terça-feira, 29 de maio de 2018

Viagem a Manaus (*)

Foto extraída do Google


Elmar Carvalho, poeta, romancista e cronista, é membro da APL.

Com a finalidade de visitar nosso filho João Miguel, que reside em Manaus, no domingo, dia 29 de abril, fomos a essa capital amazônica. Ao chegarmos ao aeroporto de Brasília, para a conexão, à boquinha da noite, mal me levantei da poltrona, fui abordado por uma senhora, que me fez uma pergunta casual, sobre o nosso destino ou sobre a conexão, não me lembro ao certo. Respondi-lhe que ia a Manaus, em visita a um filho; ela, então, me disse que seu pai, um português, fora dono de seringal no Amazonas.

Disse-lhe que, no auge da exploração da borracha, vários nordestinos, inclusive piauienses, foram para a Amazônia. Nosso rápido e circunstancial diálogo terminou aí. Depois, na continuação da viagem, lembrei-me de Humberto de Campos, que tentara melhor sorte na região amazônica. Humberto, embora maranhense de Miritiba, que hoje tem o seu nome, após o falecimento de seu pai, passou grande parte da infância em Parnaíba (PI), de onde saiu aos 13 anos de idade, com destino a São Luís.

No meu retorno a Teresina consultei o importante livro Humberto de Campos: evocações de uma vida, da autoria da amiga e confreira na Academia Parnaibana de Letras Amparo Coêlho, para refrescar-me a memória, e nele encontrei a informação de que esse escritor, memorialista e poeta foi capataz de um seringal, onde foi acometido de uma febre palustre, que lhe fez retornar a Belém. Chegou a redator-chefe do jornal A Província do Pará, cujo proprietário era Antônio Lemos, que foi eleito prefeito dessa capital. Foi designado secretário da Prefeitura. Com a deposição do alcaide, foi perseguido por causa de sua atuação jornalística, e teve que fugir para o Rio de Janeiro, a bordo de um navio da Lloyd.

O rápido diálogo, a que me referi, me fez lembrar que os avós maternos do poeta e escritor Alberto da Costa e Silva, filho de dona Creusa e de Antônio Francisco, o poeta maior do Piauí, de nome literário Da Costa e Silva, também moraram em Manaus. Soube disso através dos livros O espelho do Príncipe e Invenção do Desenho, da lavra de Alberto, ambos com o subtítulo “ficções da memória”, que nem por isso deixam de ser duas excelentes obras memorialísticas, que li com muito agrado, quase de um gole, como se costuma dizer. Fiz a leitura através de e-book, em meu aparelho Kindle.

Do cotejo deles, fiquei sabendo que seu avô materno possuíra cabedais na região amazônica, entre os quais fazenda e seringal, além de duas amantes, que, com sua morte, se apropriaram de quase tudo. Sua avó, Maria Adélia Fontenelle de Vasconcellos, conhecida como Aroca, ficou viúva com menos de quarenta anos de idade, e teve que retornar ao Ceará, sua terra natal. Fixou residência em Fortaleza e passou a usar luto fechado pelo resto da vida, conquanto não tenha se tornado uma pessoa melancólica, amarga ou depressiva. Ao contrário, tinha ânimo forte e positivo. Pertencia a importantes estirpes de Viçosa e Sobral. Recomendei-lhes a leitura ao historiador Vicente Miranda, que escreveu a mais importante obra sobre a genealogia e história da Ibiapaba e adjacências, inclusive Piauí, no intuito de lhe possibilitar eventuais enriquecimentos e acréscimos quando de uma anunciada segunda edição. 

Feito esse parêntese, que achei pertinente, retomo o tema central. Chegamos a Manaus por volta de meia noite, ou 23 horas no horário local. Após os abraços e cumprimentos de praxe, João Miguel nos levou ao seu apartamento, situado perto da avenida das torres. Torres de transmissão elétrica, esclareço. No dia seguinte, pude constatar que da varanda, para qualquer lado que pudesse alcançar, eu via, por entre ruas e casas, boas porções de florestas. Ao amanhecer, ouvi o canto alegre de aves. À noite, ouvi, muitas vezes, o canto rascante de cigarras e a sinfonia álacre dos batráquios.

Também, margeando algumas avenidas, víamos, amiúde ou quase sempre, generosas nesgas florestais, que adornavam a paisagem urbana. No meio de árvores imponentes e copadas, vi pequenas plantas e arbustos, de um verde vivo, luxuriante e diversificado, em que muitas vezes parecia haver esmeraldas esmaltadas, tal o brilho das cores da folhagem. O formato e o tamanho das folhas eram muito variados. Em caprichado paisagismo natural, digno talvez dos arranjos de um Burle Marx, víamos trepadeiras a se enroscar em suntuosas árvores.

Em dois shoppings, vi, através de paredes envidraçadas, verdadeiros parques florestais, que lhe ficavam contíguos, talvez como áreas de preservação ambiental. Dessa espécie de mirante ou posto de observação, vi plantas imensas, de enormes frondes. Algumas, suponho, eram mais altas do que um prédio de cinco ou seis andares. Fiz esse cálculo tomando por base o andar de onde eu as observava.

Mais uma vez verifiquei a diversidade de tamanho, formato, textura e flexibilidades dos arbustos e árvores. Fiquei a imaginar que algumas poderiam ter vários séculos, podendo remontar à descoberta do Brasil pelos portugueses, senão ainda anteriores. Havia ainda enormes e variadas palmeiras, que vi de perto e do alto, através das vidraças do centro comercial.

Ao conversar com João Miguel sobre o Teatro do Amazonas, que conheci em viagem anterior, disse-lhe que essa deslumbrante e faustosa casa de espetáculo fora concluída pelo governador Fileto Pires Ferreira, nascido no Piauí. Como ele tenha se admirado dessa informação, acrescentei que outro piauiense também governara o Amazonas: Gregório Thaumaturgo de Azevedo (*), que também foi o primeiro governador republicano de seu estado natal. Ambos são filhos de Barras, justamente cognominada Terra dos Governadores.

No texto Piauienses viraram ficção na Amazônia, de Dílson Lages Monteiro, colho o seguinte comentário: “Um é descrito como ‘magro, ágil, elétrico, homem de fino trato, olhar inteligente, meio romântico, ousado, impetuoso, um tanto ingênuo, elegante de espírito (...) bem-nascido, família abastada, dona do Norte do Piauí, a terra do gado’. O outro, como um combativo homem público de ampla atuação, a seu tempo, no Norte do País. Fileto Pires Ferreira e Thaumaturgo de Azevedo, piauienses que governaram o Amazonas, respectivamente, entre 1896-1898 e 1891-1892, são personagens do romance ‘Teatro do Amazonas’, de autoria do amazonense Rogel Samuel.” 

A família Pires Ferreira exerceu o protagonismo político no Piauí durante vastos anos, sobretudo sob a liderança dos barrenses Firmino Pires Ferreira (25-09-1848 – 21-07-1930) e Joaquim Pires Ferreira (15-07-1868 – 23-12-1958). O primeiro participou da Guerra do Paraguai, como voluntário, e se tornou herói em várias batalhas; era marechal do Exército nacional, e foi senador por mais de trinta anos; o segundo era advogado, foi deputado federal e senador da República por várias décadas e é epônimo de uma cidade piauiense.

Gregório Taumaturgo de Azevedo, filho de Manoel de Azevedo Moreira de Carvalho e Angélica Florinda Moreira de Carvalho, nasceu em Barras (PI), em 17-11-1853, e faleceu no Rio de Janeiro, em 29-08-1921. Fundou a cidade de Cruzeiro do Sul (Acre) e a Cruz Vermelha Brasileira, da qual foi presidente. Segundo o escritor e romancista Rogel Samuel, foi ele quem traçou o plano da cidade de Manaus. Encerrou sua carreira profissional como marechal do Exército Brasileiro.

Fileto Pires Ferreira, filho de Raimundo Carvalho Pires Ferreira e Lídia Santana, nasceu em Barras, em 16-03-1866, e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 11-08-1917, tendo alcançado o posto de general. Esforçou-se em concluir as obras iniciadas por antecessores, inclusive o famoso Teatro do Amazonas. Embora considerado um grande governador, encontra-se imerso em injusto esquecimento. Ao se ausentar do estado, para tratamento de saúde na Europa, foi vítima de uma “armação” política de seus inimigos, que forjaram um falso pedido de renúncia, com a falsificação de sua assinatura, e lhe destituíram de seu cargo. Embora em vão, teve a hombridade de tentar reconquistar seu cargo de governador fraudulentamente usurpado.

Nas vezes em que percorri as ruas e avenidas manauaras, em automóvel conduzido por João Miguel, sem querer laborar em estereótipos e maniqueísmos, que sempre distorcem ou exageram a verdade, notei que os demais motoristas não eram excessivamente apressados, e cediam a preferência em cruzamentos e conversão de faixas, de sorte que não presenciei nenhum acidente de trânsito, como com frequência observo em Teresina, apesar de Manaus ter mais do dobro da população desta.

Quando pedi alguma informação, notei que a pessoa parava, fixava a atenção em mim, e com urbanidade e respeito dava a sua resposta. Mera coincidência ou não, só vi no noticiário local um crime de alta repercussão: o assassinato do advogado criminalista e ex-deputado estadual Armando Freitas. Ou os homicídios não ocorrem com tanta frequência ou não lhe atribuem a importância sensacionalista que lhe dão em outras paragens.

No domingo, 6 de maio, fomos conhecer o calçadão e praia de Ponta Negra. É um local de muita magia e beleza, com muita água espraiada e a presença aprazível de algumas nesgas de florestas, que me pareceram bem preservadas. A impressão geral que tive, embora possa estar enganado, é de que a cidade não entrou em processo de excessiva verticalização. O rio Negro parece formar nesse local uma espécie de baía ou de grande remanso. Em dia anterior, fomos conhecer a Praia do Japonês, que não se encontrava aberta. Mas o passeio não foi em vão, pois nos serviu para termos uma ideia do que seja a floresta amazônica, apesar de que não estávamos em mata fechada.

Fomos, em seguida, a um restaurante flutuante, onde nos encontramos com Higino Freitas, sobrinho da Fátima, e com o tenente Fernando Alves, paraibano, amigo e colega de meu filho. Nesse local, vimos a pujança e a beleza da floresta e do grande rio, perante o qual, sem ironia e sem menoscabo, o nosso Rio Grande do Tapuia, o nosso querido Parnaíba ou Velho Monge, como nos versos de Da Costa e Silva, torna-se quase um igarapé. Mas o Parnaíba, apesar das maldades que lhe fazem e da incúria dos governantes, é um rio forte e bravo; e resistente, insiste em não morrer.

O Gino e o João Miguel comemoravam seus aniversários, ocorridos, respectivamente, nos dias 4 e 5 de maio. O primeiro ficou muito emocionado com um vídeo que lhe foi enviado por seu irmão Nonato (Natim) Freitas, em que este proferiu belas palavras afetivas e fraternas. O Gino, entre outras iguarias, pediu o peixe jaraqui, por não ser conhecido no Piauí; para não sair da rima, repetiu o bordão: “Quem come jaraqui, não sai daqui”. E eu, fingindo um equívoco, continuei no mesmo refrão: “E quem come do jaracá, não sai de cá”. Com isso brindamos e encerramos essa tarde de encantamento, confraternização e beleza.

E, arrematando, para os estilistas esqueléticos, de pretensiosa contenção e rigor, que se autoproclamam avessos ao uso de adjetivos, direi: ao se falar de uma amazônica beleza, de amazônicos rios e florestas, não se pode deixar de usar muitos adjetivos. E aproveito para perguntar: se os adjetivos não devem ser usados, por que diabos teriam sido inventados?

(*) Vários dados históricos desta crônica foram extraídos do referido texto de Dílson Lages Monteiro, de uma entrevista concedida por Rogel Samuel ao portal Entretextos, do blogdorocha e do Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado, da autoria do barrense Wilson Carvalho Gonçalves. 

(**) Após publicar esta crônica na internet, tomei conhecimento de que o piauiense César do Rego Monteiro  (n. 17-04-1863 em União, f. 1933 no Rio de Janeiro) também governou o estado do Amazonas (01-01-1921 a 30-09-1924).  

sexta-feira, 25 de maio de 2018

A HISTÓRIA DE PRESIDENTE DUTRA - A difícil vida na Vila de Curador (Parte 14)



José Pedro Araújo

A Agência dos Correios, sem o Telégrafo, foi implantada nesse período inicial do desenvolvimento da vila de Curador, possibilitando o contato com outras regiões do estado através do transporte de correspondências para a sede do município em lombo de animais, e dali para a capital, por barco, pelo rio Mearim. A abertura das picadas na mata para a instalação dos postes de madeira se daria bem depois, quando se iniciou a instalação dos fios do telégrafo, fato que contaremos mais afrente.  Apesar de um grande avanço para a comunidade, ainda mantínhamos contato com as outras cidades através dos malotes de correspondência que eram transportados no lombo de animais, prática abolida pelos americanos, ainda no início do século XIX, quando aposentaram o velho Pôney Express.  
Antes desse verdadeiro avanço tecnológico, as notícias aqui chegavam com muito atraso, dias após o seu acontecimento, deixando os habitantes completamente alheios ao que ia pelo mundo, e ate mesmo no nosso estado. Daí a importância de tão significativa obra de comunicação.
Para chefiar o posto de correios foi nomeado o senhor Adelino Fernandes Barros, membro da família Barros originária de Pastos Bons, primo do avô materno deste autor, Capitão Diolindo Luiz de Barros, também egresso daquela cidade sertaneja.
A educação, ainda incipiente, contava com alguns professores que ministravam aulas particulares, como era o caso do Sr. Elóy Barbosa Uchôa, considerado por muitos como o primeiro mestre-escola a transmitir seus conhecimentos no nascente povoado, ensinando às crianças do pequeno lugarejo as primeiras letras do alfabeto.
A propósito disto, o decreto nº 377, de 23 de novembro de 1920, emitido pelo governador Urbano Santos, destinava recursos para a construção de uma escola no povoado Curador e outra na sede do município, Barra do Corda. A escola que nos cabia nunca chegou a ser construída, fato que nos leva a indagar aonde esses recursos foram aplicados.
No início da ditadura Vargas, é nomeado interventor em Barra do Corda o Ten. Natal Teixeira Mendes, que além da carreira militar, devotava verdadeiro amor pelas letras, como afirma o professor Brandes. Empossado no cargo, logo este administrador começou a dar ênfase à educação no município, levando suas ações aos distritos mais afastados. Afirma ainda Galeno Edgar Brandes que durante o seu período como interventor, que durou de 1.930 a 1933, os distritos de Barra do Corda passariam por um período de grande desenvolvimento. É possível que tenha sido nesse quadriênio que as professoras barra-cordenses, Edelves Maranhão Pinto e Joana Lima de Macêdo, além do professor Raimundo Alves - que ministraria suas aulas no povoado de São José dos Basílios - tenham sido deslocadas para cá.
Mais afrente, no capítulo destinado à educação, teceremos maiores comentários sobre a figura da professora Joana Lima de Macêdo que viria a desempenhar importante papel em outras áreas, inclusive ocupando a direção do departamento de Correios e Telégrafo.
Nesse tempo, também foram construídos o colégio “Magalhães de Almeida”, onde hoje se localiza a casa de Noveli Sereno, na rua que leva o mesmo nome da escola, e também o Grupo Escolar “Maranhão Sobrinho”, no povoado Canafístula dos Moraes. Neste último estabelecimento, minha mãe iniciou sua breve carreira de professora, encerrando-a quando desposou meu pai e fez opção pela criação dos filhos. Foi uma das primeiras mestras a nascer no povoado do Curador.
Alguns historiadores do município dizem que o primeiro subdelegado de polícia do Curador, cargo de livre nomeação do prefeito municipal, teria sido um senhor, cujo nome correto não me foi possível confirmar, que atendia pela alcunha de Manoel Taboca. Ainda vivíamos os primeiros momentos da nossa caminhada, quando os problemas de segurança não nos incomodavam tanto como hoje.
Na condição de distrito administrativo e judiciário, a povoação foi ganhando seus prédios mais modernos expulsando para o passado os casebres de palha que enfeavam a Rua Grande e a praça central, e ante a chegada de professores e de alguns agentes públicos para chefiar as primeiras repartições - primeiras pessoas detentoras de um salário fixo - algumas casas comerciais com melhor estoque de produtos também foram se instalado na localidade, e o dinheiro começou a circular melhor na região.
O Distrito continuava, porém, sem um posto de saúde ou ambulatório para atendimento de primeiros socorros, razão pela qual doenças de tratamento simples causavam ainda a morte de seus habitantes, especialmente de velhos e crianças, elevando ainda mais a taxa de mortalidade infantil que já era muito alta. Não havia sequer farmácia no povoado, fato que obrigava os moradores a utilizarem-se das plantas da região que consideravam medicinais, para, a partir delas, proporcionar o tratamento de seus males. A propósito disto, recentemente li um livro muito interessante da missionária inglesa Eva Mills, intitulado 8:28, no qual narra, entre outras coisas, a sua vida nos sertões do Maranhão nos anos 20 e 30. Convidada a participar de uma Convenção Evangelística no povoado de Curador, ela descobriu-se com Febre Tifoide logo que chegou à vila. Seu esposo até tinha os conhecimentos necessários para cuidar da doença, mas faltava a medicação necessária, e por isso foi enviado uma pessoa a Pedreiras, cidade mais próxima, a cavalo, a fim de adquirir a medicação necessária. O enviado a Pedreiras conseguiu adquirir a medicação em tempo recorde, viajando de dia e de noite, trocando de montaria no meio do caminho, fazendo o trajeto em pouco mais de 24 horas. E mesmo com a medicação, à falta de condições de higiene, e de um local apropriado para manter um doente nas condições em que estava, decidiram transportá-la para Barra do Corda.
Deixo para a Sra. Mills a tarefa de relatar a dificuldade enfrentada por ela para se safar da morte certa em uma comunidade que falta de tudo:
       Por conta das condições adversas em Curador, foi decidido que me levariam, assim como eu estava, dentro da rede, até a casa dos Smith em Barra do Corda. Os homens que participavam da Convenção, juntamente com os nossos garotos, retiraram uma viga da casa de um deles, na qual minha rede seria amarrada. Dois burros, um à frente e um atrás de minha rede, foram usados para carregar a viga. Esta os manteria, enquanto me carregavam, a uma distância constante um do outro. Cada ponta de viga estava amarrada à bagagem na sela do burro. Dessa forma a minha rede se manteria sempre à mesma altura do chão”.(Eva Y. Mills, 8:28, pág. 120).
Apesar de não falar quantos dias levou o seu trajeto do Curador até a sede, Barra do Corda, acredito não ter sido menos que quatro dias, de acordo com o desenrolar do texto. E no caminho, ao encontrarem um grupo de pessoas, foram indagados se o comboio transportava um morto naquela rede. Feliz por estar viva para contar a história, a autora exemplificou o porquê da pergunta dos desconhecidos:
       “Havíamos encontrado, mais cedo naquele dia, dois homens, um à frente do outro, carregando uma pessoa morta em uma rede pendurada sobre seus ombros. Eles estavam bêbados. Quando ocorre a morte de uma pessoa pobre nessas pequenas localidades, o enterro tem que ser feito dentro de 24 horas. Dois homens são contratados para fazer isso. Eles com frequência são movidos à força do álcool. Ao chegarem ao local do enterro, uma simples clareira na floresta... o cadáver é colocado num buraco previamente cavado, a terra e jogada sobre ele e a rede é devolvida ao seu dono”.(Idem).
O fato narrado aconteceu em 1935, e registra todas as dificuldades que tinham os moradores da nascente vila de Curador nos primórdios da sua existência.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

A SELEÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL E O JOGO QUE NUNCA ACONTECEU.

Imagem das Seleções no estádio do Arruda


José Pedro Araújo
Em alguns momentos eu acredito que a minha memória está querendo me trair. Coisas da idade, dirão. Hoje, por exemplo, passei o maior perrengue ao afirmar para o meu filho caçula, um jovem já com seus trinta e dois anos, que assisti a um jogo especial da Seleção Brasileira A contra a seleção Brasileira B, em Recife, no ano de 1973. A indagação dele foi: “e aconteceu isso mesmo? Nunca ouvi falar”. E como nos dias de hoje tudo é motivo para se recorrer ao pretensioso Google, logo sacou seu Smartfone e começou a pesquisar. Um minuto depois ele se vira para mim, e como se estivesse falando consigo mesmo, devolveu sarcástico: “como eu pensava! Esse jogo nunca aconteceu!”.  Eu fiquei perplexo e rebati na mesma moeda: “pois saiba que eu sou mais atualizado do que esse sabe-tudo Google. Vou provar!”. 
Como eu não sou louco e nem estou ainda naquela fase em que o homem esquece facilmente aquilo que presenciou ou ouviu cinco minutos atrás, compreendi que ali estava a chance de provar que eu ainda estou com as minhas faculdades mentais completamente intactas. E corri para o meu computador e iniciei a minha própria busca no... Google. Nada encontrei, no que pese ter tentado de maneiras diferente formular a pergunta. Nenhuma uma linha sobre o assunto foi encontrada. Tentei de outras formas, sempre alertando que o jogo havia acontecido em Recife, no início do ano 1973. Nada. Apareceram algumas informações, como o jogo de despedida de Garrincha da Seleção Brasileira em 1973, além de outras coisas sem a menor conotação com o que eu procurava. Sobre o maldito jogo, nem uma linha. Eu mesmo já começava a me questionar.
Nesse momento meu filho se acercou de mim e despejou a pergunta que eu temia: “achou alguma coisa? Temo que esse jogo só aconteceu na sua mente, pai!”.  Nem me virei. E sem nada dizer, insisti na minha procura no Google. Tudo em vão. Então me lembrei de procurar no YouTube. Também é um instrumento de busca importante a que eu tenho recorrido constantemente. Mas, antes, fiz uma última tentativa ainda no Google, sobre As Olimpíadas do Exército que aconteceram em Recife em 1973. O tal jogo, da forma como eu me lembrava, havia acontecido na abertura desse evento grandioso para a época. Aí apareceram dois vídeos antigos sobre o evento, ambos publicados no You Tube. Um com 12, e outro com 11 minutos. Acessei um e vi que aqueles jogos olímpicos haviam acontecido de fato. Tratava-se das IVª Olimpíadas do Exército, informações provenientes da Casa Civil da Presidência da República, do Arquivo Nacional. De fato. Aquele evento havia sido realizado em Recife no ano de 1973. Chamei o meu filho e mostrei. “E o tal jogo, cadê?” – ele ainda me desafiou.
Sem alternativa, comecei a assistir aos vídeos, e vi que eram idênticos. Então parti para ver o maior, com doze minutos, e lá apareceu a abertura do evento que se deu no estádio do Santa Cruz, o chamado Mundão do Arruda. Abertura animada e com música marcial, imagens de um militar conduzindo a tocha olímpica, tudo de acordo com o script, mas nada do tal jogo. O vídeo era apresentado apenas com fundo musical, sem falas. Já estava impaciente, meio vídeo já passado, e eis que de repente aparecem as figuras dos jogadores da Seleção Brasileira na filmagem. Alguns trajavam os tradicionais uniformes canarinhos, enquanto outros jogadores vestiam o uniforme azul. “Olha aqui!” – empolguei-me. Meu filho acercou-se de mim ainda desconfiado, mas logo vi no seu semblante um tênue reflexo de incredulidade. Era como se dissesse: “e não é que ele tinha razão!”. Mas nada disse. Mesmo assim, passou a se interessar pela informação. Todavia, daí a poucos minutos, as imagens do Gerson, do Rivelino, vestidos com as camisetas amarelas, e do Dário, vestido o uniforme azul, sumiram e não mais apareceram até o final do filme.
Nesse momento o meu filho, mais dado à pesquisa internética – neologismo muito utilizado por um amigo meu -, disse-me para pesquisar nos jornais da época que eu deveria encontrar algo. E assim fiz. Não encontrei uma linha sobre o assunto. Aí então me lembrei de um  instrumento a que recorro muito quando busco informações em velhos jornais publicados, a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Não deu outra. No jornal Diário de Pernambuco, do dia 31 de março daquele ano de 1973, encontrei as informações que tanto procurava: “Seleções A e B já estão escaladas”, dizia a matéria. E logo a seguir vinham as escalações: Brasil “A” – Félix; Eurico, Brito, Piazza e Marco Antônio; Gerson, Rivelino e Paulo César; Jairzinho, Leivinha e Edu. Seleção “B” – Leão; Rodrigues Neto, Luís Pereira, Moisés e Marinho; Carbone, Dirceu Lopes e Dirceu; Valdomiro, Palinha e Dario.
A Seleção “A” era a titular, e aparecia com algumas ausências com relação ao time que jogara a final da Copa de 70, menos de três anos antes. A saber: Carlos Alberto, já aposentado da seleção; Everaldo, falecido em um acidente de carro; Pelé, também já fora da seleção, e Tostão, traído por um deslocamento da retina que o afastou dos campos de futebol. O restante do time era o mesmo que havia enfiado 4x1 na Itália na final. O Time “B” era composto por alguns jogadores reservas que haviam participado do Tricampeonato no México, além de outros que não estivera nos campos mexicanos, tipo Luís Pereira, Rodrigues Neto, Marinho, Dirceu Lopes, Dirceu, Valdomiro e Palinha. Eram, contudo, o que de melhor o Brasil tinha naquele ano.  
Não preciso dizer que o meu filho já me olhava com outros olhos, nem de longe aparecia aquele sorriso sarcástico de momentos atrás. E eu surfei na onda com rompantes de Medina, e cuidei de lhe repassar detalhes do jogo. Contudo, mesmo assim, ele ainda não se deu por achado e perguntou: “Será que a CBF não considera esse jogo apenas uma espetáculo demonstrativo?”. Ao que eu retruquei: “Um espetáculo demonstrativo que ocorreu dentro das regras, estádio lotadíssimo, jogo de 90 minutos, transmitido pelas rádios para todo o Brasil, cujo árbitro foi o Manuel Amaro de Lima, da FIFA, juiz que dirigiu o jogo Vasco x Santos por ocasião do milésimo gol de Pelé? Nada disso. A razão deve ter sido outra!”.
De fato, acredito que a falta de informações se deve hoje ao revisionismo empregado para apagar da memória nacional fatos ocorridos durante o regime militar. Parte considerável da imprensa procura esconder o apoio dado. Só pode ser isto. Pois os jornais da época, sobretudo os pernambucanos, estampavam com estardalhaço aquele jogo que, para eles, era algo para entrar para a história. Contudo, não adianta procurar informações nos seus sites hoje em dia. A história foi apaga, pelo visto.  
De volta ao jogo. Eu estava empolgadíssimo, seria a primeira vez que veria o escrete nacional jogar ao vivo. A outra vez foi em Teresina, no estádio Albertão, anos depois, em 1989.  Cheguei ao estádio do Arruda às 10 horas da manhã para assistir a um jogo que só começaria às quatro da tarde. Mas, ou seria assim, ou não seria, como veria mais tarde, tal a multidão que ficou do lado de fora do estádio. Não reclamei, contudo, pois o sacrifício valeria a pena. Havia levado água, um lanche frugal para comer no horário de maior fome, e ficamos a observar o estádio se encher completamente em pouco mais de uma hora. Depois foi esperar. Radinho colado ao ouvido ia mudando de estação para acompanhar os comentários dos locutores e comentaristas que, à medida que o tempo ia escorrendo, e aproximando-se da hora do jogo, a torcida se inflamavam mais e mais. E quando as duas equipes adentraram ao gramado, quase não contive a minha emoção. Dar de cara com aqueles monstros sagrados que haviam se tornado lenda ao vencer a Copa do México menos de três anos antes, a correr pelo gramado a poucos metros de onde eu me encontrava, quase me levou às lágrimas.
Entretanto, quando o jogo começou, parecia realmente um espetáculo de demonstração. A bola rolava mansa de pé em pé, sem que os jogadores esboçassem o menor esforço. Pareciam brincar daquelas “rodas de bobo”, tão comum nos campos de treinamento. Entretanto, tinha alguém no gramado que queria demonstrar que merecia sim uma vaga no escrete A: Dario, o peito de aço, além de Palinha, o centroavante do Cruzeiro, em ótima forma. E eles empreenderam tamanha correria que logo a seleção B começou a ameaçar a meta do goleiro Félix. Deste modo, não tardou para o atacante cruzeirense estufar as redes da seleção “A”. Depois disso o jogo ganhou em emoção, os jogadores demonstraram mais empenho e a torcida foi à loucura. Leivinha empatou para os camisas amarelas, e Rivelino virou o placar. E foi isso no primeiro tempo. Mal esperávamos para o jogo recomeçar.
No segundo tempo, as equipes foram fazendo alterações, e mesmo assim o jogo foi aumentando de intensidade para alegria dos milhares de torcedores que lotaram o Arrudão. No Final, 4X2 para os titulares do Brasil, aqueles que envergavam as camisas amarelas. E o Presidente da República, Emilio Garrastazu Médici, presente com enorme comitiva, concluiu assim a sua percepção do jogo: “Foi um bom treino”. Pensando bem, talvez esteja aí a razão para a CBF, e também para os demais estatísticos esportivos, omitirem esse jogo, nunca falarem da sua existência. “Mas que o jogo aconteceu, isso eu não tenho a menor dúvida, Éder Araújo!”.