terça-feira, 29 de setembro de 2015

A vida longe de casa



  José Pedro Araújo
 
As mães têm razão em se preocupar quando um filho ganha o mundo atrás da sua própria sorte. No geral, elas ficam imaginando que tipo de problemas vamos encontrar pela vida afora, quais os perigos que correremos, e isso faz com que se perguntem se os filhos foram realmente bem orientados e se saberão enfrentar as vicissitudes que encontrarão pelo caminho. Na maioria das vezes, não estão.  Não sabemos como reagir a determinado tipo de óbice que encontraremos pela frente. Mas, o homem foi dotado de inteligência exatamente para saber encontrar saídas para qualquer tipo de dificuldade, desde as mais simples até aquelas em que sua própria vida está em jogo. Na maioria das vezes, com alguns arranhões e uma dose excessiva de sofrimento, nos safamos com certa competência dos entraves mais difíceis que a vida se nos apresenta.

Comigo não aconteceu diferente. Quando sai de casa, contava com meus quinze anos incompletos e encontrei um mundo cheio de novidades a desafiar o meu aprendizado doméstico. Pelo jeito, ainda não parei de tentar aprender como me situar bem nesse ambiente que teima em me por à prova continuamente e, na maioria das vezes, quando isso acontece, vejo que as experiências adquiridas não foram suficientes, e ai tenho que usar da criatividade para não sucumbir ao novo desafio. Posso dizer que já vi muita coisa nesse mundo velho que eu nem de longe achava que fosse possível existir. Coisas boas, coisas ruins, outras nem tanto. Situações de extrema beleza, outras muito feias. Mas, sempre é possível nos depararmos com acontecimentos que nos causem verdadeiro estupor. O certo é que vamos vivendo e aprendendo continuamente, sempre viajando rumo ao desconhecido.

Quando atingi dezoito anos, mudei-me para Recife, para cursar Engenharia Agronômica na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Fui morar no campus da própria Universidade, lugar onde ficavam os estudantes com menor poder aquisitivo, pois os mais bem aquinhoados financeiramente se organizavam em grupos e formavam uma nova república. Quem procurava uma vaga para viver no próprio campus, sabia de antemão que teria de obedecer a regras rígidas, enquanto que os moradores das repúblicas de estudantes ditavam as suas próprias regras de convivência e, no geral, possuíam mais liberdade de ação do que os primeiros. Não foi fácil me acostumar à nova vida. Ali, no princípio, tive que organizar a minha vida sozinho: lavar a minha própria roupa, me virar para arrumar comida quando o final de semana chegava ou quando vinham os feriados prolongados; manter o quarto de dormir em perfeita ordem era basilar, e me defender, construir o meu próprio espaço em meio ao clima feroz que se instalava a todo começo de ano letivo, quando os alojamentos recebem novos moradores. A propósito disto, tive que sair às vias de fatos por duas ou três vezes, para mostrar para os colegas que a minha estada ali era definitiva, pelo menos até a conclusão do curso. Era assim na hora do jogo de futebol, na escolha do melhor local e da melhor posição no beliche e, até mesmo, na hora de assistir a TV.

Antes disso, já vinha acumulando as minhas experiências, vivendo em pensionatos dos mais diversos, onde as coisas aconteciam muito diferente do que costumávamos ter em nossos lares. Em São Luís do Maranhão tive a oportunidade de conhecer alguns dos piores pensionatos da face da terra. Geralmente ficavam localizados em algum dos prédios antigos localizados na região velha da cidade, por dois motivos: por serem sempre muito espaçosos, dando para acomodar muita gente, mas, principalmente, por serem de baixo custo os seus aluguéis. Baixo preço porque estava, a maioria, em petição de miséria, mais parecendo escombros de uma cidade abandonada. Geralmente, também, as pessoas que se dedicavam a montar um pensionato desses, faziam assim para ter alguma ocupação à total falta de outro meio de vida. Deste modo, criavam a sua própria família em meio à estudantada que ia chegando para morar com eles.

Certa vez, fui residir em um velho prédio da Rua de Santana. A república estava em formação e uma parte dos estudantes era originária da minha cidade. As acomodações eram simplicíssimas: um grande salão foi dividido por tapumes de compensado de cerca de um metro e oitenta centímetros de altura de modo que coubesse cerca de três a quatro pessoas em um espaço de cerca de nove metros quadrados. As redes se entrançavam umas nas outras e era comum acordarmos no meio da noite após tomar um chute do colega que dormia ao lado. A comida também era de qualidade no mínimo duvidosa e a quantidade também deixava a desejar, em uma época da vida em que os jovens costumam comer muito. Assim, logo que as travessas chegavam às mesas, a moçada avançava sem pena sobre elas, pois sabiam que quem ficasse por último fatalmente ficaria com pouquíssima coisa, ou nada mesmo para por no prato. A da carne, era a travessa que tinha a primazia de primeiro ser atacada. Todos entravam de garfo em punho, pois se algum incauto metesse a mão ali, corria sério risco de tê-la furada em vários lugares. Em suma: aquilo não era lugar para principiantes ou envergonhados.

Residia ali gente de todos os tipos, desde os mais experientes, até aqueles que estavam saindo de casa pela primeira vez. Até mesmo duas moças que passavam por estudantes, mas, que no fundo não passavam de garotas de programa, vieram morar conosco, para deleite da maioria.

Este pensionato era dirigido por uma senhora distinta, mas que precisava dele para sobreviver. Deste modo, procurava economizar em tudo, especialmente no tocante a aquisição de alimentos. Grande parte do que consumíamos vinha do interior, especialmente os gêneros de primeira necessidade e menos perecíveis. Assim, a fava, um cereal de que gosto muito era largamente utilizada por ser, naquela época, um produto mais barato que o feijão. Certa feita, a nossa senhoria cozinhou uma quantidade muito grande da fava que daria para a semana inteira e acomodou na geladeira para retirar, por vez, somente a porção que considerava necessária. A presença daquele cereal pré-cozido ali começou a contaminar com o seu cheiro a água que bebíamos, de modo que além de ter que comer da mesma, ainda tínhamos que bebê-la. A fava, quem já comeu sabe, é muito indigesta, e costuma provocar grande flatulência em quem a consome de forma exagerada. Deste modo, lá pelo meio da semana, já não aguentávamos mais nem sentir o cheiro da comida. Reclamamos com a nossa senhoria do uso excessivo daquele cosido. Não funcionou. Respondeu-nos que tinha cozinhado uma porção para a semana inteira, e não ia desperdiçar nada.

Convocamos a estudantada para uma tomada de posição e decidimos que seria drástica. E eu, um dos mais veteranos, me encarreguei de por em prática o audacioso plano que consistia em dar completo sumiço no que havia sobrado do cozido. Ai então, por volta de meia-noite, quando a dona da pensão dormia profundamente, chamei um ajudante e fomos até a geladeira e de lá retiramos a panela que continha a fava pré-cozida. O cheiro de azedo tomou conta do ambiente de tal maneira que ficamos preocupados que alguém viesse a acordar e nos flagrar praticando o ato irregular. Felizmente nada disso ocorreu. Rapidamente saímos do prédio e ganhamos a rua, descendo a ladeira que vai dar no Mercado Central. A noite estava tranquila e uma leve brisa varria a cidade adormecida. Ao chegarmos a um terreno baldio, no meio da ladeira, lançamos a panela com o que havia nela e retornamos para casa.

Na manhã seguinte, ao dar pela falta da sua panela, a mulher indagou o que havíamos feito com ela. Respondemos, obviamente, que não sabíamos de nada. Enfurecida ela nos disse que não sabia de fato quem havia dado sumiço na sua fava, se não o abusado pagaria caro pelo gesto irresponsável. Mas, pelo modo que me olhou, foi como se me acusasse sem palavras. Desde aquele dia a minha permanência naquele pardieiro ficou comprometida. Não demorou muito e tive que me mudar para outro patronato. A vida, longe de casa, nunca é fácil!

       

sábado, 26 de setembro de 2015

Retirantes - Os indesejáveis da cidade


José Pedro Araújo


Os anos de seca que estamos atravessando tem levado parte considerável dos nordestinos a viver um período de grande aflição. Sobretudo aqueles que dependem da chuva para evitar frustração da safra da sua lavoura ou a destruição do seu pequeno rebanho. Olhar para o céu e não encontrar uma única nesga de nuvem de chuva é desesperador. E olha que já estamos atravessando o quarto ano sem precipitações regulares. Os rios estão secos, os açudes há muito já perderam a sua utilidade, e até mesmo os poços cacimbão deixaram de oferecer o líquido precioso para matar a sede de gente e de animais. Na esteira de tudo isso ainda vemos as nossas esperança de um bom inverno se dissipar com a ameaça de mais um ano sem a ajuda de São Pedro. Tudo por conta de um menino brincalhão, um tal de el niño.

Mas, acreditem, já foi muito pior. Hoje, temos uma rede de proteção social que, bem ou mal, evita a morte indiscriminada de pessoas atingidas pela inclemente falta de água. E essa rede, ao contrário do que querem fazer crer, vem sendo montada ao longo dos anos, desde os anos cinquenta, ou mesmo dos quarenta. Tudo começou quando se implantaram a rede viária, com muitas estradas, quando houve a modernização dos meios de transportes, incremento das comunicações, mas também a construção das aguadas  em forma de grandes barragens. Essa infraestrutura veio nos favorecer, viabilizando a nossa retirada para longe do inferno apocalíptico, e fazendo-nos pousar na beira de um manancial em poucas horas. Proveram-se meios para não se morrer aos montes como no passado, quando os caminhos ficavam cheios de cadáveres, de gente, mas também dos animais que deveriam nos levar para longe.

No meu e-book, Terra de Ninguém, que está disponível na Amazon.com, o personagem principal, Stanislaw, narra histórias ouvidas dos seus antepassados sobre os percalços vividos pelos sertanejos nesses tenebrosos períodos dantescos. Começa relembrando doloroso relatório enviado pelo Padre Joaquim José Pereira a Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro e Secretário de Negócios da Marinha e Ultramar, no Ano de 1798, no qual narra os efeitos mortais da seca daquele período na Província do Rio Grande do Norte. A descrição que ele faz sobre seus efeitos destruidores sobre a população daquela Província é alarmante e de causar pena. Com o intuito de mexer com o sentimento dos homens de mando na época, confortavelmente aboletados nas suas cadeiras de chefes insensíveis no distante Rio de Janeiro, Padre Joaquim descreve com crueza de detalhes a sina dos sertanejos naqueles tempos de sofrimento e dor. Diz, por exemplo, que aqueles que resolveram ficar e aguardar por dias melhores, definharam em razão da fome e da sede e, fracos demais para opor qualquer reação, viam os urubus invadirem as suas casas e saciarem-se nos corpos inertes, muitos ainda com vida. Mas afirma também que daqueles que resolveram procurar a estrada em busca de salvação, muitos não lograram melhor sorte e pereceram na margem dos caminhos, permanecendo insepultos. O personagem Stanislaw é ficcional, mas essa história é verdadeira. Da mesma forma que a que segue abaixo.

O que já parecia uma situação de extrema dificuldade, piorou sobremaneira. Lá pelo ano de 1932, o governo do Ceará criou Campos de Concentração ao longo da linha férrea que trazia os retirantes do alto sertão para a capital, Fortaleza. Nas cidades de Crato, Ipu, Senador Pompeu, Quixeramobim e Cariús, foram erguidas construções rústicas, que mais pareciam currais para abrigar os retirantes que se utilizaram da estrada de ferro para chegar mais rapidamente à capital. Em Fortaleza também construíram-se currais para acomodar aqueles que conseguiam passar pelas barreiras de retenção. Protegidas com cercas de arame farpado essas construções já aprisionavam mais de 73.000 pessoas somente no primeiro mês. Velhos, mulheres e crianças tinham as cabeças raspadas para diminuir a praga de piolhos que logo se alastrou em meio deles. A maioria tinha como vestimenta sacos com abertura no fundo para deixar passar a cabeça, e nos lados para os braços. A comida era escassa e preparada em latas de querosene espalhada ao ar livre. Apesar do governo federal ter disponibilizado dinheiro para a compra de animais para o abate, quase toda a verba foi desviada, adquirindo-se gado magro e às vezes já doente para ser consumido pelos retirantes. O termo indústria da seca passou a ser empregado pelos jornalistas, especialmente os que faziam oposição ao governo Vargas.

A morte logo se fez presente nos Campos de Concentração. Diariamente morriam dezenas de indigentes que logo eram sepultados em valas comuns, sem identificação nenhuma. Tudo isso acontecia para que a cidade de Fortaleza, que naquele tempo ingressava no seleto grupo das metrópoles, se visse livre dos pobres que invadiam a cidade e perambulavam maltrapilhos pelas ruas. Envergonhavam-se dos seus pobre; precisam mostrar para o restante do país uma feição de cidade moderna, livre da mendicância. Inventaram aqui os Campos de Concentração antes que os alemães criassem os seus para acolher os judeus e os comunistas durante a segunda guerra mundial. O povo logo passou a chamá-los de Currais do Governo.

Monsenhor Chaves deu conta da existência de campos para refugiados que chegavam à capital do Piauí. Não lança luzes acerca do tipo de construção dessas instalações e muito menos sobre o seu grau de conforto. Alerta apenas que o número de retirantes que por lá passou era muito grande, e que o governo do estado tinha que empregar somas vultosas de recursos para provê-lhos de alimentação e remédio. Noticiou ainda, que em razão dessas despesas, o governo teve que desmobilizar os campos de maneira abrupta. Talvez não tivessem feito uso dos mesmos como se fosse um jardim zoológico, como aconteceu em Fortaleza. Lá, as pessoas visitavam o campo como uma forma de diversão, e lançavam algumas moedas para os enjaulados como se jogassem amendoim para os macacos que vivem no horto. Tristes tempos!

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Novas Fotos para o Álbum da Cidade


Fotografias do Acervo do Carlos Magno
                 José Pedro Araújo

         As fotografias que vão compor o álbum da cidade tem tido boa acolhida por parte dos meus conterrâneos, razão pela qual gosto de disponibilizá-las aqui neste espaço. Para isso se concretizar, tenho contado com a ajuda de muita gente, e entre essas está um amigo dedicado: o Carlos Magno. É dele, por exemplo,  as duas imagens que publico hoje. A primeira, tirada de um ângulo diferente do usual, mas que mostra o mesmo que a maioria aqui postada: a igreja matriz de São Sebastião. A outra também retrata uma região muito clicada, mas em um ângulo muito mais amplo, quase fechando o ciclo completo. As duas são exemplo de bom gosto e dedicação do nosso colaborador. 
          Gostaria, portanto, de pedir a ajuda de mais pessoas no sentido de enviar-me fotos antigas que retratem o passado do nosso velho e querido Curador; as nova também são muito úteis, retratando paisagens ainda não registradas aqui. O espaço está aberto!
         Qual o sentido de guardarmos o que temos somente para nós? Ao compartilharmos as imagens que temos guardadas no fundo de uma gaveta com os nossos amigos, estamos prestando um ótimo serviço à posterioridade.  Imaginem a alegria de alguém que mora distante ao se deparar com a imagem da terra amada! Vamos lá, enviem o material que vocês dispõem! Uma foto antiga dos nossos familiares às vezes mostra uma paisagem, um instante histórico da nossa comunidade, um prédio não mais existente, ou mesmo o aspecto de uma rua completamente alterado hoje. 

sábado, 19 de setembro de 2015

A Retomada do Litoral Pelo Piauí

Foto by Edilson Morais Brito
José Pedro Araújo


            A questão envolvendo a negociação com o Ceará por uma fração da faixa litorânea se constitui, na verdade, em uma política de retomada de território, uma vez que no passado essa mesma gleba litorânea já pertencera ao Piauí. Pereira da Costa relembra que na troca de território, o Piauí “readquiriu o seu usurpado território de Amarração. De longe vinham as reclamações do Piauí contra essa espoliação, e de cujo direito possuía os melhores e mais eloqüentes documentos”.(PEREIRA DA COSTA, In Cronologia histórica do Estado do Piauí).

            Por sua vez, em seu indispensável livro intitulado Memória Cronológica Histórica e Corográfica da Província do Piauí, J. M. Pereira de Alencastre, faz a citação de dois documentos acerca das ações de grilagem praticadas pelo Ceará sobre o território piauiense. O primeiro documento é um Ofício do Juiz ordinário da vila de Marvão (Castelo do Piauí), Manoel Gonçalves de Araújo, datado de 20 de agosto de 1765,  ao primeiro governador da capitania, João Pereira Caldas, dando conta dos avanços praticados pelas autoridades cearenses ao território do Piauí. No documento citado, o juiz Ordinário relata que “Pároco da matriz de S. Gonçalo da Serra dos Cocos, desde o ano de 1760 tem tomado, desta Capitania para aquela(Ceará), mais de vinte povoações, não se dando por contente em tomarem aquelas que mais perto lhes ficam”.  Alencastre acrescenta que “o mesmo sucedeu na Parnaíba com o povoado de Amarração, que pertencendo sempre ao Piauí, hoje é da freguesia da Granja. O vigário desta freguesia chegou a desobrigar a uma légua da cidade da Parnaíba”.

            Incumbido pelo Governador Pereira Caldas de levantar informações sobre a denúncia proferida pelo citado juiz ordinário, o Ouvidor da Capitania, Luiz José Duarte Freire, não só confirmou a denúncia como afirmou peremptoriamente que “Na tromba da Serra dos Cocos nasce o rio Timonha, que deve formar o limite da Província com o Ceará, visto como as onze ou mais léguas da costa, que alguns autores dão ao Piauí, não é sem fundamento. Da Barra do Timonha à Barra do Igaraçu são onze léguas, segundo o roteiro do cosmógrafo Manoel Pimentel”. O rio Timonha é hoje o marco limitante dos dois estados na região litorânea.    

O professor e historiador João Gabriel Batista reafirma a informação ao dizer que a retirada da faixa litorânea se dera quando um padre da paróquia de Granja, do Ceará, começou a ministrar assistência religiosa a uma comunidade de pescadores piauienses que se situava em Amarração, ainda nos primórdios da ocupação do território. Este fato levou o governo da Província do Ceará a proceder à anexação do estreito litoral piauiense ao seu território, suprimindo o único acesso ao mar que o Piauí possuía.

Começaria, desde então, a luta dos piauienses para retomar o seu pequeno, mas belíssimo litoral, consumado depois de irredutível insistência quando da publicação do Decreto Imperial de nº 3.012, de 22 de outubro de 1880. Este diploma legal veio alterar a linha divisória entre as Províncias do Ceará e do Piauí, devolvendo-nos o que, de direito, já nos pertencia. Na troca realizada entre os dois estados, o Piauí cedeu extensa faixa de terra compreendendo a comarca de Príncipe Imperial (Independência e Crateús), área também de há muito reivindicada pelos cearenses, e readquiriu o seu direito ao mar.

Na mesma região litorânea, foi ainda o Piauí prejudicado sobremaneira, ao perder para o Maranhão uma faixa interessante do seu litoral, exatamente a nesga de terra que contava dos limites atuais até tocar à baia de Tutóia, fato verificável ao se compulsarem os primeiros mapas cartográficos existentes. Nesta disputa, o Piauí não logrou resultado satisfatório, constituindo-se em um assunto que já caiu até mesmo no esquecimento. O prejuízo aí foi monumental também, pois a região litorânea suprimida possui uma das melhores condições para a instalação de um porto marítimo com ótima capacidade para receber navios de grande calado. Aliás, durante muitos anos as exportações de produtos piauienses se deu pelo porto instalado naquela barra, atestando a sua ótima localização.

Hoje, ainda temos alguns problemas de limites com o Ceará, em dois pontos da Serra da Ibiapaba; com a Bahia, em uma estreita faixa de terra no extremo sul; e, mais recentemente, com o Estado do Tocantins que, mais que de repente, passou a contestar a posse de extensa gleba de terra tradicionalmente reconhecida como sendo território piauiense.      

Deste modo, contamos hoje com um território abrangendo uma área de 250.934 km2, correspondendo a 16,20% da região Nordeste e 2,95% da área territorial do Brasil. Sua área total, assim como a conhecemos hoje, procede assim desde o período Imperial, mas, poderá ser alterada no seu formato e tamanho mais uma vez, se resolvidos os problemas de limites que hoje temos com os estados citados no parágrafo anterior. Problemas estes, a bem da verdade, que vêm se arrastando há vários séculos e que, vez por outra, algum político à procura de maior visibilidade, encarrega-se dele e faz do seu caso palanque para aparições na mídia, para depois deixar tudo como estava antes.

Pela importância que a retomada da sua faixa litorânea tem para o Piauí, transcrevemos abaixo a íntegra do Decreto assinado pelo Imperador D. Pedro II, fazendo desaparecer, a nosso ver, parcialmente, este grande conflito de interesses e a grande injustiça perpetrada contra o povo piauiense e que demorou uma eternidade para ser resolvido:



[...] DECRETO Nº 3012 – DE 22 DE OUTUBRO DE 1880.



Altera a linha divisória das Províncias do Ceará e do Piauhy.



Hey por bem Sanccionar e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléia Geral:



Art. 1º - É annexado à Província do Ceará o território da Comarca do Príncipe Imperial, da Província do Piauhy, servindo de linha divisória das duas províncias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo à Província do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientais.



Art. 2º - Fica pertencendo à Província do Piauhy a freguezia da Amarração com os limites que estabeleceu a Lei Provincial do Ceará nº 1360, de 5 de Novembro de 1870, a saber: da barra do rio Timonia, rio de São João da Praia Acima; até a barra do riacho, que segue para Santa Roza, e d’ahi em rumo direto à serra de Santa Rita, até o pico da serra Cocal, termo do Piauhy.



Art. 3º - A linha divisória ecclesiastica será idêntica à civil que fica estabelecida, sendo o Governo autorizado para solicitar da Santa Sé as necessárias bullas.



O Barão Homem de Mello, do Meu Conselho, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 22 de Outubro de 1880, 59º da Independência e do Império.



Com a rubrica de Sua Magestade, o Imperador.



                                                                              Barão Homem de Mello.



O ato acima transcrito não deixa dúvidas sobre os limites que deveriam respeitar as duas Províncias vizinhas, afastando possíveis pontos de discórdias que por ventura pudessem subsistir. Não foi o que ocorreu. Interpretando ao seu talante, o Ceará continuou dominando toda a extensão da Serra da Ibiapaba, descumprindo o que estabelece o Decreto Imperial: a linha divisória deveria ser o divisor de águas da dita Serra. Ou seja, as vertentes ocidentais daquela região montanhosa deveriam pertencer ao Piauí. Pela determinação contida neste diploma legal, o limite entre os dois estados deveria ser o cume da serra da Ibiapaba, por onde as águas escorrem para um lado e para o outro, conforme ficou determinado. O que se observa quando em viagem pela rodovia federal que liga Teresina à capital do Ceará, é que a placa com a identificação da linha divisória está fincada quase no sopé da grande serra, no começo da sua subida.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

TRAGICOMÉDIA



Elmar Carvalho,
(É Juiz aposentado, Poeta, Contista, Cronista, Crítico Literário e Membro da Academia Piauiense de letras).

Preso no
ventre estreito
do Universo,
tenho um acesso
de claustrofobia.
Fruto mau
de árvores boas,
sou estéril
(para não ter maus frutos).
Nasci prematuramente
e morrerei depois
da hora.
(Sou teimoso como
um joão-teimoso.)
Guiado por cego
e conversando com
surdo-mudo,
fui tachado de
débil mental.
Mas isto é um
eufemismo:
eu sou mesmo é
um doido varrido,
por força da necessidade.
Sou triste.
Mas eu vejo a tristeza
como lágrimas
nos olhos do diabo.

           Parnaíba. 09.1977