sábado, 29 de fevereiro de 2020

ATIVIDADES E PROFISSIONAIS IMPORTANTES DE ONTEM NO CURADOR



José Pedro Araújo


Algumas atividades profissionais que foram tão importantes para as comunidades em tempos passados, talvez não sejam nem mesmo do conhecimento das gerações mais recentes, mas que, caso viessem a faltar no nosso dia-a-dia estaríamos todos no maior embaraço. Esse assunto me veio à mente quando passei a noite quase inteira sem energia elétrica um dia desses, em razão de uma chuvinha despretensiosa, mas que terminou por me afetar duramente. Estava eu assistindo a um filme quando, no melhor momento deste, a energia foi embora. Socorri-me com umas luminárias que uma mente fértil inventou para nos tirar desses apertos nesses períodos.  Se não tivesse prevenido com elas, teria passado a noite em completa escuridão, pois lamparinas não temos mais, pelo simples fato de não saber onde comprá-las. Quanto ao meu filme, só vi o seu final no dia seguinte, mas já havia perdido a emoção que sentia naquele instante em que fiquei a ver navios.
Em minha meninice, lá no Curador, é claro, não podíamos prescindir de uma lamparina, ou de várias delas, para espantar a escuridão daquele sertão quando a noite derramava sua negritude sobre nós. E foi então que eu lembrei do profissional que fabricava as tais candeias, e que hoje quase ninguém lembra mais da sua enorme importância naquela época.
Certo dia, fui com o meu pai ao bairro da Mangueira (a região ficou conhecida por esse nome em razão de alguns pés dessa fruta que ficavam bem na bifurcação da rua Grande com a conhecida hoje como Graça Aranha), em busca de algumas dessas lâmpadas à querosene. Encontramos um senhor moldando uns pedaços de lata que ele havia cortado para fazer alguns dos artefatos que fôramos em busca. Fiquei admirado com a desorganização do local.  Era pedaço de chapa, latas de querosene, de biscoito, e de tudo o mais amassadas e empilhadas em todos os cantos da ampla sala transformada em oficina. Lá fabricava-se quase todos os utensílios de cozinha, da bacia ao prato, da rude cafeteira à lamparina. Nunca esqueci da azáfama existente naquele local. E pelo visto a atividade era lucrativa, uma vez que, durante os poucos minutos que lá estivemos, algumas pessoas procuraram o funileiro para adquirir seus produtos. Especialmente as tais lamparinas. Pouco tempo depois o homem se mudou. Havia chegado a luz elétrica na cidade e a sua bem remunerada atividade tinha sido enormemente afetada com a novidade.  
Apesar de ainda haver comunidades interioranas sem energia elétrica nesse imenso e desigual país, nunca mais me deparei com algum profissional desse ramo em atividade. Hoje aproveita-se de tudo para fazer uma candeia. Até mesmo as latas de refrigerante ou cerveja servem à finalidade. Certa vez quis comprar uma lamparina para fazer uma fotografia de época para emoldurar um trabalho, fui ao mercado velho de Teresina e me deparei com diversos locais que ainda vendia o produto. Fiquei surpreso. Ainda tinha muita saída, afirmou-me o proprietário do comércio que eu procurei. Sai de lá com uma lamparina fabricada a partir de uma lata de ervilhas.  Passei um bom tempo lixando a minha luminária para apagar a marca do produto que era ali envasado a fim de não contaminar a minha ideia retrô de foto.
Tinha também um ferreiro conhecido situado na praça do mercado, esquina onde bem mais tarde veio se instalar a Delegacia de Policia do município. Era um profissional muito importante. A primeira vez que fui lá, encontrei um senhor forte, musculoso, apesar da idade, suado e todo lambuzado de fuligem, malhando em uma bigorna um pedaço de ferro incandescente. Ferro que ele mergulhava em uma forja ao lado logo que perdia a cor avermelhada, e, deixando o martelo de lado, acionava uma espécie de objeto sanfonado que servia como abanador e que mantinha as brasas em seu teor máximo de calor.  Aquele homem ocupava uma profissão das mais importantes, pois fabricava as ferramentas de trabalho dos lavradores, criadores e tropeiros. Fazia desde a enxada, facões, foices, enxadecos, até as esquadrias de metal ou materiais para os assessórios dos animais de montaria ou de carga. Não sei qual o tempo, mais um dia ele desapareceu de lá, não soube mais notícia do seu paradeiro. Foi superado pelos novos tempos e novos costumes ou procurou outro local para estabelecer o seu negócio? Não sei se abandonou completamente a profissão, pois ainda hoje existem muitos desses profissionais em atividade e ganhando um bom dinheiro com a atividade artesanal. Mas que mudou muito, isso mudou.
E como sempre acontece nesses casos, logo me veio a imagem de um outro profissional que se encontra quase desaparecido nos dias de hoje: o Sapateiro. Lembro de um (e até mesmo do nome: Beato) que apareceu na cidade e alugou um casebre de um tio meu para se instalar. Sua oficina ficava próxima da minha residência, e por isso andava sempre por lá observando o trabalho realizado pelo Mestre Beato, que além de um profissional tarimbado, era um prolífico contador de histórias. Entre uma história e outra, o entre um acesso de tosse e outra, o velho Beato ia malhando o martelo em um pedaço de sola (de sola pura, com aquele cheiro característico), sobre um Pé-de-ferro já bem gasto. E lá ele fazia de tudo. Consertava sapatos com o solado gasto, trocava o salto, pintava, colava, pregava com tachinhas, fazia cintos, cabeção para animais, cilhas para selas de montaria ou cangalhas, trabalhava com tudo a partir do couro. E minha mãe morria de medo da tosse do seu Beato. Era um artesão importante e que prestava um trabalho imprescindível naquela época. Não sei que rumo tomou depois que as lojas passaram a vender os sapatos trazidos das fábricas de outras regiões mais desenvolvidas. Deve ter perdido parte considerável do seu faturamento, disso não tenho dúvidas. O meu primeiro cinturão largo e à moda Jovem Guarda foi feito por ele. Mas como fedia a couro cru. Não consegui retirar o seu forte e nauseabundo cheiro e logo tive que abandoná-lo.
O vendedor de lenha também era uma figura presente nas ruas e de uma importância sem tamanho. Quando criança recebia ordem da minha mãe de ficar na janela para ver quando algum vendedor deles vinha subindo a rua tocando o seu jumentinho com uma carga de lenha cortada e no ponto para o uso. E quando eu avistava algum, entrava correndo para avisar para a minha mãe. A concorrência era pesada entre os consumidores, por isso tinha que ser ágil. Ainda bem que residíamos na entrada da cidade e podíamos comprar dos primeiros que penetravam na rua. Essa atividade foi destroçada pela chegada do gás de cozinha na cidade. Primeiro se transformaram em carvoeiros, é bem verdade, depois não tiveram mais como concorrer com a novidade e procuraram outra atividade mais lucrativa. Ou mudaram de rua ou região e ficaram ainda um tempo pela periferia da cidade. Mas foram, durante uma vida, profissionais importantes nas comunidades interioranas, o nosso voluntarioso vendedor de lenha
Os bons alfaiates deixaram saudade. Não possuíam mais clientes fiéis e assíduos, e por isso se foram. Perderam espaço para as lojas de confecção pronta onde a gente entra e, minutos depois, sai com uma calça, pijama, camisa ou mesmo cuecas novas e prontas para uso. Hoje são muito restritos e possuem freguesia reduzida, mas sempre fiel exigente. Quanto ao faturamento dantes, não sei.
Sumiram também os vendedores de leite in natura, de frutas, de pão, os vendedores de peixe pescados nos riachos da região; de doce leite, de milho verde, sumiram ainda os meninos com seus tabuleiros de cocada sobre a cabeça, e também os de pirulito, sumiram todos.
As cidades perderam o charme com a saída de cena dos profissionais talentosos e que faziam a diferença em outras épocas. E olha que não chegamos a ter os acendedores de lampião, caçadores de ratos, os que prestavam serviço de despertador e tantos outros que viram suas profissões serem soterradas pelos novos costumes desse dito mundo moderno.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

VIDA DE AGRÔNOMO(4) – PFA E A CONFRONTAÇÃO COM O PERIGO




José Pedro Araújo

Existe nos tempos que correm uma certa polêmica sobre a reforma administrativa que o governo planeja apresentar por estes dias no congresso nacional. Dentre os pontos que podem causar um estrago significativo para os servidores públicos está a que trata sobre as carreiras típicas de estado. Há quem diga que muitos cargos rotulados com este título não deveriam estar ali, como já se ouviu de “muitos entendidos”. Contudo, não à toa, o enquadramento de uma carreira nessa categoria vem a reboque das grandes responsabilidades ou perigos a que os profissionais ocupantes destes cargos são submetidos. E por isso mesmo, precisam de maior proteção estatal contra poderosos quando se veem na mira delas.

É o caso da carreira de Perito Federal Agrário(um eterno quase carreira típica) – e que nos interessa aqui nesse texto – que juntamente com os Fiscais Federais Agropecuários, Fiscais da Receita, ou mesmo os Policiais Federais, que precisam da proteção do estado contra a sanha dos mais poderosos para poderem exercer a sua missão. O Perito Federal Agrário, por exemplo, é um dos que sofrem tremendas pressões quando tem que executar a sua missão nas desapropriações de imóveis rurais pertencentes a grandes e poderosos latifundiários, via de regra também políticos ou protegidos por alguns destes.  Nestes instantes, seus cargos estão em iminente perigo, sob ameaça de demissão, ou até mesmo coisa pior. Ocupados por Engenheiros Agrônomos concursados, os peritos são aqueles profissionais que assinam os laudos propondo a desapropriação de imóvel que não está em consonância com a sua função social, requisito primordial previsto na Constituição Federal em relação à exploração de propriedades rurais.

O caso que relato aqui, demonstra a necessidade desses profissionais estarem protegidos contra o insidioso e perverso ataque de poderosos contra a sua manutenção no emprego, e até mesmo, da sua própria vida. O caso se deu assim:

Certa vez recebi a determinação do meu chefe imediato de chefiar uma equipe de vistoria para realizar trabalhos em imóvel rural localizado na região do Médio-Parnaíba. Fiquei sabendo de imediato, que o caso era grave, por se tratar de uma terra pertencente a uma família poderosa que reagia fortemente ao propósito do governo de dar nova destinação ao imóvel em questão. Mais que isto. Seu proprietário já havia barrado a entrada de técnicos do INCRA na fazenda e impedido, com isto, o seu trabalho. Quando fui escolhido para desempenhar a missão, alguns colegas me alertaram que isto poderia ser uma vingança pessoal do meu chefe imediato, com quem tinha problemas de relacionamento nessa época.  Não acreditei nisso. Preferi intuir que a minha escolha se devia mais à minha experiência em casos assim, do que propriamente algum resquício de vindita pessoal.

Alertado ainda pelo engenheiro da equipe barrada, tomei conhecimento de que o proprietário do imóvel os havia recebido com muita dureza, impedindo até mesmo que a equipe adentrasse ao imóvel para conversarem sobre o real motivo daquela visita. Embarquei para a região sabendo das dificuldades que nos esperavam. Comigo, viajava um Topógrafo e um Técnico de Cadastro, além do motorista. A equipe ia muito preocupada, mas alertei logo que não forçaríamos nada. Caso fossemos impedidos de acessar ao imóvel, retornaríamos para Teresina e relataríamos o ocorrido a fim de que nossos superiores adotassem as medidas cabíveis em casos assim. Melhorou o ânimo da equipe, mas não de todo.

Mesmo chegando ao município já com a tarde bem avançada, preferimos iniciar os trabalhos imediatamente, antes mesmo de procurarmos alojamento em alguma pousada, pois a propriedade ficava próxima à cidade, e não teríamos dificuldades de encontrá-la, já que o nosso motorista já fizera parte da equipe anterior que havia sido barrada na sua intenção, e conhecia a sua localização. Por outro lado, como há uma notificação prévia do Instituto sobre o dia previsto para o início dos trabalhos, gostaríamos de chegar ao imóvel na data aprazada para evitar que o proprietário pudesse alegar uma possível ausência da área em razão de não termos cumprido com o prazo marcado para o início dos trabalhos.

Chegando à porteira de entrada da fazenda, já observei a presença de três homens com aspectos carrancudos sob a sombra de árvores, logo após a cerca limítrofe. Desci do veículo e, ao me aproximar da cancela, fui instado por um dos homens a não ultrapassar a cerca, que parasse por ali mesmo. O homem se destacou dos outros dois e, dois passos depois parou e me encarou com rudeza. E mais uma vez falou em alto e bom som: “seja lá o que vieram fazer aqui, aconselho a voltarem pelo mesmo caminho por onde vieram”. Observei que os três estavam armados e faziam de tudo para que notássemos isso. Um dos homens, chapéu enterrado na cabeça, aspecto bélicos, deixava ver o cabo de um revólver de forma muito acintosa.  Continuei caminhando para a porteira, e o proprietário do imóvel - constatei depois quem ele era - disse-me mais uma vez que não ultrapasse o limite do terreno. Falou isso de maneira muito incisiva, de forma que quem estivesse a algumas dezenas de metros de distância pudesse ouvir perfeitamente o que ordenava. Parei e disse-lhe que queria apenas conversar sobre o objeto da nossa viagem até ali. Mas o indivíduo continuava irredutível, e mais que isso, parecia que o seu nervosismo somente se acentuava. “Sei o que vieram fazer aqui. E não permito que entrem na minha propriedade”, foi a sua resposta.

Parei antes mesmo de tocar na porteira, e disse-lhe, de forma branda, mas fazendo ver a ele que não estava intimidado com a recepção. Disse-lhe, por fim, que me sentiria muito constrangido em ter que voltar ali, alguns dias depois, acompanhando por um contingente da polícia federal para poder realizar o meu trabalho. Mas que seria isto o que iria acontecer, caso fosse impedido de entrar na propriedade.  Afirmei-lhe ainda que aquela seria a primeira vez, e que por isso não me sentia nem um pouco feliz em ter que proceder daquela maneira. Disse-lhe, por fim, que tinha uma proposta a lhe fazer, que poderia, dependendo do seu ponto de vista, ser do seu agrado.

O homem ficou a me olhar por alguns instantes, e, afinal, disse-me que eu poderia entrar. Mas, somente eu. Os outros componentes da equipe teriam que ficar fora e aguardar pelo resultado da nossa conversa. Não concordei e disse-lhe que ou entrava toda a equipe, ou ninguém. Eu sabia que não poderia fazer nenhuma concessão ao indivíduo daquele tipo ao indivíduo. E mais que isso, precisava aproveitar que estava inseguro para que a missão tivesse sucesso.  

Passados alguns instantes, ele autorizou a um dos seus homens que fosse abrir a porteira para permitir que o carro do órgão pudesse adentrar à sua terra. Fui caminhando com eles até a casa sede, que ficava a uns trezentos metros da entrada, sem que fosse proferida uma só palavra. Os homens se mostravam em um estado de nervos que qualquer palavra dita fora do contexto, poderia provocar uma reação que eu não saberia até onde poderia nos levar. Sentamo-nos no alpendre e eu passei a lhe fazer a proposta que eu tinha em mente rapidamente. Aqui faço um pequeno intervalo para afirmar que havia folheado o processo e lido um ofício encaminhado pelo indivíduo em que ele dizia possuir um rebanho com uma certa quantidade de cabeças de gado, e que não teria para onde leva-los quase viesse a perder a sua terra. E que o número de famílias que vivam no imóvel, e que agora reivindicavam a posse da terra, era muito pequeno para o tamanho do imóvel. Isso me deu a dica que eu precisava.

A proposta que lhe fiz era técnica, e levava em consideração, tanto ao tamanho do seu rebanho, quanto o número de famílias a serem beneficiadas caso aquele imóvel viesse a ser expropriado. Propunha, portanto, uma divisão do imóvel ao meio. Notei que o homem ficara um pouco mais sossegado, e passou então a negociar comigo tentando perder a menor fatia da terra possível. Contudo, mostrei para ele que os nossos critérios eram eminentemente técnicos, como já afirmei, e que não poderíamos abrir mão da fração do imóvel necessária para o assentamento daquelas famílias para elas pudessem tirar dela o seu sustento familiar.

Passou então ele a negociar a questão da água. Dentro da área existia uma lagoa muito importante, histórica mesmo, e muito piscosa, que ele queria manter para si. E também a parte que limitava com o rio, pois seu rebanho precisa de muita água, principalmente no período da estiagem. Não concordei com o argumento. Propus-lhe que ficasse com um manancial ou com o outro. Que as famílias assentadas precisariam também de acesso a água, pois fatalmente iriam criar um gadinho, mesmo pouco.

Afinal, fechamos a negociação que me pareceu boa para os dois lados. Antes, disse-lhe que precisávamos da aquiescência das famílias para poder fechar o acordo. Saímos de lá e fomos até a casa do líder do grupo de ocupantes, e colocamos na mesa a nossa proposta para resolver a questão que poderia se arrastar por muito tempo, caso não chegássemos a aquiescência do grupo. Notei que ficavam aliviados, e até mesmo muito feliz com o resultado. Dias depois, já em Teresina, recebi a visita do fazendeiro (também advogado e funcionário graduado do estado), que queria tratar de algumas outras questões que haviam ficado fora da conversa inicial. Como a transferência de todas as famílias de dentro da parte do imóvel que ficaria com ele para a área desapropriada. Disse-lhe que isso estava implícito para mim, e que já até havia tratado disso com os assentados. Mas que eles somente poderiam sair de lá quando a instituição construísse as suas nova moradias.  Quis ainda se aproveitar para renegociar a questão da água, mas fui irredutível, e notei que ele ficou um pouco agastado comigo.

Dias depois desse acontecimento, estava eu abastecendo o carro em um posto de combustível na zona leste da cidade, quando senti aquele incômodo como se alguém estivesse me observando insistentemente pelas costas. Virei-me, e me deparei com o olhar rancoroso do dito proprietário, que me observava de pé, fora do carro. E quando viu que eu havia me virado para observá-lo, entrou no seu veículo e se foi, sem uma palavra. Fique, naturalmente, preocupado, pois achava que já estivesse tudo em paz com ele.

Chegando à repartição, no dia seguinte, tomei conhecimento de as coisas andavam um pouco complicadas em razão da ingerência de membros do sindicato na questão. E que estes tentavam tirar proveito da desapropriação para reivindicar mais terra para si e para algumas outras famílias associadas à entidade. Entrei no circuito mais uma vez e falei com o meu chefe que estava havendo uma quebra de acordo e que isso desmoralizava completamente a instituição, além da equipe que realizara as negociações. Fui compreendido por ele e, pouco depois o superintendente enviou correspondência ao sindicato do município em que o imóvel estava jurisdicionado reafirmando o compromisso anterior.

Pouco tempo depois assumi o cargo de Superintendente Regional e pude dar cumprimento a todos os itens do acordo firmado. Foram muitas as vezes que o fazendeiro esteve na Superintendência para resolver questões relativas ao imóvel. Contudo, no final, foi tudo resolvido, e até ganhei, se não a amizade, mas o respeito do ex-proprietário.

Esse foi apenas um caso que terminou bem. Em outros, alguns colegas por esse Brasil afora perderam até mesmo a vida em questões parecidas.

A perda de um imóvel rural, muitas vezes em mãos de uma família há várias gerações, deixa profundas chagas na alma do expropriado. E nem é preciso falar na perda de poder quase ditatorial a que uma propriedade eleva a quem tem a posse de um grande latifúndio. E por isso, a sua importância extrapola muitas vezes ao seu real valor de mercado, transformando-se em um feudo, e conferindo ao seu proprietário imensos poderes políticos, e até de polícia, em uma determinada região. O papel do Perito Federal Agrário, na questão do reordenamento e redistribuição fundiária do país, e no beneficiamento de milhares e milhares de famílias de trabalhadores rurais sem-terra, é vital e imprescindível. E por isso mesmo é tão árduo.  E muito desconfortável. E estes técnicos, em muitas situações, têm que expor suas próprias vidas para realizar o seu mister.  Trabalho duro e mal remunerado.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Em Grandes Solenidades Públicas, O Povão Sempre Entra Para Fazer Número





José Pedro Araújo

Estava lendo hoje mais uma crônica histórica do acadêmico, romancista e cronista parnaibano Pádua Marques, no blog do Poeta Elmar, quando recordei um fato ocorrido na minha aldeia, lá pelo início dos anos 80, quando da inauguração da agência da Caixa Econômica Federal na cidade. O texto que me levou a esse regresso no tempo falava da festa popular que foi o anúncio da construção do Porto Marítimo no litoral piauiense.  Com seu jeito jocoso de escrever suas crônicas, e sempre lançando mão dos termos regionais utilizados pelos populares da Parnaíba, o cronista não deixa de aplicar suas vergastadas, sobretudo, nos lombos dos enganadores e patranheiros. No caso em questão, relembra o autor o carnaval antecipado em que a população da aprazível cidade nortista mergulhou para comemorar a benfazeja notícia que os políticos e empresários levavam até ao povo crédulo da terra de Simplício Dias. O nosso interesse aqui, fica por conta do que acontece aos mais pobres, sempre tão propensos a acreditarem nos falaciosos de plantão e suas notícias grandiosas e pouco críveis. Em determinada altura do seu interessante texto, Pádua Marques discorre sobre a alegria que tomou conta da plebe ribeirinha, entre estes, estivadores, embarcadiços, vareiros, mariscadores e toda a classe de ribeirinhos que retiravam seu sustento do fabuloso Rio Grande dos Tapuias ou do mar-oceano de Amarração. 
A notícia da construção do tão almejado porto parou a cidade e levou a população a suspender todos os seus compromissos para ir ouvir as promessas de melhores dias da voz dos poderosos do lugar. Tudo isso debaixo de um sol inclemente e abrasador. Mas, nada, nada mesmo, era impeditivo para aquela gente. Na hora marcada, estavam todos lá, aplaudindo, sorrindo com as alvíssaras anunciadas de que melhores dias estavam chegando para eles. Enquanto isto, uma semana antes, os ricos e demais classes “superiores” haviam tomado ciência da grande notícia sob o abrigo do Cine Éden, refestelados nas suas poltronas e sob a proteção do seu teto. Agora era a vez do povão humilde. Para esses, os verdadeiros “beneficiários da grande nova”, não era necessário nem anteparo para abrigá-los dos raios dardejantes e da canícula incandescente, nem muito menos um lugar para assentarem as suas nádegas. Que aguentassem o peso do próprio corpo com suas pernas, afinal, já lhes bastava a boa notícia que lhes era destinada.
 E é exatamente aqui que eu entro nessa história. Em uma das minhas costumeiras passagens pela cidade, fui convidado pelo meu pai a testemunhar um acontecimento grandioso para nós presidutrense: a inauguração da agência da CEF na cidade. E de fato era um grande acontecimento para a população local. Quantos empregos seriam gerados na cidade? Seria ainda a oportunidade para os mais pobres depositarem seus dinheiros guardados sob o colchão ou mesmo levantar um crédito especial para a construção ou reforma da tão sonhada casa da família. Nada tão grandioso quanto a construção de um porto, mas, sempre uma grande novidade.  À tarde, aí por volta das dezesseis horas e trinta minutos estávamos nós na Praça do Mercado para ouvirmos os discursos da gente importante que atulhava a alta calçada do prédio onde funcionou o Cine Canecão, esquina da praça do Mercado com a travessa Doca Sereno. A começar pelo responsável pela vinda do banco para a cidade, o Deputado Federal Édson Lobão, ainda no começo da sua trajetória política. O deputado Lobão havia recolhido farta votação dos presidutrense, daí a sua empolgação naquele instante ao fazer o seu discurso para uma massa popular feliz, apesar do sol que queimava seus cocurutos.
Ao fim do interminável desfilar de oradores que oravam exaltadamente sobre o grande momento desenvolvimentista pelo qual passava o município, os ocupantes da calçada alta foram convidados a adentrarem às instalações bancária, para um reconhecimento, mas, e sobretudo, para degustarem um lauto coquetel regado a vinhos, whisky, cerveja, refrigerantes e canapés; muitos, variados e saborosos canapés. A mesa estava farta, e os garçons que circulavam pelo ambiente refrigerado e em meio aos ilustres convidados não regateavam na sua missão. E assim, não economizavam na distribuição de bebidas e salgados aos montes, enquanto lá fora, sob um calor abrasador, a população ficava a ver navios. Mais precisamente, a usufruir da sua insignificância. Muitos, curiosos com o que se passava lá dentro, comprimiam-se contra a vidraça frontal e observavam o que se se passava no interior da casa de crédito. Ao mesmo tempo, outros corriam às bodegas do mercado para comprar um copo d’água ou uma garrafa de refrigerante para minorar a sede que sentiam naquele instante.
Volto ao texto que me instigou a essas lembranças para deixar com o próprio autor o seu sentimento sobre o que ocorreu na Parnaíba naqueles idos de começo do século vinte: “Os bêbados, rapazinhos, meninos, os avulsos, saíam no rumo do Cheira Mijo pra comprar nos botecos alguma coisa pra beber, fosse aguardente, bolos, cuscuz de milho verde e tapioca. Ricos como seu Marc Jacob e James Clark naquele dia eram de estar bebendo uísque, gim, vinho de boa procedência, licores. Os pobres estavam gastando o pouco apurado com Tiquira, Genebra, cachaça serrana, conhaque de alcatrão. Mascando fumo. E assim foi aquele dia de muita celebração em toda a Parnaíba”.
Aqui, como lá, os pobres sempre servindo de plateia para aplaudir aos ditos poderosos nos grandes comícios e demais solenidades para anúncios de grandes acontecimentos que, dizem sempre, irão beneficiar os mais pobres. Enquanto isto, comemoremos nós – devem pensar assim – por estarmos sendo tão bons samaritanos com os mais necessitados. E bebamos em homenagem ou retribuição à nossa bondade ilimitada. Naquele dia de outubro de 1982, voltei-me com um copo de refrigerante na mão e dei de cara com a cena que narrei acima. Dezenas de pessoas se acotovelavam do lado de fora, cara enfiada na vidraça, e observavam com um semblante agora tristes, o que ocorria do lado de dentro da agência bancária. Aquilo me confrangeu a alma e, incontinente, apontei para o meu pai o que estava ocorrendo. Ele concordou comigo que aquela era uma cena deprimente, mas que acontecia sempre daquela forma. Depositamos nossos copos sobre uma mesa encostada na parede e fomos para casa constrangidos e tristes. Não estávamos nos sentindo confortável com aquela situação. Se a festa era para todos, se toda aquela gente havia sido convidada para o evento, por que somente alguns poucos estavam se banqueteando se quisesse, que gastasse do seu suado dinheirinho para matar a própria sede?
Antes que eu me esqueça, o tal Porto de Amarração – o que foi citado pelo cronista Pádua Marques - nunca foi concluído neste quase um século desde o seu anúncio (aniversário marcado para o dia 20 de maio deste ano de 2020). Nesse tempo, muitos se locupletaram com as verbas destinadas ao término da obra, mas os navios continuam passando ao largo.