quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Diário de Um Náufrago (Capítulo VI)




A MEMÓRIA VOLTA A TRABALHAR INTENSAMENTE 

José Pedro Araújo

As lembranças começaram a afluir aos borbotões. E a primeira coisa que me veio foi o momento em que tentei escapar de dois homens fortes que tentavam me subjugar. Pareciam leões de chácara do tipo clássico. Não, agora estava claro, eram dois marinheiros espadaúdos, grotescos e de cara amarrada, e que tentavam me subjugar a qualquer custo. Vi também quando, ao tentar me firmar na amurada, já próxima à popa, para chegar ao convés superior de uma embarcação luxuosa, escorreguei devido ao balanço do mar e despenquei no vazio. No trajeto tomei uma pancada na fronte que me deixou tudo escuro, semiacordado. Essa foi a última imagem que me chegou à mente. Depois voltou a pasmaceira.

Todas essas lembranças me vinham à mente após ter batido a cabeça em uma das colunas do velho navio ancorado na areia da praia. Melhor agora, procurei descer da embarcação e pisei na areia fofa. Olhando mais detidamente, atentei que as marcas das minhas pisadas estavam intactas e formava uma trilha bem visível bordejando a praia. Resolvi seguir por elas. Depois de caminhar por um tempo impreciso, vi que as mesmas deixavam a praia e seguiam para uma mata bem fechada que distava pouco mais de cem metros da água.

Curioso e completamente atônito, segui meus antigos passos e logo avistei uma construção que mais parecia um pequeno depósito de madeira, feito com material de todos os tipos, e de maneira bem rústica. Resolvi arriscar. Precisava saber o que era aquilo, e como tinha chegado até ali. Uma porta de madeira bem sofrível foi aberta sem dificuldades e logo vi o interior da cabana com uma mesa postada no centro do ambiente, e com uma das pernas, de madeira roliça, destacando-se das outras três bem torneadas. Girando o olhar para o canto direito, observei uma cama, uma espécie sofrível de enxerga, coberta por lençóis amarelados, mas que pareciam de boa qualidade, e algumas roupas jogadas sobre ela e que logo reconheci serem as que eu vestia na última vez em que estive de posse da minha memória.

Mas por que aquilo? O que eu fazia aqui? Pelo visto, tinha muita coisa para descobrir sobre a minha nova existência. Estava com outro problema. O que eu desconhecia agora era o que me havia acontecido nos últimos dias. Mas isso logo seria dirimido.

Trouxera da embarcação encalhada algumas facas de inox e dois arpões de ferro de mais ou menos um metro e vinte de extensão. Levei tudo para o abrigo quando resolvi seguir a trilha deixada por mim com as marcas dos meus pés. Depois de muito andar em volta da cabana, sem que as explicações me chegassem aclaradas, pensei em dormir por ali mesmo, até por falta de outra opção. Nesta noite descansei bem. Se bem que com um olho fechado e o outro aberto, como se diz quando estamos com alguma desconfiança a nos atormentar. Mas acordei antes do sol sair, com alguns novos flashes de memória. Parecia que um barulho estridente de carros havia me acordado. Carros, sim! Muitos, barulhentos e apressados, a julgar pelo resfolegar dos motores em constante aceleração. Depois tudo se misturou e eu já me via em uma sala confortável, dezenas de papéis espalhados sobre uma mesa, uma tela de computador da marca Dell em frente a mim, poltronas postadas a um canto e de frente para uma vidraça com vista para uma cidade repleta de arranha-céus. Nesse ponto as coisas voltaram a se misturar, e novamente apareceu aquele salão repleto de gente. Parecia que alguém se dirigia a mim despejando palavras elogiosas, e logo estava eu tentando fugir deles. A minha ida para a minha cabine, os homens forçando a porta de entrada, e novamente a subida na amurada e a queda no vazio. E foi só. Ainda dessa vez. Acordei como que de um sonho. Ou de vários sonhos em conjunto.

Passei um dia exasperado. As lembranças me chegavam aos poucos, a conta-a-gotas, como se precisassem de tempo para ser novamente ordenadas nos arquivos da minha memória. Mas, estavam vindo, e isso era o bastante, isso me trazia alento.

No final do dia eu já sabia o porquê da minha imagem naquele navio. Relembrei que estava fazendo uma viagem de férias com alguns amigos em um barco de cruzeiro com um cassino a bordo. Lembrei que sempre fazia isso nas férias, e tinha especial predileção pelos que ofereciam jogatina a bordo. Lembrei ainda que naquele dia, já no final da noite, havia perdido um bom dinheiro nas mesas de apostas e nas roletas, quando, ao sair sozinho, pois meus amigos haviam resolvido ficar mais um pouco, resolvi apostar algumas fichas nas máquinas caça níquel que estavam enfileiradas na minha frente quase na saída do salão. Apostei em três delas e nada saia ao apertar o botão. No final, já ciente de aquele não era o meu dia, procurei uma máquina com jackpot progressivo e apostei cinquenta dólares nela. A máquina engasgou de repente luzes reluziram e sons inundaram o ambiente em festa, anunciando que eu havia ganhado. Durou apenas segundos e logo começou a vomitar dólares em profusão.

 A imagem da máquina derramando todo aquele dinheiro quase me enlouquece novamente. Cinquenta mil dólares saíram do seu interior recheado de dinheiro e suas luzes e sons continuaram na maior festa. Meus amigos, ao notarem o que acontecia, já que muitos se dirigiam a mim, acorreram até onde eu estava e festejaram também a minha vitória. Depois, convidaram-me para uma última rodada de bebidas e eu, alegre com o resultado da minha noite de gala, e que havia começado tão mal, fiquei mais um pouco com eles. Mas, apesar dos muitos protestos, resolvi levar tudo o que ganhara para a minha cabine. Disse-lhes que nessa noite tomaria um banho de dinheiro. E que depois guardaria tudo no cofre da cabine. Tomei banho de outra coisa.

Quando já me preparava para dormir, mas antes mesmo de trocar de roupas, tocaram a campainha e eu fui atender meio desconfiado. Era um garçom com uma bandeja repleta de iguarias e uma garrafa de champanhe ainda fechada, foi o que pude ver ao olhar pelo olho mágico. Disse-me ser uma cortesia do comandante do navio em razão da minha vitória. Desarmou-me.

Abri a porta descuidadamente, e já pensando em tomar uma última taça da bebida, deparei-me com o cano de uma pistola apontada para mim. Atrás do dito garçom, dois homens parrudos, vestidos com roupas de marinheiro, forçaram a entrada e logo foram me perguntando pelos cinquenta mil ganhos pouco antes. Mas pegaram mais. Deram com a mão em tudo de valor que encontraram na cabine, reviraram meus bolsos e retiraram todos os meus documentos e cartões de crédito e, por fim, conduziram-me ao banheiro. Pela porta aberta vi que o garçom já enchia a banheira com água e adivinhei que iriam me afogar nela. Mas pensei ao mesmo tempo: se iriam me afogar é porque não queriam alertar os outros hospedes com o barulho de um disparo de arma de fogo. E foi ai que reagi para pegar meus agressores despreparados.

Como estava sendo seguro por dois deles, os tais brutamontes, pelos braços, elevei as minhas pernas no ar e, com um impulso vertiginoso, empurrei a todos para trás apoiando os pés na parede do estreito corredor. A flexão que consegui dar às pernas foi forte o bastante para nos arremessar contra a parede oposta, e caímos todos ao chão. Eles, mais atordoados do que eu, pois haviam sido pegos de surpresa, além de baterem com as costas na parede com muita intensidade. Ao cairmos, meus subjugadores relaxaram e afrouxaram os meus braços, e foi ai que aproveitei para, de um salto, sair correndo da cabine para o longo corredor que àquela hora se achava deserto. Ao sair ainda fechei a porta para atrasá-los e parti em disparada.

Meus atacantes demoraram menos tempo do que eu esperava para se recuperar da surpresa, e logo estavam no meu encalço. Mas, mesmo de armas em punho, não optaram por disparar em mim. E mesmo, viram que havia tomado um caminho sem saída, e ali era questão de tempo para me pegarem novamente. De fato, ao ver-me sem saída, na popa do navio, subi na amurada para tentar alcançar a parte de cima, mas foi ai que eu cometi o segundo erro do dia.


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Diário de Um Náufrago (Capítulo V)




MAIS OUTRA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO

José Pedro Araújo
 
Sob a chuva torrencial que desabava naquela madrugada, fui em busca do meu inimigo por outro acesso. E quase me dei mal outra vez. Ao me aproximar do ponto de entrada da caverna, em meio a um matagal fechado, quase cai em uma vala aberta no chão, disfarçada por uma fina camada de folhas. Um galho de árvore inclinado sob a armadilha foi a minha salvação, pois me agarrei como pude a ele e não despenquei no buraco. O coração quase me saiu pela boca, e sem querer, soltei um palavrão que nem sabia que conhecia.
Ao me aproximar novamente do buraco, agora entreaberto, vi que estava cheio de lanças pontiagudas e apontadas para cima. Se tivesse caído ali, certamente ficaria espetado qual um pequeno coelho preparado para ser levado ao fogo. Não teria resistido. Meu opositor, agora meu inimigo real e mortal, não estava para brincadeiras. Decidi sair dali rapidamente. Mas não o fiz o suficiente para escapar de uma flecha que me acertou na altura do abdômen. Alguém fora alertado pelo meu grito. Senti uma dor lancinante, e logo algo quente e úmido me escorreu pela cintura e desceu sobre a minha perna direita. Corri assim mesmo e escapei de outras flechadas desferidas que foram se perdendo ao chocar com as árvores que me protegiam por onde eu passava.
Com muito custo cheguei à minha choupana. Estava fraco e nervoso. Diria melhor, apavorado. Mas ao retirar a minha camisa, a única que eu possuía, e que vestia nessas desbravações, vi que a flecha me atravessara apenas a pele à altura da cintura e me fizera um relativo estrago. Foi a primeira vez que eu notei a minha magreza, estava que era só pele e ossos. Tive febre à noite, mas vi no dia seguinte que o ferimento estava seco e sem pus. Fiz a sua desinfecção com um pouco de água de sal, tal como aprendera quando menino a fazer sarar pequenos cortes nas mãos. Fiz um bom trabalho. E a falta de liquido purulento era um bom sinal disso.
Comecei a trabalhar para melhorar a minha segurança, já que a ideia de sair dali havia sido abandonada, pelo menos momentaneamente. Mesmo com dificuldades, precisava proteger o meu cantinho. Fiz algumas lanças pontiagudas que me serviriam em caso de um ataque, espalhei pela minha acomodação em pontos estratégicos, e preparei também alguns tacapes e passei a andar sempre com um deles. Uma lança e uma borduna, das muitas que eu tinha em locais estratégicos, serviriam para me defender em um caso de confronto com o meu inimigo frente a frente. Também espalhei algumas falsas armadilhas em torno do meu abrigo para afastar o meu insensato vizinho, tudo muito simples, apenas para alertá-lo de que eu estava me preparando para ele. Estava aprendendo com o meu adversário a utilizar a madeira farta encontrada para preparar meu armamento de defesa.
Ainda não falei, mas eu sou um homem de estatura bem acima da média e sou versado em lutas, especialmente o karatê, de modo que, num embate corpo a corpo, não teria problemas em me defender. Pelo menos eu contava com isso. Precisava contar com isso para elevar a minha autoestima. Também tenho a pele clara, muito clara, eu diria, e cabelos tendendo do cinza palha ao louro aguado. Era o que eu via agora através de um caco de espelho que usava em meu barraco. Apesar de não me lembrar muito bem de já ter praticado a arte marcial que citei, dias atrás resolvera me exercitar para estar preparado quando a hora chegasse, e vi que fazia isso com grande destreza e competência, até lembrei do nome dessa luta. Aliás, noto que as coisas começam a clarear na minha mente. Agora mesmo, lembro-me de ter estado em um navio e vejo um grande salão repleto de mesas e cadeiras, quase todas ocupadas. Vejo também homens com viseiras esquisitas manuseando dados, cartas, ou girando uma pequena engrenagem com as mãos em quanto gritam algo aos presentes alguma coisa. Há tremenda agitação entre os circundantes, e eu me acerco do homem e coloco algumas fichas sobre um pano verde, depois de forçar a minha passagem entre os presentes que se agrupam em volta do local. As imagens agora vão se apagando lenta e inexoravelmente da minha mente, mas ainda tenho tempo de ver o homem de viseira empurrar para mim muitas fichas de todas as cores. Como se fossem luzes lembrativas se apagando, voltou o vazio à minha memória.
Cansado de esperar por algo que nunca vem, hoje à tarde resolvi caminhar até o navio naufragado. Mas, antes, deixei algumas coisas distribuídas chamativamente em pontos estratégicos e mentalizei a posição exata de cada uma. Um pequeno livro aberto em determinada página e com um peso em cima; uma velha lata de biscoitos com algumas pequenas coisas dentro, e com uma de suas faces virada para um determinado lado, de modo que eu pudesse notar caso alguém a movesse do lugar. Deixei algumas outras pequenas armadilhas espalhadas em torno do casebre prontas para me alertar sobre a passagem de alguém. Precisava saber se o meu inimigo havia visitado a cabana na minha ausência. Depois destes preparativos, parti até ao navio naufragado. Era uma caminhada boa, e isso me deixou ativo, e com os sentidos ligados em todos os botões, pois queria sentir a presença de alguém chegando antes que me atacasse. Mas, nada aconteceu.
Subi no velho navio e entrei no seu interior pela abertura no convés. Uma nuvem de morcegos fez a minha acolhida, mas eu já estava preparado para eles também e, assim, não me causaram nenhum óbice ou contratempo. O interior da embarcação estava devastado também, coisas jogadas pelos cantos, e no meio do espaço interno um grande vazio. Parecia até que alguém havia tido o cuidado de arrumar tudo ao longo das paredes da embarcação e deixado um imenso vazio no centro dela. Abri uma estreita porta de uma cabine, e senti um bafo embolorado me atingir o rosto com estrema força. Fechei novamente a porta, mas tive tempo de notar um velho catre relativamente arrumado, como se alguém tivesse feito a cama antes de sair, nunca mais retornando. O espaço estava iluminado por uma claraboia lateral.
Passei um bom tempo verificando tudo, e o ambiente relativamente claro foi perdendo a luminosidade à medida que o tempo passava o que denotava que a tarde já ia caminhando para o seu final. De posse de alguns utensílios de cozinha que encontrei jogados pelo chão da embarcação, procurei sair rapidamente dali e tropecei em algo que fez com que levasse um grande tombo, batendo duramente com a cabeça em uma das colunas do casco. Senti com se meus sentidos fossem me abandonar, e uma dor aguda me invadiu o cérebro.  Consegui-me por de joelho, mas estava zonzo para me levantar e permaneci um bom tempo assim. A dor foi aos poucos se reduzindo, mas senti que algumas gotas de sangue quente me escorreram pelo rosto e empaparam a minha barba já bem crescida. Levei um tempo para me recuperar e algumas lembranças de um passado não tão distante vieram até mim à medida que a dor ia embora. O que diabos fazia eu ali naquela velha embarcação? Por que estava vestido só de sunga? O que estava acontecendo comigo?
Sai ao ar livre e me vi em um ambiente de sonhos. À minha frente se estendia uma praia de areias brancas e cintilantes naquele fim de tarde. O mar de águas azuis se estendia a perder de vista, sob um céu azul escuro e cintilante. Comecei a me lembrar então como tinha ido parar por ali. E isso não me animou, muito ao contrário, deixou-me triste e desesperançoso.
Caminhei para a popa e subi no tombadilho para apreciar melhor a paisagem e tentar me localizar. Durante o pequeno trajeto senti me faltar forças, e a minha respiração se mostrava cada vez mais difícil. Minha testa voltou a latejar e logo toquei o ferimento com a ponta dos dedos, retirando-o de supetão ao sentir uma dor forte na altura do ferimento. Sentei-me na borda de madeira da imensa plataforma e os sentidos começaram a se aclarar e o cansaço deu lugar a um momento de relativo e crescente conforto, um gostoso bem estar estava se apossando de mim, eu diria.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Crônicas Vividas - Chá de Realidade

Foto meramente ilustrativa by Google



José Ribamar de Barros Nunes*

O chá faz parte da vida de todos nós e creio que pode cooperar com nossa saúde. Existem dezenas de espécies e para todos os gostos. Mas o de que quero falar, hoje, refere-se ao cotidiano das pessoas. Não diz respeito ao paladar, porém, atinge todo o corpo e a alma dos indivíduos, não se trata de um líquido, mas de um tipo de comportamento e atitude.
Esse tipo de chá, chá de realidade, acontece nos caminhos e ruas da coexistência social, no dia-a-dia da vida. Em termos populares, o chá de realidade serve para fazer a gente cair na real e não estranhar os diversos comportamentos que as pessoas mostram e demonstram.
A vida eu considero e defino como uma escola sem férias, onde todo santo dia há uma lição a aprender. As aulas ou lições da vida ocorrem todos os dias, todos os momentos, em todos os lugares, em todas as horas. Elas se nos apresentam e nos desafiam na família, nas ruas e praças, nas reuniões partidárias, nos espaços de lazer e por aí vai. A vida ou o tal chá de realidade não escolhe dia, hora nem lugar para pregar peças e fazer testes.
Nessa escola dura e realista todos somos ou podemos ser alunos e professores ao mesmo tempo. Basta ter boa vontade, olhos de ver, ouvido de ouvir e coração para sentir. Os resultados e efeitos dessa experiência e cidadania diária, bons ou maus, perduram para sempre e deixam sequelas agradáveis ou lamentáveis ad perpetuam rei memoriam.
Chá de realidade significa a mesma coisa que lei da realidade (Lei de Maquiavel, Peron, etc). Pode pesar e agir muito mais do que um chá de cadeira prolongado. O importante é saber enfrentá-lo, compreendê-lo e resolvê-lo, pois como ensina a sabedoria da plebe ignara, não existe problema sem solução. Não se olvide, todavia, que muitas vezes, dá uma vontade danada de chutar o balde e o pau da barraca...
Segura, peão. A vida continua e é bom viver.


(*) José Ribamar de Barros Nunes, Cronista e Consultor Parlamentar do Senado.
Autor de: Crônicas Vividas e Duzentas Crônicas Vividas.
E-mail: rnpi13@hotmail.com

sábado, 19 de novembro de 2016

Missiva A Um Jovem Poeta(*)

Foto meramente ilustrativa by Google



Elmar Carvalho
Poeta, Contista, Cronista, Membro da APL e Juiz Aposentado.

Com data do dia 20/10/2016, recebi o seu e-mail, com o seguinte e sucinto conteúdo:
“Senhor Elmar lhe escrevo com sinceridade para pedir-lhe que leia o material que lhe envio e me remeta um feedback. Tenho escrito poesias, algo muito amador já que não sou tão versado nas letras, mas tenho um enorme interesse em aprender mais sobre a escrita e suas artes, portanto tenho buscado alguém que possa dividir conselhos sobre como tornar melhor o material que tenho escrito, portanto lhe envio algumas de minhas poesias para que possas me ajudar se assim for possível. Desde já agradeço.”

Tentarei respondê-lo.

Por e-mail, pedi ao remetente do bilhete eletrônico, que me dissesse a sua idade e a sua instrução formal, para que eu pudesse ter uma ideia de como deveria formular a minha resposta.

Fiquei sabendo que tem curso superior e que tem a idade de apenas vinte e poucos anos. Isso me fez lembrar estes versos da música de Belchior, que tanto ouvi no início de minha já distante e bisonha juventude: “Tenho 25 anos de sonho, de sangue / E de América do Sul”.

Também tive meus sonhos, e um deles era ser poeta, o melhor que eu pudesse ser. Contudo, não faço mais versos. Não os faço, não por desejo próprio, mas porque eles não mais me procuram. E não os desejo fazer à força. A genuína poesia é caprichosa e só nos aparece quando bem deseja.

De início, devo dizer que é uma tarefa muito difícil, e acredito que mesmo impossível, um poeta ajudar outro poeta a tornar melhores os seus poemas. Talvez possa dar algumas dicas, algumas pistas ou alguns “bizus” como dizem os professores de pré-vestibular.

Prefiro fazê-lo em forma de breve depoimento, que você deverá aplicar à sua própria experiência, mutatis mutandis, para gastar um pouco de meu incipiente latinório.

Senti que a poesia ganhava força em mim a partir de meus dezenove anos, e sobretudo quando alcancei a idade que você tem agora, mesmo tendo sido um leitor de poesia desde os meus dez anos.

Não tive pressa em publicar livros, apesar de que publiquei algumas crônicas e contos no jornal A Luta (de Campo Maior), a partir de meus 16 anos. Depois, aos 19, em jornais de Parnaíba e Teresina, comecei a publicar meus poemas. Muitos, apesar de não renegá-los, não os recolherei em livros; fazem parte de minha experiência literária.

O fato de você ir publicando de forma esparsa e entre amigos e professores, faz com que o poeta sinta a receptividade que seus textos estão tendo. Também não podemos ter a pretensão de achar que todos eles são bons. De qualquer sorte sempre é bom que a nossa autocrítica seja rigorosa. Mas é saudável que ouçamos os nossos leitores, amigos e críticos.

Penso que é indispensável ler muito mais do que escrever. Ao escrevermos, não nos devemos esquecer da borracha, da caneta vermelha ou da tecla de deletar. A concisão é necessária, mormente nos dias de hoje, em que há várias mídias, em que há uma multidão de livros, que abarrotam as livrarias, em que há escritores e poetas de mais e leitores de menos.

Por outro lado, pelo menos no Piauí (mas não só), a “carreira” literária é quase sem retorno, tanto de reconhecimento como em termo financeiro. Escreve-se a vida inteira em troca de pouco ou nenhum reconhecimento.

Não sou daqueles poetas que dizem acreditar apenas no trabalho. Acredito na transpiração, mas também acredito na inspiração. Posso dizer que muitas vezes tive o lampejo de um poema, que só veio à luz muito tempo depois. Alguns poemas já nasceram quase prontos, enquanto outros tive que polir, desbastar e acrescer, caso viesse a ter uma ideia que achasse interessante.

Outros poemas os imaginei por vários meses, e até mesmo por alguns anos. Tive que pesquisar para fazê-los. Deixei-os em estado latente, em meu cérebro, até que um dia senti a compulsão irrefreável de escrevê-los. Por vezes busquei esse momento e essas emoções, vendo prédios antigos, olhando velhas fotografias, rememorando certos fatos e situações.

Imprescindível ler os grandes poetas, tanto os do passado como os contemporâneos, para que possamos lhes descobrir as técnicas e macetes, os jogos de linguagem, mas sem que tenhamos a necessidade de nos tornarmos cerebralistas e artificiais. E lermos, um pouco, os maus poetas, para que percebamos muito bem a diferença entre um verdadeiro poeta e um poetastro. Aprendi muito com isso.

Um poeta deve ter coragem de ser poeta. Isto é, dizer o que deve ser dito, calar o que deve ser calado, mas sem a poda da autocensura. E sempre é válido, sem descurar do estudo da crítica e da teoria literária, ser também intuitivo, e não excessivamente racional e metódico.

Um pouco de humildade não faz mal a ninguém. Sobretudo a humildade para nos mantermos abertos a novas aprendizagens. Ao recomendar a humildade estou falando principalmente para mim mesmo. Manuel Bandeira, que era Manuel Bandeira, escreveu este verso: “Sou poeta menor, perdoai!”


Deixo que você medite sobre minhas pobres palavras, e tire as suas próprias conclusões. Desejo que elas possam lhe servir para alguma coisa. Considero o homem como uma obra em construção, e que ele próprio deve buscar o seu auto aperfeiçoamento. Caso sejamos crentes, poderemos orar, e pedirmos a ajuda de Deus.

Você é poeta. Tem garra para ser poeta. Seus poemas têm substância. Prossiga, sem pressa; prossiga com cautela, estudo e labor.

E sem esquecer a intuição e a inspiração, se é que essas duas palavras não nomeiam uma só e mesma coisa.

Atenciosamente,

Elmar Carvalho


(*) É bom que se leia “Carta a um jovem poeta”, do excelso vate Rainer Maria Rilke, que não consultei para escrever o vertente texto.