quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

GLOBO RURAL - HISTORIANDO A EVOLUÇÃO DA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA.

Coleção da revista em tomos com 6 exemplares(no alto as revistas nº 1 e 400)



José Pedro Araújo

Assisto ao Programa Globo Rural desde os idos de 1980 quando a famosa emissora televisiva passou a apresentá-lo. Foi empatia à primeira vista. Aquela manhã de domingo trouxe para mim uma obrigação: todos os domingos, dali em diante, - caso esteja em casa - acordo cedo e me preparo para assistir ao meu programa favorito. Já se vão 39 anos dessa cumplicidade. Morando nessa época em Araguaína, ainda estado de Goiás, não desgrudava do meu aparelho Philco em P&B, e as imagens - na época ainda imperava o cinza - não diminuía em nada o meu entusiasmo.
Depois, já residindo em Teresina - onde me encontro até hoje – acompanhei a evolução das TV’s, e testemunhei também a revolução processada na agricultura brasileira, agora em altíssima resolução. As imagens de agora são um verdadeiro deleite para os meus olhos já um pouco cansados. As tomadas feitas do alto, através do uso de Drones, é a última novidade, aumentando o nosso campo de visão e nos permitindo uma apreciação ampliada das plantações que ocupam vastíssimas áreas de terras, tão planas que a cena só é interrompida quando a abóbada celeste toca o verde que recobre o solo dadivoso. 
Anos depois, outra surpresa agradabilíssima: o lançamento da Revista Globo Rural em outubro de 1985. Desde então, todos os meses me dirijo à banca mais próxima para adquirir o meu exemplar mensal. Este mês, por exemplo, trouxe para casa a GR de número quatrocentos. Isso mesmo. Trata-se de algo surpreendente em termos editoriais. Uma publicação setorizada, uma revista técnica, que atinge um número espantoso de edições. E pelo andar da carruagem, ainda poderemos contar com ela durante muitos e muitos anos.
Como engenheiro agrônomo que sou a GR passou a fazer parte das minhas leituras obrigatórias, uma vez que traz em suas edições as principais novidades em termos de pesquisa no campo da agropecuária nacional, além de outras atividades advindas do setor. Como a piscicultura, por exemplo; a sericicultura, a avicultura, a vinicultura, e tantas e tantas outras atividades rurais que transformaram este país em celeiro e introdutor de tecnologias no mundo do agronegócio.
Transformei-me também em um colecionador, algo jamais previsto em alguém tão pouco afeito à organização. E a coisa se deu mais ou menos de forma não intencional. Pelo apreço que tenho pelas minhas revistinhas, passei a guardá-las com imenso cuidado após a primeira leitura. Foi, portanto, um processo, como já disse, não intencional a formação da minha coleção. Mas, nesse meio tempo, passei por alguns percalços. E sobre isso que quero discorrer agora. Como meus irmãos também apreciam muito a leitura dessa revista – são proprietários rurais, além das suas profissões principais – muitos exemplares sumiram da minha coleção informal quando resolvi guardá-los em um único local. Não sei se levados por eles ou se deixados em local de fácil extravio. Não posso afirmar com exatidão.
Mas o meu maior problema aconteceu quando a minha esposa resolveu fazer uma faxina, ampla e irrestrita, na nossa casa, e mandou para o lixo muitos exemplares da minha querida GR. Só dei pelo problema quando não podia mais fazer nada, pois o lixeiro havia levado tudo para o aterro sanitário. Fiquei penalizado com o acontecido. Senti-me mesmo como se uma parte importante da minha própria história tivesse sido apagada, jogada fora. E foi então que tomei uma peremptória decisão: iria recompor a minha coleção de revistas Globo Rural, custasse o que custasse. E mais. Mandaria encadernar todas elas para evitar que algum exemplar se perdesse ou fosse novamente para o lixo. Foi assim que me transformei em colecionador de fato e de direito. Colecionador, com a consciência de colecionador. Só não sabia das dificuldades que enfrentaria para recompor o acervo, pois mais de cinquenta exemplares haviam se extraviado.
Como sou visitador de sebos e bancas de revistas desde muito tempo, inclusive nas bancas que comercializam revistas usadas, passei a procurar pelos exemplares da GR que me faltavam. E isso em todas as cidades em que porventura estivesse de passagem. Em Teresina, por exemplo, existem algumas bancas de revistas usadas instaladas no centro da cidade. Sou cliente delas desde o tempo em que, jovens imberbes ainda, seus proprietários negociavam gibis na porta dos cinemas Rex e Quatro de Setembro, transformando caixas de “Manzanas Argentinas” em tabuleiro para exposição do produto que comercializavam. Alguns desses meninos, Dentinho e Joel, por exemplo, ainda estão no negócio. Agora mais bem instalados, é verdade. E foi na banca do Dentinho, aonde vou uma vez ou outra, que consegui o melhor resultado para as minhas garimpagens. Em uma das vezes que por lá passava, encontrei o gibizeiro organizando na sua banca uma grande quantidade de revistas Globo Rural que havia acabado de adquirir de alguém. Tomado de alegria, saquei imediatamente da carteira porta-cédulas uma relação com os exemplares que me faltavam, papel que passei a conduzir comigo por ande transitava. E qual não foi a minha alegria ao descobrir naquele monte de revistas cerca de quinze exemplares que me faltavam.
Naturalmente, não foi uma negociação fácil. Dentinho é um negociante experiente, muito arguto e extremamente habilidoso. E logo desconfiou que eu necessitava muito daquelas revistas. Notou isso ao observar o meu contentamento com o achado. Conhecedor também desse seu jeito de negociador implacável, omiti que aquelas revistas iriam recompor a minha coleção. Caso contrário, ele iria majorar muitos os preços de venda. E ele começou a jogar com isso. E conversa vai, conversa vem, ele sempre tentando arrancar de mim a razão do meu extremo interesse, resolvi então jogar uma cartada definitiva e disse que levaria apenas três exemplares naquele momento. Que as revistas eram para meus irmãos e coisa e tal. Ele ainda tentou fazer com que eu levasse exemplares com números fora de ordem, pois não estava convencido ainda de que eu não tivesse por propósito o uso delas para colecionar. Não tive outra solução, a não ser aceitar o jogo dele, pois sabia que logo voltaria para adquirir as outras doze revistas. E ainda corria o risco de aparecer outro comprador para o produto do meu interesse.
Quando me dispus a pagar as três revistas, ele resolveu não perder o cliente, deu-se por vencido. Ofereceu-me as outras revistas com algum desconto, desde que levasse todas. Disse-lhe que queria apenas aquelas quinze já escolhidas. E assim foi. Antes de sair, porém, Dentinho me acompanhou e perguntou se aquelas revistas seriam para colecionar. E eu, para não deixar mal o meu amigo, disse-lhe que não. Apenas havia gostado daqueles exemplares. Notei, porém, que ele não ficou convencido disso. Tempos depois, quando de outra passagem por lá, resolvei contar a verdade para ele. A resposta que me deu foi esta: “eu sabia!”. Disse isso com certa amargura na voz. Não tenho nenhuma dor na consciência por ter pregado essa pequena peça no esperto gibizeiro. Depois disso, tenho sido vítima da sua esperteza por vezes sem conta. Ele sempre tem levado vantagem na troca ou simples aquisição de seus produtos, quer livros usados, quer revistas.
Em São Luís, por exemplo, transitava de carro certa vez pela Av. Magalhães de Almeida, centro da cidade, altura da Praça João Lisboa, quando, ao olhar de lado, deparei-me com algumas bancas de revistas usadas. Estacionei mais adiante e voltei para fazer uma garimpagem. Abiscoitei quatro exemplares que constavam da minha listinha de faltantes.  Senti-me gratificado mesmo em meio àquele trânsito caótico. A sorte pode chegar a qualquer momento na vida do garimpeiro.
Depois, descobri um portal na internet (Estante Virtual. com) que congrega mais de 1.400 sebos distribuídos pelo Brasil inteiro. Lá tenho adquirido obras raras e há muito fora do catálogo. E foi lá também que comprei a maioria das edições que me faltavam. Estava, enfim, completa novamente a minha coleção. Deu trabalho, mas foi uma obra edificante e que realizei com enorme boa vontade. É verdade que alguns exemplares adquiridos por mim apresentavam defeitos, até mesmo alguns corte para a supressão de imagens, por exemplo. Provavelmente recortadas por algum estudante para compor algum trabalho escolar. Mas, nada que comprometesse as matérias que ilustravam. 
A tarefa seguinte foi procurar um bom encadernador para organizar as minhas revistas em tomos contendo seis exemplares cada um. Encontrei o melhor de todos, e pertinho da minha casa. Tratava-se, do hoje meu amigo, Soares, funcionário da gráfica da Universidade Federal do Piauí, um verdadeiro artista no metiê.  Hoje, já estamos com sessenta tomos devidamente perfilados em uma estante na minha humilde biblioteca. Essa semana faremos mais alguns outros, cujas revistas já estão prontas para irem para as mãos do artesão.
Outro dia, estive pensando sobre qual a destinação que deveria dar a minha coleção de Globo Rural, uma vez que não noto muita simpatia por ela, nem da parte da minha esposa, e muito menos dos meus filhos. Já pensei até em doá-la para alguma biblioteca. A biblioteca de Universidade Federal Rural de Pernambuco, por exemplo, onde conclui o meu curso de Engenharia Agronômica, e a quem devo muito, seria uma opção. Mas, sempre que procuro algum exemplar para uma consulta, bate-me um sentimento de perda tremendo só de pensar em me desfazer do meu acervo tão duramente formado. Entretanto, ainda não bati o martelo sobre esse assunto. Espero ter ainda algum tempo para pensar nisso. E, enquanto isso, vou continuando a minha saga de, todos os meses, acorrer às bancas para adquirir o meu exemplar com a última edição da revista.
Não seria nenhum exagero afirmar que a GR embute a história de sucesso da agropecuária brasileira; e em suas milhares de páginas escritas, descreveu a respeito da vocação deste país, falou sobre a sua evolução nesse seguimento e, também, como as atividades desenvolvidas no campo o transformou em uma das maiores economias do planeta. Além, é claro, de elevá-lo à condição de um dos maiores celeiros de alimento do mundo. Através de suas páginas, posto isto, temos acompanhado todo o trabalho de técnicos e instituições de pesquisas na busca incansável pela melhoria da produtividade e da qualidade dos nossos produtos. Ao mesmo tempo, tem nos instado a nos perguntar se já não é tempo de encontrar solução, também inteligente, para os enormes problemas que esse avanço de cunho progressista tem causado à natureza.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

CARTA DE FREI ADRIANO DE ZÂNICA AO PRELADO PROVINCIAL - Apontamentos para a história de Tuntum



Por Jean Carlos Gonçalves*

Em setembro de 2005, por ocasião dos cinquenta anos de aniversário da emancipação do município de Tuntum, circulou em nossa cidade, a edição nº 3 do jornal “GAZETINHA DE TUNTUM”, cuja responsabilidade editorial fora do “Conselho de Mobilização Social de Tuntum”, uma espécie de instituição criada por militantes do grupo político opositor ao governo de Cleomar Carvalho Cunha, o Tema, que na época exercia seu terceiro mandato. 
Esse impresso, de apenas quatro páginas, trouxe em destaque um importantíssimo e esclarecedor artigo, assinado pelos ilustres tuntuenses Geovanny Alves e João Almy Alves, ambos pertencentes a uma das famílias pioneiras na ocupação de Tuntum no início do século XX.
No texto intitulado “Tuntum: Cinquenta anos de emancipação política”, os autores apresentaram um histórico do município, remontando ao início do século XIX, contextualizado com o processo de ocupação do sul do Maranhão, a partir da frente de expansão do povoamento ocorrida por conta da pecuária e sua influência para nossa constituição. No mesmo artigo, uma longa citação me deixou maravilhado. Pude pela primeira vez, tomar conhecimento de um valiosíssimo documento histórico que faz referência ao lugar Tuntum, citando, inclusive, localidades que mais tarde fariam parte do nosso município: “VIAGEM DE FREI ADRIANO DE SÃO LUÍS A BARRA DO CORDA”. Trata-se de uma Carta em que o Fr. Adriano de Zânica remete ao Prelado Provincial, Frei Luigi de Guanzate, em São Luís-MA, após sua épica viagem pelos sertões e chegada a cidade de Barra do Corda. Carta essa, assinada em 28 de janeiro de 1931.
Uma vez sabendo da existência do documento, tratei de ir até os arquivos da biblioteca da Igreja do Carmo na Capital. Lá, recebido pelo Fr. Ruggero Beltrami, responsável pelo acervo, me deparei com a epistola que, surpreendentemente conta 42 páginas.
Neste mês de janeiro, em que o documento histórico completa 86 anos, reproduzo aqui um trecho que acredito deixará muitos maravilhados, especialmente aos amantes de nossa história, estudantes, professores, pesquisadores e a todos que se sentem pertencentes a uma identidade comum. Além de tudo acima mencionado, o documento faz uma bela descrição da floresta exuberante da época, com sua fauna e flora, entre outros aspectos que discorreremos noutra oportunidade. Assim sendo, degustem!
Escrevo-lhe com entusiasmo de voluntário de guerra que do fronte escreve a seu próprio pai... não das linhas da retaguarda, mas dos lugares de comando, da primeira linha de fogo, da trincheira!!!
Saída de São Luis, 15.01.1931, às 6h15min; chegada à Mata do Nascimento em 21.01.1931, às 17h. Quando o motorista recebeu notícias alarmantes sobre o movimento revolucionário.
Percurso de São Luís-Codó, Trem; Codó-Mata do Nascimento (hoje Dom Pedro), caminhão: Mata do Nascimento-Barra do Corda, lombo de burro.
Em 25.01.31, sem incidentes, chegamos ao Curador, primeiro povoado do município de Barra do Corda; o lugarejo parecia ter sido tomado de assalto. Os habitantes, tomados de forte terror, trancavam-se em suas casinhas, fechando também as janelas, as luzes apagadas. A rua estava deserta, somente aqui e acolá grupos de revolucionários armados estão de sentinela.
Saída do Curador às 17h do dia 26.01.31, por uma vereda que encurtava a distância para a Barra do Corda, em 10 léguas, parando na primeira palhoça perto do povoado Canafístula (hoje pertence a Tuntum), no qual seis anos antes faleceu Frei Carmelo de Bréscia.
Em 27.01.31, enquanto repousávamos chegaram os revolucionários, procurando requisitar as armas dos moradores da Vila Tuntum.
Eu já virara um cavaleiro abalizado, precedia a comitiva, contemplando com toda a comodidade as belezas da floresta.
A floresta! Oh! A floresta é sempre bela, sempre atraente, poética! Tirar fotografias é tempo perdido. Só um filme poderia dar uma idéia; mesmo assim uma idéia simples, muito descolorida e imperfeita.
Naquele dia, admirando tão de perto as belezas de uma natureza totalmente nova para mim e tão atraente, não me parecia verdade encontar-me na floresta tropical do Brasil, ainda quase virgem. Entretanto, estava ali, montado num cavalo, qual um caçador atravessando uma selva inóspita de árvores gigantescas enroladas de cipós que como corda revestiam ramos formando um amaranhado confuso e fechado. Logo mais um capão de mata verdadeira e impenetrável de buritis onde lentamente corre um riacho, morada predileta de terríveis surucucus e de barulhentas guaribas.
A todo passo sempre topo em algo novo que atrai minha atenção: musas maravilhosas em forma de grandes leques; enormes cactos; palmeiras das mais variadas qualidades, anajá, babaçu, buritirana, buriti, kitara, catolé, marajá, açaí, etc. Uma mais bela do que a outra. Frutos silvestres que o viajante pode saborear, naturalmente com prudência e moderação, especialmente abacate, aguapé, pitanga, pequi, etc. Ninhos de aves e abelhas grudadas nos ramos nas formas mais originais. Habitações incomuns de formigas saúvas. Cupins capazes de destruir numa só noite árvores inteiras deixando-as despidas de folhas e casca.
E as aves? As aves são numerosas e maravilhosas. Encontram-se de todos os tipos, dos grandes galináceos aos colibris. São eles que nos cantos e seus diminutos vôos dão vida à floresta, especialmente as várias espécies de papagaios com seus gritos desagradáveis.
Vemo-los esvoaçar aqui e acolá a breves distâncias quase querendo suas belas plumagens de cores vivas; enquanto outras ficam nos galhos imóveis observando a nossa passagem. Nossos caçadores e todos os apaixonados ornitólogos encontrariam com que se divertir fartamente.
Mamíferos não se encontram de dia; eles deixam suas tocas ao escurecer, começando assim, a sua atividade durante a noite toda. Só de longe pude observar algum pequeno roedor em fuga e alguns sauros maiores, com uma crista ao longo da espinha dorsal.
Serpentes há de todas as espécies, sobretudo a terrível cascavel. Não é para desejar o encontro com esse tipo de animal peçonhento e, graças a Deus por mais que olhasse cuidadosamente, nada reparei a não ser um rastro bem marcado na relva por onde pouco antes passara um réptil.
Outra coisa que pudemos admirar nessa travessia é a sucessão gradual de três estações: inverno, primavera e verão. Num breve percurso de alguns quilômetros vimos primeiramente a floresta despojada completamente e folhas sem encontrarmos sequer um fio verde. Apesar do calor estafante parece-nos estar atravessando um bosque das nossas regiões no mais intenso inverno. Sendo que esse trecho de mata tem o chão muito enxuto, naturalmente todos os vegetais durante o período das secas estão em completo repouso.
Mais adiante temos a impressão de estar no fim de março, no tempo em que as árvores estão todas floridas, enquanto as frutíferas começam a fazer despontar seus primeiros frutos. Depois vem maio com o perfume agradável da primavera, até encontrarmos na selva verde-escuro.
Esse suceder de estações na vegetação era causado pela chuva que caíra por acaso pouco antes. Geralmente no verão é difícil que não chova, ao passo que no inverno, dito assim porque é o período das chuvas, é raro que passe um dia sem que não chova demoradamente. Neste período a vegetação é sobejamente luxuriante. À noite, às 19h chegamos ao povoado Cipó, com suas choupanas”. (ZÂNICA, 1931).

(*)Jean Carlos Gonçalves é professor, historiador e cronista.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

REMINISCÊNCIAS DO AÇUDE CALDEIRÃO




José Pedro Araújo

Era começo de 1976 quando conheci o belo Açude Caldeirão, em Piripiri. Fazia parte de um grupo de quatro estudantes, dois de Engenharia Agronômica e os outros de Engenharia de Pesca vindos da Universidade Federal Rural de Pernambuco, para ali estagiar. Pois, além de se desenvolverem ali um perímetro irrigado para a agricultura, havia também uma colônia de pescadores que se utilizava dos 54.000.000 de água armazenada em suas três bacias. A ideia primeira que tivemos foi a de um belíssimo Projeto de Assentamento tocado pelo DNOCS. As casas construídas para abrigar os colonos eram de boa qualidade e enfileiravam-se à esquerda da entrada do projeto, atrás de um belíssimo conjunto arbóreo bem delineado. E sobre um promontório, uma simpática capela dava as boas vindas aos visitantes que por ali chegavam. Mas a melhor parte da nossa primeira visita ao local aconteceu quando fomos conduzidos à bela e aconchegante Casa de Hóspedes do projeto: em frente descortinava-se um lago de águas cristalinas que faiscavam naquele fim tarde. Um belo cartão de visitas, não havia dúvidas.
Como falei no princípio do texto, estávamos ali para um estágio que deveria durar trinta dias. Foi uma experiência incrível e um momento de aprendizagem que marcaria as nossas vidas. Logo após sermos instalados na pousada, fomos conhecer o chefe do perímetro e as instalações do projeto. Tudo de ótima qualidade e extremo cuidado. Fui apresentado ao técnico que iria coordenar as atividades do meu estágio, um espanhol muito simpático e educado, Ariosto Solera, que logo se transformou em um grande amigo, além de instrutor dos mais eficientes durante os dias que passei ali. Ariosto era o representante do IRIDA, instituição espanhola voltada à irrigação, e que mantinha uma parceria com o DNOCS.
Logo no dia seguinte, depois de algumas explanações sobre o projeto levado a cabo pela instituição, Ariosto abriu um mapa sobre a mesa. Era a planta do novo canal de irrigação construído há pouco. O meu primeiro trabalho seria traçar o perfil daquele canal, em papel milimetrado, levantando em campo todas as cotas instaladas a cada cem metros, com as informações necessárias. Depois de concluído o trabalho de campo, chegamos à conclusão de que houve erro na construção do canal principal, situação já observada na prática ao se verificar que, enquanto em alguns pontos o canal permanecia com pouca água, em outros, a água quase chegava a transbordar, evidenciado um erro grave de nivelamento. Tal fato levaria a procuradoria do órgão a ingressar com uma ação contra a construtora responsável pela obra. Pelo menos foi o que ficou acordado na época, uma vez que empresa responsável pela obra alegava um erro na concepção do projeto básico, e  que não era de sua responsabilidade. Não tive mais informações se houve, de fato, ajuizamento da tal ação.
Foram dias muito bons aqueles que passei no Projeto Caldeirão. Sob um inverno tenebroso, as chuvas caiam quase todas as tardes e noites, tornando a estada ali também diferente. A Casa de Hóspedes estava construída sobre uma elevação do terreno, e não a jusante da barragem, como ocorreu no caso da fatídica barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, o que ensejou a morte ou desaparecimento de mais de trezentas pessoas após recente colapso sofrido pela barragem. Tínhamos uma vista esplendorosa do açude, o que transmitia grande paz interior ao ficar contemplando aquele poderoso ajuntamento de águas. Bem, menos nas noites chuvosas, quando o vento esbatia sobre as folhagens das acácias plantadas na frente da pousada emitindo um som pavoroso daqueles filmes de terror, e deixando o ambiente com aspecto fantasmagórico.
Voltei ao Caldeirão umas poucas vezes nesses últimos anos. A maioria delas para degustar uma saborosa peixada servida no restaurante que fora antes a Casa de Hóspedes. Entretanto, por esses dias, a imprensa tem explorado muito a questão da falta de manutenção que essa barragem sofreu nos últimos anos, o que levou a formar fissuras preocupantes na estrutura do seu paredão. E isso, levado pelo que aconteceu em Brumadinho, tem apavorado a população da região. O rio Caldeirão é afluente do rio dos Matos, e este passa ao lado da cidade de Piripiri, situada a menos de 10 km de distância. Em caso de colapso da barragem, fatalmente seus efeitos seriam danosos para as populações ribeirinhas situadas logo abaixo.
O termino da construção da barragem(Açude Caldeirão) se deu em  1945, e dez anos depois, em 1956, apresentou graves problemas em sua parede. Corrigidos os problemas, outros voltariam a atacar a estrutura do paredão, liberando água em quantidades alarmantes. As providências tomadas com urgência evitaram um mal maior. E desde então, apenas pequenos problemas foram verificados, pelo que se sabe.
Os problemas surgidos ultimamente na parede de 746m são decorrentes do tempo de construção, do uso, muitas vezes inadequado, mas, principalmente, pela ausência de manutenção. As águas do Açude Caldeirão são usadas hoje para irrigação, mas também como um balneário que conferiu grande importância turística ao município de Piripiri. Erigido em uma região muito populosa, um colapso ocasional poderia causar prejuízos insanáveis a população local. Ou até mesmo a morte de muitos dos que ficam no raio de ação daquele importante projeto.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

NOTURNO DO CEMITÉRIO VELHO DE OEIRAS






Elmar Carvalho(*)

Cemitério
misteriosamente sem mistério
etéreo
em sua clareza
– mais que clareza, certeza –
de cemitério.

Campo Santo
onde o fogo-fátuo
e o pirilampo
cintilam – destilam suas luzes mortas
nas alamedas sem (en)canto
nas veredas do que é somente
pranto
onde poetas
egressos de outra vida
recitam versos enternecidos
para a imortal amada
inesquecida
onde músicos falecidos
acordam sons delicados
doces como alfenim
das cordas sensíveis
e pulsantes do bandolim.

Ó som de lamentações e de ais,
de lamúrias passionais,
de réquiem e miserere
que dilacera e fere
como não se ouvirá
nunca mais!

Horto sagrado
do que é morto
e é lembrado;
do que é apenas esquecimento
(do que não é nem será
sequer pensamento).
Cemitério
de lápides indecifradas
pelas dentadas do tempo.
De cruzes mutiladas
e braços pensos.
De chumbados anjos sem voo
e de asas decepadas.
De correntes arrastadas
na via crúcis das
almas penadas.
De vultos
queridos da História.
De vultos
diluídos, sem memória ...
De túmulos caiados, caídos,
encardidos pelo tempo.

Cemitério de abandono:
fantasmas sem sono
 abrem os portões
de gonzos gementes, enferrujados,
e vagam pelas
ruas adormecidas
– sombras tênues, diáfanas,
esquecidas.
Cemitério
de uma morte
absoluta e sem fim
como uma música
sublime de bandolim
tangido por dedos mágicos
de Arcanjo ou Serafim ...


(*) Elmar Carvalho é poeta, romancista e cronista, e membro da APL.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

CRÔNICAS VIVIDAS – LÁGRIMAS DIVINAS

Imagem by Pinterest



José Ribamar de Barros Nunes*


Em meus escritos, várias vezes, falei de pranto. Creio que descobri vários e variados tipos de lágrimas, explosivas, escondidas, escandalosas, tranquilas, abundantes, de crocodilo, etc.
Com muita frequência, em momentos diversos, elas brotam barulhentas, silenciosas, caladas, violentas, inesperadas, instantâneas. No pódium, na maternidade, em velório, na rede, na sala, na rua, na praça, na igreja, elas não têm hora nem lugar certo. Na minha vida longeva, já testemunhei tal variedade em muitíssimas ocasiões.
Matutando e divagando, já enumerei dezenas delas. Agora, juntando-as, dou-lhes mais um adjetivo: Lágrimas Divinas. Chego a imaginá-las como um dom dado pelo criador a todas as criaturas. Controladas ou não, o ser humano derrama-as para si, para o próximo ou para a humanidade.
Costumo dizer que diariamente, rio e choro e a explicação é fácil. A mídia e as páginas policiais mostram em abundância fatos, fotos, episódios e eventos tão diversos que revelam toda a complexidade do ser humano, mistura de sentimentos bipolares, de belzebu e do criador.
Dizem que o mestre dos mestres nunca foi visto sorrindo; chorando, porém, muitas vezes. Com essa diversidade tamanha em tudo e todos, a humanidade segue sua marcha inexorável, sorrindo e/ou chorando.

(*) José Ribamar de Barros Nunes é Assessor Parlamentar do Senado Aposentado. Como cronista é autor de “Duzentas Crônicas Vividas”.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

EU QUERO UMA CASA NO CAMPO




José Pedro Araújo

Tempos atrás fizeram uma enquete entre os paulistanos para saber qual o sonho de consumo de cada um deles. Os pesquisadores se surpreenderam com as respostas recebidas. Percentual elevado dos pesquisados respondeu que gostaria muito de possuir uma casinha no campo para descansar das correrias do dia-a-dia na Paulicéia desvairada, onde pudessem criar galinhas e ouvir os pássaros cantar.  O mais surpreendente é que boa parte dos que responderam isso, nunca havia morado no campo. Alguns, sequer descendiam diretamente de família interiorana. Esse atavismo era proveniente de antepassados que se perderam nas brumas do tempo, logo apareceram os especialistas com uma justificativa.
Quando a revista Globo Rural foi lançada, escolheram o poeta Carlos Drummond de Andrade como padrinho da publicação. Nesse período, grande nomes da literatura brasileira foram convidados a contribuir com um texto sobre o que mais lembravam do campo. E eles escreveram sobre pessoas, animais, paisagens, acontecimentos ou, simplesmente, deixaram que a mente navegasse pelo espaço criativo. Literatos como Raquel de Queiroz, Milton Hatoum, Marcos Reis, Dias Gomes, e o próprio Drummond, encheram as páginas da revista com textos repletos de saudosismo. Drummond, por exemplo, logo no exemplar de lançamento da revista, esgotou-se em saudades da fazenda da família em Minas. Sob o título “A Fazenda que Desapareceu do Mapa”, ele relembrou com tristeza “Às vezes me assalta o remorso de, sendo filho, neto e bisneto de fazendeiros, ter contribuído para que morresse a nossa fazenda. No momento em que chegou a minha vez de trabalho no campo, fugi da responsabilidade, alegando falta de jeito para lidar com a terra e com os animais. Cedi a minha parte e fui cuidar de nuvens, no exercício da literatura. Passaram-se os tempos, e a fazenda acabou vendida a uma empresa estatal, que ali instalou uma represa para depósito de rejeito do minério de ferro por ela explorado. Assim terminou, submersa, a Fazenda do Pontal, antiga dos Doze Vinténs, ou Fazenda dos Doze”.
Naquele momento o poeta devia está saturado de tudo o diz respeito à cidade grande. Cansado da violência urbana, do barulho e da fumaça dos veículos; do trânsito retido e das filas intermináveis nos bancos e nas repartições públicas. Assim como ele, quando estou perdido no meio do trânsito ou retido por longos e longos minutos na fila do açougue, como aconteceu hoje, por exemplo, bate-me uma vontade de estar naquele momento sob a proteção de uma árvore no campo ou mesmo à sombra de um alpendre refestelado em uma cadeira espreguiçadeira só acompanhando a passagem do tempo sem pressa.  Já houve um tempo em que pensei diferente, quando ainda morava no meu velho Curador. Encapsulado na juventude dos meus treze, quatorze anos, entediava-me com a calma da cidade pequena e quase sem movimentação. E nesses instantes, imaginava-me fugindo da calmaria e indo residir em uma cidade maior e mais movimentada. Um lugar vibrante, onde houvesse cinemas, estádios de futebol, televisão, bancas de jornal, e meios de transporte que me levasse para onde eu quisesse ir. Cheguei a ficar empolgado quando soube, ao término do ginásio, que esse tempo havia chegado para mim.
Como estava enganado! Hoje, quase não vou ao cinema ou aos campos de futebol. Por sua vez, nas cidades pequenas, o futuro chegou trazendo a televisão digital para mostrar os grandes jogos de futebol, a internet por lá também aportou e disponibilizou aos “matutos”, notícias do que acontece no mundo no instante em que o fato acontece. Até mesmo as TV’s por assinatura e os “streams” com filmes e shows musicais em quantidades mais do que suficiente para suplantar a vontade de qualquer cinéfilo, fez-se presente nos lugares mais remotos. E mesmo que você resida no mais profundo de uma floresta, os sinais de tevê ou a internet chegam até você, pois a energia elétrica pode ser gerada em placas fotovoltaicas instaladas no seu próprio teto.
Muitos citadinos ainda acham que o campo é lugar para bicho-grilo. Meu filho Bruno, por exemplo, afirmou-me diversas vezes não gostar do campo. E arrematava a frase com uma série de argumentos. Senhor da sua verdade, e para encerrar o assunto, dizia-me peremptório até sentir falta da fumaça dos escapamentos dos automóveis. Talvez, algum dia, ele ainda venha a mudar de ideia. Pois em épocas não tão remotas assim, vivia a me atormentar durante as viagens quando colocava no toca-fitas do carro um cassete dos Beatles ou do Creedence. Anos depois, surrupiou-me quase toda a minha coleção de CD de rock dos velhos tempos. Mas sei que não é fácil mudar o pensamento da geração do vídeo game e do RPG.
De minha parte, ando com uma vontade imensa de criar umas galinhas, ordenhar umas vaquinhas e saturar-me de música ouvindo o canto estriduloso da cigarra. Dormir, enfim, ouvindo o coaxar dos sapos e não o som estrondoso dos motores a combustão. E se na casa com alpendre largo e entre árvores sombrosas, puder ligar o meu notebook na internet ou a tevê a cabo para assistir aos jogos do meu time favorito, melhor ainda. Tudo isso enquanto na cozinha, no fogão à lenha, está sendo preparado um belo tira-gosto para acompanhar uma gelada “empoada” extraída do congelador que mais parece uma calota polar. 
Então ficamos assim. Quero voltar para o campo, mas na companhia de algumas modernidades das quais não posso mais me separar. E então cantar como o Zé Rodrix:

“Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da paz...
Eu quero carneiros e cabras pastando
Solenes no meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas”.