sábado, 22 de maio de 2021

PERGENTINO HOLANDA EM DOBRO

As duas obras e o mesmo personagem

 

José Pedro Araújo

 

Em recente pesquisa em busca de novos lançamentos sobre a literatura maranhense, deparei-me com o site da AMEI – Associação Maranhense dos Escritores Independentes. Em uma rápida busca naquele sitio, fiquei conhecendo a livraria virtual da associação em causa, como também a loja física no São Luís Shopping. Aliás, mais que uma simples loja, aquele é um esplêndido espaço cultural com ótima decoração e um acervo bibliográfico de fazer inveja a muitos com essa qualificação. Desde então, tenho sido assíduo nas minhas visitas naquele site que tanto tem promovido a literatura maranhense para residentes em outras regiões.

Fiz uso do número de WhatsApp lá disponível, e mantive contato com uma atenciosa funcionária do empreendimento que me falou da possibilidade de adquirir as obras lá expostas através da via postal. Gostei muito da ideia, posto já estar interessado em muitas publicações disponíveis. Foi o encontro da vontade de comer doce com um atrativo pote de mel. Passei, desde então, a me utilizar desse meio para as minhas aquisições.

Certo dia, comecinho deste ano da graça de 2021, deparei-me com uma nova publicação lá ofertada: Em Busca de Vultos Perdidos, de autoria do jornalista e poeta Pergentino Holanda (PH). Depois de uma rápida passagem de olhos na descrição sucinta da obra, não tive dúvidas, fiz contato imediatamente com a funcionária que sempre me atende com muita presteza para saber mais. Desenvolta e muito envolvida com a missão que desempenha, foi a moça logo me dizendo que, na verdade, as obras sobre o autor eram duas.

Para encurtar o meu relato, devo afirmar que não tive dúvidas e adquiri os dois livros por ela anunciados: Em Busca de Vultos Perdidos, já acima citado, e o outro, uma biografia autorizada sobre o PH, de autoria do jornalista Thiago Bastos. As duas obras são siamesas, pois, além de tratar sobre a mesma pessoa, vêm em mesmo formato editorial e impressos no mesmo tipo de papel Couché, nos quais constam uma seleção variada de interessantes fotografias.

Acrescento mais que Pergentino Holanda é meu conterrâneo, de Presidente Dutra, e, desde muito, é tratado com orgulho pelos seus compatrícios, respeitado como uma personalidade de grande relevância. Digo desde muito, uma vez que, recentemente, comemorou ele o seu cinquentenário de atividades jornalísticas, e neste tempo transformou-se em uma referência na atividade que abraçou. Apesar de sermos da mesma cidade, e possuirmos idades relativamente próximas, quando me dei por gente (termo muito usado no meu Curador), Pergentino já havia saído em busca do seu sonho (ou dos tais vultos perdidos).

Contudo, ao lado da casa de meus pais, residia sua irmã Vanda Gomes, uma das pessoas mais alegres e amáveis que conheci ao longo dos anos que já me encontro por aqui. E dela provinha as principais notícias sobre seu irmão famoso com muita assiduidade. Passamos também a acompanhar a evolução instantânea do prestígio do nosso conterrâneo através das notícias que a amável vizinha nos repassava com frequência.

Por sua vez, cursei todos os anos do ginásio com um irmão de Pergentino, Nacor Holanda, com quem mantinha proximidade, nos anos em que estudamos no velho Colégio Presidente Dutra. Faço essas considerações para afirmar que com o PH mesmo, nunca troquei palavras. Logo depois da sua partida da cidade, saia eu. Vi-o apenas em uma das vezes em que ele visitava PDutra, e já era uma figura de destaque, o que afastou dele este menino tímido que sempre fui. Observei, contudo, que, na caminhada que ele empreendia naquele momento pela nossa rua Grande, deixava atrás de si um rastro de olhares admirados dos seus conterrâneos que, assim como eu, não tinham coragem de se aproximar para cumprimentá-lo. Coisa de sertanejo humilde como nós.

 Em outra momento, desta vez já em São Luís do Maranhão, tomei conhecimento do lançamento de um livro seu, que acredito ter sido o de estreia: Existencial de Agosto. Chegava eu do Liceu aí por volta das vinte e três horas, quando um conterrâneo que também residia no mesmo pensionato que eu, na rua de Santana, disse-me, com certa euforia, que havia presenciado o lançamento de um livro de poesias do nosso conterrâneo PH. E acrescentou que o evento havia acontecido na emblemática Fonte do Ribeirão, ponto turístico dos mais visitados, situado no centro da capital. Decorridos já quase meio século daquele episódio, as lembranças começam a se embaralhar na minha mente. Primeiro a respeito de quem, orgulhosamente, repassou-me a notícia: se o colega Manoel da Guia, ou se meu primo Edmilson Falcão. Do que tenho certeza, é que o autor da boa-nova me disse que ele até havia recitado um poema sobre a nossa Lagoa do Binga, fonte muito procurada pela população, posto não haver ainda um sistema de água canalizada na cidade nos seus primórdios.

A outra coisa que não está muito clara nas minhas lembranças, é quanto ao ano em que aconteceu aquele lançamento. Tanto o biógrafo de Pergentino, Thiago Bastos, quanto o prefaciador do seu livro de crônicas, o poeta e ex-ministro da Cultura, Joaquim Itapary, afirmam ter sido no ano de 1973. Pelas minhas contas, contudo, já que só residi em São Luís durante o ano de 1972, acredito tenha sido neste ano. Fiquei a me questionar se a minha mente criou esse fato que acabo de narrar, ou se estar a me pregar uma das peças que já costuma realizar nessa altura da vida. De qualquer modo, isso pouco importa, diante do fato de que vinha à luz naquele instante, de fato, a primeira criação poética do já conhecido jornalista, que já também respeitado respeitado como competente divulgador da movimentada vida social da sociedade são-luisense.

Volto nesse instante a tratar da aquisição dos dois livros junto à Livraria AMEI. Aproveitando da generosidade da minha atendente, pedi-lhe um favor. E ela, solícita por demais, disse-me que faria o possível para conseguir realizar, caso o autor estivesse na cidade. Solicitei-lhe que me conseguisse o autógrafo do Pergentino livros que estava adquirindo. Com efeito, poucos dias depois, ela me enviou mensagem para me dar conta do cumprimento de sua missão. Disse-me ainda que havia conseguido o autógrafo do seu biógrafo também. Agradeço pela cortesia de ambos, e também pela solicitude da minha atendente. Uma constatação: PH também possui uma caligrafia limpa e bem desenhada, o que me fez recordar que o seu pai, Geraldo Holanda, era famoso na cidade em razão da sua bela e rebuscada caligrafia.

Sobre os dois livros, afirmo se tratar de obras de muito bom gosto, editadas em belo formato pouco usual, e impressas em papel Couché brilhoso, com encadernação e layout de excelente qualidade. O livro de crônicas de Pergentino contém as suas publicações semanais no jornal O Estado do Maranhão, e mostra toda a sua erudição e trato literário.  Apesar de ele mesmo afirmar não se tratar de um guia de viagens, transitar por elas é como se tivéssemos percorrendo lugares belíssimos em todo o mundo onde o autor costuma passear nas suas férias anuais. Por sua vez, o que mais chamou a minha atenção foi a sua ligação umbilical com a sua aldeia, além do amor incondicional que declara à cidade que o acolheu, São Luís.

Pergentino é hoje um cidadão do mundo, tem vivido e convivido com gente de todos os continentes, especialmente o europeu, e firmado amizade com personalidades marcantes do meio literário e artístico. E dentre os locais mais visitados, escolheu a cidade de Paris como o seu terceiro torrão.

Nas suas andanças pela cidade luz, costuma frequentar bistrôs e cafés em que os principais artistas do mundo frequentavam com assiduidade, e que fizeram de Paris a cidade almejada nos sonhos de todos os artistas de qualquer nacionalidade. Legal de tudo isso, é que, quando transita pelas principais ruas e avenidas de Paris, por exemplo, recorda o autor da sua pequena Presidente Dutra, das suas andanças pelas suas ruas simples, dos pregoeiros de rua de seus dias de infância. A presença de um vendedor de rua em Montmartre, comparativamente, o leva de volta aos garotos que vendiam pirulito na sua pequena vila interiorana.

Por sua vez, um icônico e respeitado prato saboreado, cobrado em euro e preparado como obra de arte em um estrelado restaurante francês dos muitos que existem na aclamada cidade luz – ou mesmo de qualquer outra famosa metrópole europeia – o faz recordar as iguarias preparadas pela sua mãe em sua casa da Magalhães de Almeida, a milhares de quilômetros de distância dali, e em um tempo que nunca se apaga da sua memória. Presidente Dutra está viva nas suas lembranças mais queridas. Isso fica patente nas suas inúmeras crônicas que tratam sobre suas andanças pelos circuitos mais charmosos do velho mundo.

Do mesmo modo, quando passeia pelas ruas de são Luís, em especial pelo seu belo centro histórico, costuma fazer uma analogia com as ruas descalças da sua velha Presidente Dutra. São crônicas, portanto, com alta carga emotiva, calçadas por sua verve poética e pela sua enorme erudição. Algumas delas, são até de difícil compreensão para aqueles pouco afeitos à leitura dos principais clássicos literários, ocasião em que o autor esquece a modéstia e passa a se expressar como se estivesse se comunicando com a fina flor da poesia e da prosa mundial.

No que diz respeito ao segundo livro, o biográfico, o autor traça um histórico completo desde os primeiros dias de PH na sua pequenina Presidente Dutra, passando pela sua partida para Pedreiras, onde passou a residir na residência do juiz da Comarca, Dr. Herschel de Carvalho e, depois, a sua chegada a São Luís, ainda imberbe, mas já muito curioso e decido a escrever também a sua história na Atenas maranhense.

Praticamente, toda essa primeira fase da vida do biografado, é ilustrada por uma coleção de fotografias muito interessantes. Como aquela que mostra toda a família Holanda, capitaneada pelo seu pai, Sr. Geraldo, e pela mãe, D. Zazá. Prosseguir a leitura, é embarcar em uma viagem iconográfica pelos anos seguintes da vida de PH. Praticamente todas as figuras mais importantes da política e das artes, de qualquer tipo, estão lá em imagens estampadas nas páginas do livro, quase em ordem cronológica. São personalidades de destaque do estado, do país e do mundo, que em algum momento participaram de algum evento organizado pelo biografado. 

Por uma dessas coincidências da vida, o aparecimento de Pergentino Holanda nos jornais da capital maranhense, coincidiu com a saída do velho Curador das crônicas policiais e da divulgação das vinditas políticas que mancharam a história da nossa pobre comuna. A fama de cidade violenta construída pelos órgãos oficiais dos partidos que se digladiavam pelo poder no estado (com um tanto assim de verdade), como os famigerados noticiosos O Combate e o Diário de São Luís, ficou no passado. O município migrou das manchetes que anunciavam com estardalhaço a violência dos entrechoques políticos, para dentro do caderno de sociedade quando as belas crônicas de Pergentino passaram a fazer pouso ali, referenciado, de quando em quando, a sua pequena aldeia.  Não que a cidade tenha se convertido em um pensionato de freiras, uma terra de monges trapistas, longe disto. A violência continua a ser praticada por lá, mas nada diferente do que acontecia, e ainda acontece, em todos os lugares.

Naqueles anos citados no parágrafo anterior, o progresso, finalmente, deu o ar da sua graça por lá também, e a fama de cidade progressista tomou o lugar das notícias de barbarismo por lá praticado. Coincidência? Talvez. Mas é fato que tratam hoje com certo carinho a querida cidade curadoense. Nota-se isto quando o seu nome se encontra estampado em algum órgão noticioso de circulação na bela capital de todos os maranhenses sem os títulos crus atrelados ao farwest de outros tempos.   

 

 

sábado, 15 de maio de 2021

O PADROEIRO

Imagem de São Sebastião

 

(Aroucha Filho)*

“A vida não é o que se viveu, mais sim o que se lembra, e como se lembra de contar isso”.

                                                                                                    Gabriel Garcia Márquez

Matinha é protegida por São Sebastião, seu padroeiro, santo guerreiro como o povo daquela terra.

De todas as festas religiosas, ou não, a exemplo do Sírio de Nazaré para os paraenses, a festa de São Sebastião era a mais importante festa de Matinha, superando até as comemorações do natal.

Ainda não havia paróquia em Matinha. Os atos religiosos eram presididos por padres da Paróquia de Viana, que, àquela época, também não era ainda Diocese. Por essa razão, a festa de São Sebastião ocorria no dia 06 de janeiro, reservado o dia do Santo, 20 de janeiro, para as festividades da Paróquia de Viana.

Essa antecipação da data comemorativa em nada afetava a fé, a devoção e o entusiasmo dos devotos. Já no segundo semestre do ano antecedente começavam os preparativos para essa grande festa. O assunto palpitava nas conversas familiares, os organizadores da festa iniciavam as reuniões para o planejamento e preparativos para esse grande dia. Era o dia da manifestação de fé, de agradecer as graças recebidas, de pagar as promessas, realizar batizados e de fazer a Primeira Comunhão.

Os três meses que antecediam o da festa, agitavam a paupérrima economia do Município, aquecendo-a nesse período.

Algumas casas residenciais passavam por reformas. Outras, por simples pintura, demandando mão de obra especializada. Aqueles que faziam suas poupanças criando aves e animais de pequeno porte, cuidavam de transformar esses ativos em moeda corrente.

As “Casas de Forno”, onde a mandioca era transformada em farinha, atingiam o ápice de utilização. Todos os dias se fazia fornadas e mais fornadas de farinha, que eram depois medidas em alqueires, acondicionadas em cofos de pindoba forrados com folhas de guarimã, acondicionando o produto nos paneiros, e, deixando-o assim, pronto para comercialização. Paneiro era a designação dada a um cofo contendo farinha de mandioca, o qual pesava trinta quilos.

As lojas de tecidos, nesse período registravam o maior volume de vendas do ano, com a comercialização de grande quantidade de cortes: de linho Braspérola, mescla Santa Isabel, naycron, tergal, tricoline, popeline, seda, volta ao mundo, fustão, chita e outros. Consequentemente, havia muito serviço para costureiras e alfaiates que confeccionavam as indumentárias a serem utilizadas no dia 06 de janeiro, os quais varavam a noite em intermináveis serões para cumprir os compromissos na conclusão das roupas encomendadas.

Às vésperas da festa, a agitação nas residências era grande. Começavam a chegar os convidados. Geralmente, parentes que moravam na zona rural (centro e campos), em outros municípios, e na Capital do Estado.

Em outra frente, as cozinheiras iniciavam as providências do banquete a ser servido no dia da festa. Chegavam de outras localidades renomadas cozinheiras, hábeis em confeccionar saborosos banquetes. De Viana, papai contratava a senhora Benedita Serra, prendada em elaborar deliciosos pratos, verdadeira chefe de cozinha.

Os perus, que sempre morrem de véspera, eram as primeiras vítimas. Alinhava-se o abate dos porcos, que haviam sido engordados para ser sacrificados na madrugada da festa. As mais destacadas galinhas do terreiro, nesse dia amanheciam confinadas no galinheiro para evitar que, pressentindo suas sinas, fugissem do quintal. Os demais provimentos alimentícios para esse dia eram devidamente encomendados aos fornecedores.

Nesses idos, antes do abate dos animais de médio e grande porte, era prática comum colocar-se o produto à venda, oferecendo “postas” de carne em encomendas, para evitar sobras, uma vez que, além da salga, não havia outra maneira de conservação dos alimentos. Era assim o dia que antecedia o festejo do santo padroeiro.

No dia da festa, todos acordavam com uma alvorada animada pela principal orquestra da região, a do senhor Piteira, de Viana, que sob contrato prévio vinha abrilhantar os festejos tocando no improvisado coreto do largo. Foguetes de tala chiavam e estrondavam, misturando-se ao som do repicar dos sinos no alvorecer do grande dia.

Nas casas, todos cuidavam de se paramentar, vestindo as roupas novas, calçando sapatos bem engraxados, sem importar-se com os calos que, pelo desuso, poderiam causar.

As moças, esperavam ansiosas pelos passeios e flertes no Largo, onde aproveitariam a oportunidade de exibir seus sensuais vestidos “tubinhos” ou suas saias plissadas, com os exuberantes cabelos em “permanente”, que era a moda da época.

Lá pelas nove horas, o largo da igreja ficava repleto de gente. Aqueles que oportunizavam esse dia para angariar com seus pequenos negócios alguma renda, já estavam posicionados em seus tradicionais espaços. As doceiras, com seus tabuleiros repletos de variedades de doces; as bancas de jogo de “caipira”; o inusitado jogo do preá; os retratistas, com suas máquinas “mão no saco”, que faziam revelação instantânea dos filmes, gerando retratos que registravam esse grande momento. Os botequins, dois no máximo, erguidos com pequenos esteios de madeira verde, tapados e cobertos com palha de palmeira babaçu, equipados com geladeira Gelomatic, com fonte de energia a querosene, provavelmente da marca Jacaré, eram devidamente instalados próximo da casa do senhor Isaías, mais ou menos onde fica hoje a Casa Paroquial.

Em frente aos botequins, ficava a enorme mangueira da Praça da Igreja, tão útil aos frequentadores dos botequins que aproveitavam sua agradável sombra para tomar suas geladas cervejas, Brahma ou Antártica. Naqueles tempos, pelas nossas bandas só existia essas duas marcas.

A orquestra retomava a sua apresentação tocando músicas de sucessos do rádio e executando dobrados, que, pelo ritmo e excelência na execução, chamava a atenção de todos os quermessianos.

“Dobrado” é um estilo musical derivado das marchas militares muito executado em comemorações e festas, que se popularizou na metade do século XIX.

Amarrados ao pé de pau d’arco que ficava em frente de onde hoje funciona a lanchonete de Joca, ficavam, em corda curta, aguardando a hora do leilão, os bonitos novilhos dados em pagamento de promessas por graças alcançadas com a intercessão de São Sebastião.

Essas e outras prendas, doadas para o festejo como pagamentos de promessas seriam apregoadas pelo leiloeiro “oficial”, senhor Francisco Santiago de Oliveira – o Chico Cearense -, que era também um dos organizadores da festa. O leilão era uma atração à parte, movimentadíssimo e conduzido magistralmente por seu Chico Cearense.

Por volta das onze horas, dava-se início às cerimônias religiosas, que principiavam com a celebração da Santa Missa. Com a pequena igreja apinhada de gente, era intenso o calor e, consequentemente, o desconforto. Só mesmo a fé, a devoção ao Santo, para segurar a todos no recinto.

Alguns adolescentes, que iriam receber a Primeira Comunhão, desmaiavam, em virtude do longo período em jejum. Pelos cânones da Igreja Católica era necessário no mínimo três horas de jejum antecedentes à Comunhão.

Pela liturgia praticada nesses tempos, a missa era “tridentina”. Isto é, celebrada no rito latino, em latim, com o Padre de frente para o altar-mor e de costas para os fiéis, o qual iniciava a celebração com o invariável: In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.  Ao que o coroinha respondia: Amen.   -Introibo ad altare Dei. – Ad Deum qui laetificat juventutem meam (Entrarei no altar de Deus, o Deus que alegra a minha juventude). E continuavam… Os fiéis não participavam desse diálogo, pois a língua era estranha para suas percepções.

Após a missa, padre já irritado, suado, metido naquela desconfortável batina, iniciava a administração do batismo.

Os padres, por natureza, e talvez estimulados pelo poder eclesiástico que desfrutavam, impacientes passavam “carões” naqueles padrinhos semi-embriagados, ou madrinhas indevidamente trajadas para o ato do batismo.

A roda de batizandos, formada imediatamente após a celebração da missa, era diametralmente grande, pois a ela acorriam crianças da sede e de todos os povoados do município, conduzidos que eram por seus pais católicos na busca de livrar os filhos do paganismo, tornando-os cristãos.

O vínculo formado naquela roda de batismo era muito forte na fé. O ato do batismo, os santos óleos recebidos, o sinal da cruz assinalado na testa e no peito dos batizandos, a água benta derramada à luz da vela (vida) nas cabeças das crianças era tudo de uma simbologia emocionante e indescritível. Dali sairiam os novos cristãos. Mas, sobretudo, ali eram consolidados indestrutíveis os laços de compadrios e apadrinhamento, que eram fortes e muito respeitados, pois com eles expandia-se o conceito de família e compadres e afilhados passariam a pertencer a uma só família, independentemente da origem biológica.

De todos os celebrantes da Festa de São Sebastião que assisti, o Padre Heitor Piedade foi inegavelmente o melhor. Padre bonito, carismático, bonita voz e grande orador. Sua homilia todos os fiéis ouviam em absoluto silêncio e com muita atenção, pois era vibrante e emocionante.

Padre Heitor, tempos depois, deixou a batina. Casou-se, formou-se em Direito e é um renomado advogado, professor universitário, palestrante com vários livros publicados. Ainda vivo, reside no Rio de Janeiro.

Na parte vespertina, aproximadamente às 16 horas, formavam-se os fiéis em caudalosa procissão a se arrastar pelas ruas da cidade. O andor com o Santo, no final das filas, todo ornamentado com flores, cuidadosamente colhidas e arrumadas pelas irmãs da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, que no trajeto teriam seu honroso espaço ao lado do andor, enfileiradas ladeando o Santo, com suas vistosas “Insígnias”, cordão de larga fita vermelha com o símbolo do Sagrado Coração de Jesus. Praticamente todas as senhoras católicas da comunidade pertenciam a essa congregação. Homenageio-as agora citando os nomes das feições que guardo na memória: Vó Esculástica, Dona Dica, Maria Carneiro, Dona Furtado. Ao lado da minha mãe, que também ostentava sua insígnia, eu acompanhava todo o trajeto da procissão. Atrás do andor vinha a orquestra tocando os hinos, marcando o compasso pelo grande “tuba” que me prendia à atenção, por ser um instrumento que fugia à anatomia dos demais.

O andor já tinha os seus tradicionais carregadores. Esse era um status reservado a alguns fiéis mais devotos. Os jovens rapazes, talvez habilitando-se para um possível ingresso nessa casta, disputavam uma oportunidade para conduzir o andor.

O trajeto da procissão saía da Igreja, pela direita seguia na Av. Major Heráclito até o canto da Prefeitura, descia a Coronel Antônio Augusto, dobrava à esquerda na Afonso Matos, indo até o Posto e seguindo pela Rua João Amaral da Silva até a Praça, dobrava o canto de Benedito Veloso, e daí, pela Av. José Sarney regressava para a Igreja.

Ao adentrar no Largo da Igreja, para mim a parte mais emocionante de toda a festa, os sinos começavam a repicar, os foguetes estourando. Então, puxados pela voz bonita e potente do Padre Heitor, os fiéis entoavam o hino “EU CONFIO EM NOSSO SENHOR…”. Vinham as palmas e os vivas a São Sebastião e encerrava-se a procissão.

À noite o movimento esvanecia-se. Apenas havia algumas atividades religiosa na igreja, uma ladainha, cânticos, e o encerramento das cerimônias religiosas conduzido pelos organizadores.

A festa encerrava-se mesmo com as realizações dos bailes, geralmente três, animados por orquestras, que aconteciam em casas residenciais ou prédios públicos. O acesso a esses bailes dava-se conforme a cor da pele, hierarquizados verticalmente, na ordem descendente da cor da pele mais clara para a cor mais escura.

Essa era a grandiosa festa matinhense, que teve seus tempos áureos na década de 50/60. Com a chegada dos padres europeus, principalmente dos italianos, em missão na diocese de Viana nos meados dos anos sessenta, por ações desses padres que ocuparam várias paróquias na baixada maranhense, inclusive Matinha, a festa foi definhando até atingir o status festivo atual, em detrimento da nossa cultura.

Glorioso Mártir São Sebastião, protegei-nos!

(*) Aroucha Filho é natural de Matinha (MA), agrônomo, compositor e cronista.