segunda-feira, 31 de agosto de 2015

DAVID CALDAS - O Profeta da República



(Chico Acoram Araújo)*

Recentemente, escrevi uma crônica com título Barras do Marataoan: o Retorno que generosamente foi publicada, para minha enorme satisfação, no blog “Folhas Avulsas” do ilustre escritor José Pedro Araújo Filho, e também postada no prestigiado Blog Poeta Elmar Carvalho. Nesse escrito, descrevo uma viagem que realizei ao meu torrão natal, que tem como destaque principal o elenco dos ilustres barrenses que fizeram com que Barras fosse conhecida pelo epíteto de “Terras dos Governadores e dos Poetas”. Nessa crônica, além de relacionar os principais vultos da minha terra querida, apresentei um resumo da história da cidade, além de relembrar alguns fatos ocorridos quando da minha infância em Barras.

Dentre as biografias sobre os notáveis barrenses mencionados na referida crônica, a de David Caldas - o “Profeta da República” - foi a que mais despertou a minha atenção. Talvez por curiosidade ao seu cognome. Embora sendo eu de Barras, quase nada sabia a respeito desse famoso conterrâneo; apenas conhecia uma rua no centro de Teresina e outra na cidade de Barras com o seu nome, além de um povoado localizado no município União, que teve como origem um antigo Núcleo Colonial Agrícola, criado Governo Federal. O destaque que ora faço desse grande barrense, não significa dizer que seja ele mais importante do que seus conterrâneos intelectuais Celso Pinheiro, João Pinheiro, Matias Olímpio de Melo, Arimathéa Tito Filho, Wilson Carvalho Gonçalves e tantos outros filhos ilustres de Barras do Marataoan; todos, indistintamente, estão na galeria dos grandes escritores e poetas do Piauí. Escolhi este porque muito me atraiu a sua vida de lutas, mas, e também, pela ética, coragem, integridade, honestidade e idealismo com que se houve durante toda a sua vida.

De acordo com os apontamentos biográficos de Monsenhor Chaves, insigne historiador Piauiense, David Moreira Caldas nasceu em 22 de maio do ano de 1836, em uma fazenda conhecida como Morrinho, nas imediações da antiga Capela das Barras. Era filho do Capitão Manuel Joaquim da Costa Caldas e de Manuela Francisca Caldas. Na época do nascimento do menino, a propriedade da família já não era tão rentável; o patrimônio do Capitão, com o passar do tempo, diminuía cada vez mais o seu valor, mormente pelo agravamento das secas de 1823 e 1826, bem como pelas consequências dos conflitos dos Balaios ocorridos na região, em 1839.  

Era desejo do pai que o jovem David tomasse conta de suas terras, tornando-as novamente produtiva. No entanto, a vida do campo não despertava muito a atenção daquele rapaz. O que desejava mesmo era entrar no mundo das letras. Para tanto teve uma importante ajuda do Dr. Francisco Xavier de Cerqueira, Juiz de Direito da comarca, que lhe ensinou português, latim, francês e aritmética. Aos dezenove anos, David Caldas tornou-se promotor público de Campo Maior, cargo que abdicou por conta de uma depressão nervosa que lhe acometeu.


Vendo que David era um jovem prodígio nos estudos, o pai o enviou para Recife a fim de terminar os preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito de Olinda. O Capitão Manuel, embora passando por uma situação financeira difícil, não mediu sacrifícios. E o jovem partiu para a Veneza brasileira em 27 de janeiro de 1860. No entanto, segundo Monsenhor Chaves, no dia treze de agosto daquele mesmo ano, uma infeliz notícia lhe chegou ao seu conhecimento. Seu pai tinha falecido dias antes, mais exatamente no dia 1 de agosto, após dias de padecimentos. Decidido, no dia seguinte, retornou para Barras, para ajudar sua mãe e sua irmã naquele momento tão difícil. Diante dessa fatalidade, David Caldas sacrificou todos seus sonhos, aspirações e esperanças. Sua vida mudou radicalmente. Ele agora era o chefe da família; tomou para si a responsabilidade pela administração da fazenda, o que o impediu de se dedicar à cultura ou às atividades jornalísticas. Cabe aqui salientar que, conforme nos informa o historiador Wilson Carvalho Gonçalves, no seu Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado, David Caldas iniciou sua vida profissional na imprensa, no jornal Arrebol, por ele fundado em 1859.

Em que pese a boa vontade do jovem David Caldas, positivamente ele não fora amoldado para a vida dura do interior, descreve Monsenhor Chaves em sua importante obra. Optou por um emprego de professor de letras que conseguiu em Barras, e casou-se, a 12 de dezembro de 1862, com Benvinda de Queiroz, filha de importante fazendeiro de União. No ano seguinte, o emérito historiador vai encontrar David Caldas em Teresina trabalhando como redator, ao lado de Deolindo Moura, em um periódico liberal progressista chamado “Liga e Progresso”. Diz também Monsenhor Chaves que o ano de 1863 foi marcante para a vida de David Caldas, iniciando ali uma brilhante carreira burocrática. Em 1864 passou a oficial da Secretaria da Presidência da Província, além de ministrar aulas na antiga Escola Normal. E, continuando a sua ascensão no serviço público, em 1867 obteve, por merecimento, promoção a Oficial-Maior da Secretaria do Governo. Ainda no ano naquele ano, o talentoso David Caldas passou em um concurso público para professor vitalício em uma Cadeira no Liceu Piauiense. Paralelo a isso, David Caldas participa, entre 1965 e 1968, da redação do jornal “A Imprensa”, um semanário oficial do Partido Liberal, de propriedade também do mencionado Deolindo Moura.

No ano de 1867, David Caldas já era bastante popular devido a sua ascendente carreira burocrática, bem como pelas suas atividades de jornalista e professor. Por ser bem conceituado na sociedade, decide concorrer às eleições para a Assembleia Provincial. Obteve uma expressiva votação, ficando em primeiro lugar entre os deputados eleitos para o período de 1965 a 1968.

Daí em diante, começa a derrocada do nosso ilustre barrense. A política partidária lhe foi cruel. Monsenhor Chaves ressalta que devido a atuação de David Caldas na Câmara, defendendo os interesses do povo mais humilde de Teresina, desperta uma enorme “antipatia de certos grupos sociais que se sentem ameaçados com sua pregação populista”. Na época, a maioria da população morava em miseráveis casas de palha que ficavam na beira do rio Parnaíba e na periferia ou até mesmo em alguma parte do centro da cidade. Por essa razão, o deputado David Caldas apresentou, dente outros, um audacioso projeto para beneficiar os pobres que residiam nesse tipo casa. Seu projeto consistia em instituir o “imposto da décima urbana, que seria aplicado na construção de casas populares de telha, que seriam entregues ao povo mediante contribuições módicas”. Sua estratégia era evitar a construção de palhoças em Teresina. Disso, pode-se concluir que David Caldas era um homem de visão; um homem à frente do seu tempo. Caso fosse aprovado esse projeto, certamente teria se evitado os misteriosos incêndios ocorridos em meados do século XX na cidade de Teresina.

Cada dia que passava, o ódio de seus opositores recrudescia cada vez mais; não desejavam as mudanças propostas por David Caldas. O próprio Partido Liberal, ao qual era filiado, não o apoiou. Por conta disso, desligou-se dessa agremiação partidária e também da redação da “A Imprensa”. Em 1968 funda seu próprio jornal com o nome de “O Amigo do Povo”. Este jornal, segundo a Doutora Ana Regina Rêgo, em seu artigo OITENTA E NOVE, Monitor Republicano do Piauhy, “já nasceu republicano embora não o reconhecesse como tal”. Contudo, afirma a emérita professora da UFPI, que os textos do referido jornal são de combate à monarquia, seus vícios e práticas de corrupção. A partir da criação do “Amigo do Povo, David Caldas se transformou em um contumaz crítico do governo de D. Pedro II, mormente quanto as suas constantes mudanças de opinião. De fato, referido jornal tornou-se o baluarte dos ideais do valente David Caldas. Em 14 de janeiro do ano de 1872, o “Amigo do Povo” já aparece, no seu cabeçalho, com o subtítulo de Órgão do Partido Republicano da Província do Piauí. Pelos seus textos publicados nesse periódico, via-se que o combativo jornalista tinha embasamento político para argumentar sobre os variados temas, sobretudo com relação ao Império Brasileiro. Na realidade, David Caldas tornou-se um dos maiores propagandistas republicanos na Província do Piauí. Monsenhor Chaves ressalta que as ideias republicanas de David Caldas já vinham desde o ano de 1849, quando tinha apenas 13 anos de idade.

A partir de 1872, quando David Caldas publicamente se declara republicano, seus inimigos o perseguiram implacavelmente, chegando a perder todos os empregos que obtivera por seus próprios méritos, excetuando-se o cargo de professor vitalício da cadeira do Liceu Piauiense, uma vez que tinha sido admitido através de concurso público. Mesmo assim, ele pediu demissão daquele cargo, afirmando que não devia receber salários provenientes de um Governo que ele combatia. Conforme registro de Monsenhor Chaves, o valoroso jornalista, para sobreviver, passou a dar aulas particulares, haja vista que o “O Amigo do Povo” não lhe proporcionava rendas suficientes para o sustento da sua família. Em 1873, David Caldas muda o nome do seu jornal para “Oitenta e Nove”, em alusão ao último exemplar, o nº 89, do periódico até então em circulação. Este periódico teve 31 edições em circulação. O jornal, por falta de recursos financeiros e da grande inadimplência no pagamento das assinaturas, não pode mais ser impresso.

O historiador Wilson Gonçalves nos relata que, na edição do primeiro número do jornal “Oitenta e Nove”, David Caldas escreve um artigo manifesto contra as instituições imperiais, ao tempo em que conclama à Proclamação da República Federativa do Brasil para, exatamente, o ano em que o movimento aconteceu, ou seja, em 1989. Alguns estudiosos dizem que David Caldas profetizou o advento da República em 1989: atribuiu ao seu jornal o dístico Oitenta e Nove. E como se sabe, o primeiro número do novo periódico tem data de 1º de janeiro de 1873, quer dizer, quase uma década e meia antes da Proclamação da República. Sobre essa profecia, Monsenhor Chaves está de acordo, mesmo no sentido de conjectura. Outros, como Abdias Neves, não comungam dessa ideia de profecia, pois se “cingem obstinadamente ao sentido religioso da palavra”, o que também concorda o Monsenhor Chaves. Em que pese os argumentos de Abdias Neves e outros discordantes, David Caldas passou a ser conhecido como o Profeta da República, de forma lendária e histórica, como afirma o notório escritor Wilson Carvalho Gonçalves.

Para corroborar com a tese da profecia de David Caldas sobre a Proclamação da República em 1989, Chaves transcreve dois tópicos do emblemático artigo escrito por David Caldas no primeiro número do combatente jornal “Oitenta e Nove”:

“... (os patriotas mineiros) acabaram por ser outros tantos mártires da liberdade, outras tantas vítimas imoladas ante o altar druídico, em forma de trono, onde se achava exposta à veneração dos fiéis a mentecapta Maria, digna bisavó do atual imperador do Brasil, a quem Deus guarde, quando muito, até 1889...”.

“... seja-nos permitido ter a fé robusta de ver a República Federativa estabelecida no Brasil, pelo menos daqui a 17 anos, ou em 1989, tempo assaz suficiente, segundo pensamos, para a educação livre de uma geração, para a qual ousamos apelar, cheios da maior confiança”.

Em seu mencionado artigo, a ilustríssima professora Ana Regina Rêgo enfatiza que David Caldas, além de não ter condições para continuar com o seu jornal, também não teve forças para criar o Partido Republicano na Província do Piauí, mesmo porque a grande maioria dos importantes cidadãos do Estado estavam a favor do sistema monárquico vigente. Por conta disso, ele retornou, a convite expresso do Partido Liberal, para o jornal “A Imprensa”, onde atuou de forma moderada, mas sempre com os ideais republicanos e crítico à Monarquia, completa a professora. Antes disso, em 1874, David Caldas funda o jornal de nome “O Papiro”, que teve duração efêmera. Em 1887, também cria outro jornal conhecido como “O Ferro em Brasa”, também de curta duração. Há registros históricos de que ele fundou um outro jornal – “O Bom Menino”. Como se nota, David Caldas teve uma vida bastante atuante na imprensa de Teresina nas décadas de 60 e 70 do século XIX.

No seu Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado, Wilson Gonçalves evidencia que David Caldas, além da sua extraordinária atividade jornalística, elaborou e escreveu importantes trabalhos de ordem científica, pedagógica e literária, entre os quais destacam-se: “Relatório de Viagem Feita de Teresina à Cidade de Parnaíba” (no ano de 1867, pelo rio de mesmo nome); um trabalho de “retificação de uma planta de Teresina” (1867); a “Planta Topográfica do Rio Parnaíba” (1867); e o “Dicionário Histórico e Geográfico do Piauí”. Escreveu também inéditas poesias tais como “Tímidos Acentos” e “A Musa Triforme”. Lamentavelmente, não se tem conhecimento do paradeiro dessas obras.  David Caldas é Patrono da Cadeira nº 4 da Academia Piauiense de Letras e da nº 8 da Academia Vale do Longá.

Segundo Monsenhor Chaves, David Caldas era um homem desprendido. Em que pese sua situação financeira bastante precária, em 1974, levou para morar em sua casa a irmã, e mais quatro filhas, em razão do falecimento do cunhado.

Diz ainda Wilson Gonçalves que, ante às perseguições e injustiças pungidas pelos seus ferrenhos inimigos, o seu estado de pobreza o levou, em fins de 1877, a uma profunda depressão nervosa, perdendo o contato com a realidade, e passando a viver de abstrações. Um exemplo disso: lançou os princípios de uma nova ciência, a Coincidenciologia, onde se declarava em formação de trindade humana com Gonçalves Dias e Deolindo Moura, o que tentou provar através de cálculos coincidenciológicos, conforme reforça a professora Ana Regina Rêgo.

Em Teresina a 03 de janeiro de 1879, paupérrimo, morre David Caldas, o maior dos republicanos na Província do Piauí.

Para finalizar, Monsenhor Joaquim Chaves anota que o poeta “Licurgo de Paiva, que lhe assistiu nos últimos instantes, diz que ele morreu balbuciando os versos do hino litúrgico – ‘Glória in excelsis Deo’. Poucas horas antes exclamava: “É chegado o dia de vos dar minhas contas ... Sabaoth ... Sabaoth ... Sabaoth ... Três vezes sábio... Três vezes santo...” A igreja católica, contudo, lhe negou sepultamento cristão. Essa negação, de fato, é confirmada pelo grande escritor e poeta, Celso Pinheiro, em seu livro “História da Imprensa”. Ali, Pinheiro enfatiza os continuados atos discriminatórios contra David Caldas:

Mas nem a morte fez arrefecer a vingança dos áulicos imperiais contra o grande republicano. Como a Igreja Católica era ligada ao Estado, David, apesar de grande crente em Deus, e membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento, era oficialmente considerado ateu e, como tal, não teve o direito de ser enterrado no cemitério. Cavaram-lhe um túmulo em frente ao portão principal do cemitério São José, debaixo de um velho jatobazeiro ali existente, túmulo que alma caridosa mandou cercar com grade de ferro. Só na década de 1930, quando do calçamento da rua, foram exumados seus ossos e transladados para dentro do cemitério, assim como outros túmulos de protestantes junto ao seu existente”.

(*) Chico Acoram Araújo é funcionário público federal, contista, cronista, poeta e futebolista aposentado. 

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Outras Fotos para o Álbum da Cidade

Foto de origem desconhecida(crédito ilegível) - Anos 70.

Fotografia de 2015(Foto by Carlos Magno)
          As duas fotografias mostram, com diferença de mais de três décadas, o mesmo local. Foram tiradas da torre da matriz, com uma pequena diferença de ângulo. Entre outras coisas, mostra as transformações pelas quais a cidade passa, mas mostra também que, brevemente, a história da cidade, com seu casario simples e despojado, será apagada. O quarteirão que se vê nas duas fotos foi também alterado na sua concepção original, mudou de área residencial, para comercial. 
          No passado, já remoto, nas construções na esquina da direita residia a famílias de José da Cruz Oliveira Torres, que tinha ao lado o seu comércio. Adir Leda, ex-prefeito da cidade, residia na da esquerda. E no centro ficava o salão paroquial, pertencente à igreja católica. Este local serviu por muito tempo como prédio escolar. Primeiro, ainda nos primórdio do município, como o colégio São Bento, destinado ao público masculino, escola pertencente à igreja. Depois, foi utilizado pelo Colégio Presidente Dutra, unidade escolar em que cursei o meu ginasial, mas que na época funcionava em outro local, não muito distante. Hoje em dia, na casa que pertenceu a família Oliveira Torres, funciona um grande loja; o antigo salão paroquial foi transformado em um conjunto de salas comerciais e na casa da esquina, antes pertencente aos Leda, funcionou até pouco tempo o Fórum da cidade.  
          A transformação que se observa na quadra em questão, acontece também em todo o centro da cidade, em todas as ruas que compõe este quadrilátero. O que parece um processo perfeitamente normal, coisa que acontece em todas as cidades da região, em especial naquelas cujo atividade comercial se mostra mais forte, poderá também apagar da memória histórica e coletiva a arquitetura das velhas residências construídas pelos nossos pioneiros. 
          Mas, a bem da verdade, isso se dá também por outro motivo: o desaparecimento dos troncos familiares. É rara uma casa na região central da cidade em que ainda se ache vivo o seu casal original. Ou pelo menos um de seus membros. E isso faz com que os herdeiros se desfaçam do patrimônio logo após o inventário ser realizado. É mais fácil dividir o dinheiro obtido da venda. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Sobre "Bernardo de Carvalho - o fundador de Bitorocara", por Elmar Carvalho




  
Gilberto de Abreu Sodré Carvalho
Romancista, historiador e genealogista

Foi publicada a segunda edição, revista e ampliada, de “Bernardo de Carvalho, o fundador de Bitorocara”, neste ano de 2015, como livro eletrônico pela AMAZON. A qualidade historiográfica da obra me enseja, irresistivelmente, a falar sobre ela.
A segunda edição é tão rica em novidades e na criação de contextos históricos importantes, que poderia ter um novo título. Acresce que o “volume” digital contém anexos muito úteis de matéria relacionada com o corpo do texto.
Outro ponto, que me encanta, é que o festejado poeta e ensaísta Elmar Carvalho, meu primo remoto, com quem compartilho o mesmo sobrenome Carvalho, nos remete, aos dois juntos, o escritor e eu, o seu leitor, aos nossos velhos antepassados Carvalho de Almeida do Piauí. Nada mais prazeroso, para ele, eu imagino, como seria para mim (que tiro proveito fazendo esta resenha), que escrever sobre Bernardo de Carvalho e Aguiar. Esse herói foi tio dos nossos ancestrais, em comum, Manuel e Antônio Carvalho de Almeida, e dos seus irmãos párocos: Miguel de Carvalho, Tomé de Carvalho e Silva, e Inocêncio de Carvalho, esse último ativo no sul.
O livro é um ensaio histórico, com sustentação bibliográfica pertinente, sobre Bernardo de Carvalho, senhor da fazenda Bitorocara, da qual se originaram Campo Maior e outras cidades. Foi ainda o realizador da conquista portuguesa das terras nortenhas do Piauí.   
A questão da localização geográfica da antiga fazenda Bitorocara, que pertenceu ao grande Bernardo, sugere algumas palavras minhas sobre o assunto, em linha com o que é trazido de informação pelo autor. O assunto é bem coberto por Elmar Carvalho, no bojo da sua ágil e agradável narrativa sobre a vida notável de Bernardo de Carvalho, mestre de campo e cavaleiro da Ordem de Cristo.
A velha vila de Campo Maior, no Piauí, teve uma extensão original vasta, na medida em que correspondeu a boa parte da área que esteve sob o domínio de Bernardo, no final do século 17 e início do 18. Com o tempo, desde o ano de 1762, data da criação da vila, o seu território foi sendo reduzido, com a formação de entidades políticas novas, ou seja, vilas e municípios, mediante desmembramentos. Tais novos municípios surgiram a partir do desenvolvimento de antigas ou de novas circunscrições proprietárias, a dizer, fazendas com seus currais, em combinação com freguesias, no sentido de paróquias católicas ao mesmo tempo que unidades políticas seminais.
Na fase histórica anterior à organização político-administrativa do Brasil, os rios foram importantes. Eles serviam tanto para dar acesso a novas áreas para a conquista e ocupação da América Portuguesa, como para nomearem-se as regiões e os sítios, na falta de outras alternativas mais pertinentes. São assim comuns em todo o Brasil, e no Piauí, topônimos que remetem a um rio, quase sempre antecedido por um nome de santa ou de santo. Os rios garantiam aos conquistadores o comércio, o transporte de gente comum e de guerra, a nutrição direta mediante os peixes e os demais, as melhores pastagens as suas beiras, a água para a irrigação da lavoura e a energia para os moinhos.
Elmar Carvalho, em seu ensaio histórico, registra, com desenvoltura e ótima síntese, a argumentação do saudoso padre Cláudio Melo sobre a localização da fazenda Bitorocara, do final do século 17. Tal fazenda foi a origem, por via do povoado do Arraial Velho, nela situado, da freguesia, da vila e da posterior cidade de Campo Maior.
O fato, comprovado pelo Padre Melo, com o imediato acatamento de Odilon Nunes (que antes pensava o rio Bitorocara ser o rio Piracuruca), é de que a fazenda Bitorocara tinha, por território nuclear, a região da confluência dos rios Longá, Surubim e Jenipapo. Se o rio Bitorocara fosse o rio Piracuruca, a fazenda Bitorocara não poderia geograficamente corresponder a Campo Maior. São justamente os elementos de convicção, de natureza geográfica, que levam a entender-se que o rio Bitorocara é o mesmo que foi, em seguida, chamado de rio Longá. Disso, dessa conclusão, percebe-se a antiga fazenda Bitorocara no seu verdadeiro lugar. 
Ocorre que, de antes, no tempo de Bernardo e por conta de ele o ter chamado desse modo, o rio Longá era conhecido como rio Bitorocara, e o rio Surubim era chamado de rio Cobras. O nome Bitorocara só consta da “Descrição do sertão do Piauí”, escrita, em 1697, pelo padre Miguel de Carvalho, sobrinho do grande Bernardo.
A argumentação de Elmar Carvalho, sobre a origem do atual município de Campo Maior na fazenda Bitorocara, é a apresentada originalmente, com bastante documentação, pelo Padre Cláudio Melo no seu “Os primórdios de nossa história”, de 1983, páginas 167 a 176, reafirmada por Afonso Ligório Pires de Carvalho, em “Terra do gado – a conquista do Piauí na pata do boi”, Brasília: Thesaurus, 2007, e, mais recentemente, por Valdemir Miranda de Castro, em “Enlaces de famílias”, 2014.
Existem, em Elmar Carvalho, mais argumentos em favor de o berço de Campo Maior ser a fazenda Bitorocara, com sua sede na confluência do rio Longá, antigo Bitorocara, com o rio Surubim e o rio Jenipapo. Mais exatamente, na junção do Longá com o Surubim. Ocorreu de a fazenda Bitorocara ter abrigado um arraial militar, chamado, após os anos, de Arraial Velho. É, com esse nome, que consta do testamento de Miguel de Carvalho e Aguiar, filho de Bernardo, que o passa à sua neta. Tal sítio - de encontro de homens de guerra lusos, mestiços e indígenas - foi estratégico na conquista do norte do Piauí aos índios. Do Arraial Velho, ou seja, da povoação permanente que lá se instalou, surgiu uma freguesia, sendo o primeiro pároco o padre Tomé de Carvalho e Silva, sobrinho de Bernardo e irmão inteiro do padre Miguel de Carvalho. Dela, da freguesia, em seguida, se teve a vila e, por fim, o município de Campo Maior.
Bitorocara, na confluência dos três rios, dava meios para deslocamentos variados de forças armadas de portugueses e índios aliados. Neste cenário físico, o mestre de campo Bernardo de Carvalho e Aguiar, cavaleiro da Ordem de Cristo, era o chefe militar, sendo seu lugar-tenente Manuel Carvalho de Almeida, seu sobrinho e irmão inteiro do padre Miguel de Carvalho.

Em suma, a obra de Elmar Carvalho é uma leitura importante para os campo-maiorenses, para os estudiosos da formação histórica do Piauí e do Brasil e para os piauienses e brasileiros em geral. A leitura da biografia desse grande homem é muito relevante em um tempo de penúria cívica. 

sábado, 22 de agosto de 2015

RICOS E POBRES



José Pedro Araújo
                Temos visto ultimamente, na imprensa nacional, relatos escabrosos sobre casos de grandes roubalheiras perpetradas por riquíssimos empresários contra a nação, envolvendo  nossos políticos também. Trata-se de gente que não rouba porque precisa. Rouba simplesmente pela vontade de roubar, de lançar mão de coisa que não lhe pertence. Os nomes que vemos circular no noticiário, são de gente que já tem quase tudo, desde mansões cinematográficas, carros de luxo, aviões, ilhas paradisíacas e, também, vestem-se com roupas das melhores e mais caras grifes. Enfim, já possuem tudo o que o dinheiro pode comprar. Mas, lhe falta, ao que parece, o essencial: a pureza da alma, o bom sentido da vida, que é a cidadania, o respeito pelo próximo, a honestidade que lhe devia vir do berço. Digo isso porque roubam eles, especialmente, dos mais pobres, dos sem-nada. E me pergunto pra que serve o dinheiro obtido além da quantidade que se precisa para comprar o “quase tudo”? Se não há mais nada a se adquirir, se é apenas para guardá-lo em seguros cofres, longe do alcance até mesmo deles, para que precisam de mais dinheiro?

                Estava assim a pensar nas notícias veiculadas sobre a roubalheira praticada por esses cheios de grana, quando me lembrei de um texto escrito por Humberto de Campos, grande escritor nordestino que viveu parte da sua vida entre o Maranhão e o Piauí. A crônica, escrita por ele, li no livro Notas de um Diarista, e tinha o mesmo título que dei a estes escritos. E pela excelência do texto, não há como rivalizar com ele. Por esta razão, deixo a cargo do inigualável HdeC, a tarefa de discorrer sobre o tema, que começa com palavras de Jesus, descritas no livro de Mateus, capítulo 19:

                “E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”.

                “É a essa leitura santa e consoladora que recorro, ao terminar a da notícia, que os jornais vespertinos estampam, das várias transações que tem sido objeto um dos morros do coração da cidade. Vendido ao governo do Império, negociado com dois ou três particulares, acabou ele por ser oferecido, de novo, por 33 mil contos, ao seu próprio dono. E este ia adquirir, ingenuamente, o que era seu, quando o Sr. Ministro da Viação, que é míope, e vê mais do que os outros porque olha tudo de perto, soltou o grito de alarma, impedindo que se consumasse a operação, cujo histórico vem envolvendo uma dezena de nomes ilustres nas finanças nacionais, desde o ano de 1846.

                “ – Na origem de todas as grandes fortunas – gritou, um dia, do seu púlpito, o trágico e implacável Bordaloue – há coisas que fazem tremer”.

                “E essa dúzia de palavras encerra, talvez, uma das maiores verdades que se poderiam repetir no Brasil. Examine-se, por exemplo, a proveniência dos vastos patrimônios individuais aqui existentes. Consulte-se um homem de negócios, desses que são hoje milionários e sabem os caminhos por onde os outros, seus companheiros, transitaram, e ficar-se-á escandalizado com o que se proclama ou segreda. Este, enriqueceu aproveitando-se da confiança alheia, e das liberalidades da legislação antiga, deixando nas carteiras dos bancos letras no valor de milhares de contos, até o prazo da prescrição. Aquele, associou-se a um politico desonesto, comprando títulos desvalorizados que o governo devia valorizar no dia seguinte. Aqueloutro adquiriu por uma ninharia, de sociedade com homens poderosos no momento, a massa falida de empresas aparentemente pobres mas que possuíam fortuna imobiliária escondida. O avô de um passou moeda falsa. O de outro, foi contrabandista. Os mais honestos, herdaram do pai, que negociou com escravos, ou especulou com os víveres em tempo de fome, ou com os armamentos, em tempo de guerra. As fortunas modernas, de onde vieram? Quantos dos nababos recentes não enriqueceram com jogo do bicho, não exploraram o governo como fornecedores, ou não se apoderaram do que hoje lhes sobra arrancando aos outros o necessário? Qual é a garrafa de champanhe dos novos ricos que não custa aos pobres milhares de pães? Qual o retalho de seda usado pelos que de nada precisam, que não é adquirido com milhares de retalhos de algodão, que Deus destinara aos que precisam de tudo?”

                “Essa é, porém, a lei humana. É sobre essa base desigual que a sociedade se equilibra, e o mundo rola para o esplendor ou para a podridão. Aqui, na América do Norte, na China, nos gelos da Groelândia ou no tumultuo da Rússia Soviética, é assim que as fortunas efetivas ou relativas se fazem, à face inquieta dos homens ou à face tranquila de Deus. Rockefeller, Rothschild, Nobel, Pierpont Morgan, Krupp, Boucicaut, Leverhulmme, nababos de hoje e ontem, quantos segredos guardará a história dessas fortunas espantosas?”

                “Alguns deles espalham benefícios, exercem a caridade humana, atiram ao mundo os restos da sua cozinha, o troco da sua algibeira, as moedas que sobram e mais não cabem nos seus imensos cofres de aço. Fazem como aquele arrecadador de impostos a que se referia Leão XI, o qual, depois de rico e velho, construiu um hospital para receber os pobres que havia feito. Ou como a cigarra, da descrição de Fabre, que, farta do liquido que suga das plantas, deixa o resto para as formigas.”

                “E os pobres erguem as mãos, agradecidos, porque eles não ficaram com tudo!”

                “O trabalho é penoso demais para que um homem, trabalhando honestamente, no sentido humano da palavra, realize com ele, facilmente, grande fortuna. Mesmo um Ford, ou um Edson, deve ter a lágrima de um pobre comprometendo o ouro acumulado nos bancos ou multiplicado nos negócios honrados e legítimos. Quanto maior é a coluna, e maior o seu peso, mais profundamente assenta na lama.”

                “Não combatamos, todavia, os ricos, unicamente porque sejam ricos; mas fiscalizemo-los, indagando por que é que eles o são. Porque, no dia em que eles, policiados pela critica e pelos governos, se tornarem menos ricos, nós, os pobres, seremos menos pobres.”

                “E consolemo-nos com a certeza de que, consoante a palavra de Cristo, através de Mateus, não os iremos encontrar, de novo, no reino dos Céus.”

                O presente texto foi escrito na primeira quadra do século XX, mais ou menos. Mas, qualquer semelhança com o presente, não é mera coincidência.