Nessa ocasião também se produziam dois bons subprodutos: a goma, também chamada na região de tapioca, e o beiju. Este último fazia a festa da meninada que o aguardava ansiosamente.
Finalmente, torna-se importante esclarecer para aquelas pessoas que nunca tiveram contato com a fabricação artesanal da farinha, que as farinhadas se transformavam em excelente ocasião para os vizinhos se juntarem em mutirão. E, além de executarem as tarefas de raspagem, desmanche, prensagem e torração, entabulavam conversas que duravam a noite inteira, quando então as novidades eram postas em dia.