sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A Volta do Vinil



José Pedro Araújo

Por dever de consciência, devo esclarecer que não toco nenhum instrumento musical - o que me deixa um pouco complexado -, e muito menos tenho um ouvido bem afinado - o que faz de mim um desprezado pela arte do deus grego Apolo. Contudo, sou um apreciador como poucos da boa música. E boa música para mim significa música de qualidade mesmo, sem me apegar a um ou outro ritmo musical em especial. Dependendo do momento, ou do local, pode ser uma MPB, um Rock n’roll, uma música clássica ou um Jazz; uma boa e velha música italiana ou francesa, ou até mesmo um forró Pé-de-serra. Tem que ser forró Pé-de-serra, vou logo dizendo, porque esse forrozinho chinfrim, de gosto duvidoso, e que se esmera nas frases com duplo sentido, faço questão de passar por longe dos ambientes que fazem estourar os tímpanos dos seus frequentadores com isso. Não vou entrar no mérito do funk que empolga a periferia e já se alastra pelo país como um mosquito malfazejo. Esse não me preocupa por ser tão efêmero que logo, logo, deverá sumir como aconteceu com muitos outros tão transitórios quanto ele. Ludmila, Anita e os tais MC’s não ocupam meus já tão comprometidos ouvidos com sua música de mau gosto.

         Comecei a tratar do tema para fazer uma revelação: estou muito contente com a volta do disco de vinil. Tomara que não seja uma moda passageira também. Dizem que ele, a despeito da tecnologia dada como arcaica, comporta todos os sons do acompanhamento, coisa que as novidades da hora não podem. A propósito disso, não me desfiz dos meus bolachões, mesmo tendo sido instado a jogá-los fora para abrir espaço na estante. Teimoso como sou, até ampliei a sua quantidade muitas vezes ao comprar uma porção deles que o antigo proprietário ameaçava mandar para o lixo. Essa é uma história que merece ser contada, pois fui severamente advertido por ter trazido mais de duas centenas de discos para ocupar o espaço que eu deveria desocupar.

A história se deu assim: no meu antigo local de trabalho aparecia quase diariamente um rapaz para lavar os carros dos funcionários. Isso já vinha de longe, desde quando ele ainda era um rapazinho quase imberbe. Pois esse rapaz, que também trabalhava como zelador em um prédio de apartamentos em área nobre de Teresina, certo dia me abordou para perguntar se eu não gostaria de comprar alguns vinis. Respondi que era muito seletivo nesse assunto, mas, dada a sua insistência, pedi-lhe que me trouxesse uma relação contendo o nome dos discos que ele tinha para vender. E ele demorou a me procurar novamente. Achei que houvesse desistido de comercializar a sua mercadoria.

      Entretanto, certo dia,  acercou-se ele de mim para dizer que não havia conseguido elaborar a relação solicitada porque os discos eram muitos, demandaria muito tempo para concluir a tarefa. Ai acendeu uma luz no meu cérebro, aquela luzinha da desconfiança. De pronto indaguei como ele havia conseguido esses discos. E ele respondeu que havia ganhado de uma das moradoras do prédio em que ele trabalhava. Não me dei por satisfeito e quis saber mais: ganhou assim, gratuitamente? Ai foi ele quem entendeu que precisava me contar a história toda da obtenção das bolachas.

        Disse-me que a moradora do prédio havia sido abandonada pelo marido quanto ele resolveu firmar compromisso com outra pessoa. Mas que ele, bom apreciador de roupas finas, sapatos de grife e... de música, deixou no apartamento uma grande quantidade de discos, e da sua indumentária também. E que, vez por outra voltava para apanhar alguma coisa. Tempos depois, a ex-mulher arranjou um namorado, e este passou a morar com ela. Nem este acontecimento serviu para barrar as idas do ex-marido ao apartamento para apanhar alguns dos seus objetos prediletos. E isso terminou por despertar ciúmes no novo morador do apartamento, que deu um ultimato à namorada: ela tinha que acabar com as idas e vindas do ex-marido. E ela o atendeu de pronto: passou a ordem ao ex-marido, determinando que ele levasse suas coisas de uma vez por todas.

        Irritado, o homem respondeu que ela desse a destinação que quisesse aos seus objetos, porque ele não voltaria mais a botar os pés ali. E ela seguiu à risca a sua palavra. Determinou que o zelador jogasse fora tudo o que ele havia deixado lá. Foi assim que os discos foram parar nas mãos do lavador de carros. E depois nas minhas. Mas a história não acaba aqui. O meu interesse pelos discos foi acentuado depois da história ouvida, e eu pedi que ele os trouxesse para que eu escolhesse alguns. Ponderei que essa seria uma tarefa fácil para ele. Afinal, alguns poucos discos não era tão pesado assim. E qual não foi a minha surpresa quando certo dia fui apanhar o carro no estacionamento da repartição para passar em casa o meu horário de almoço, e fui abordado mais uma vez por ele. Disse-me que estava com os discos ali perto. Fui lá, depois de uma rápida olhada no relógio para ver se ainda tinha um tempinho extra. Deparei-me com duas pilhas de discos com oitenta centímetros de altura cada uma, pelo menos. Olhei rapidamente as capas de alguns deles e vi que tinha muita coisa interessante. Mas o tempo não me permitiria uma avaliação mais detalhada.

        Pedi-lhe que escolhesse alguns de MPB, rock, música clássica, etc., que eu os compraria. Ele me fez outra proposta: perguntou-me quanto lhe pagaria por todos eles. Respondi que não me interessava por todos eles, porquanto tinha muito coisa fora do meu agrado. Que ele escolhesse apenas uns dez para mim. Para encurtar a história, esclareço que fechamos negócio em poucos minutos. Fiquei com todos os discos. Sai dali com o porta-malas do carro lotado, a ponto de não comportar nele nem um pedaço de cordão. Havia adquirido mais de duzentos e cinquenta discos, para desgosto da minha mulher.

        Dias depois, relatando essa história para alguns amigos, um deles, criativo e esperto, depois de indagar se já tinha feito um inventário no lote de discos, obteve de mim a resposta de que ainda não tinha arranjado tempo para isso. E ele então me propôs: que tal se fizéssemos um encontro de amigos na minha casa com o espirituoso nome de “a festa do vinil?” Topei de pronto e foi um belo encontro entre parceiros. Comprei material de limpeza e distribui entre eles para que me ajudassem na seleção e higienização dos bolachões. Foi uma noite ótima, mas, já estão a me cobrar uma nova edição do evento, uma vez que o tempo não foi suficiente para a conclusão da empreitada.

        As novas tecnologias também estão favorecendo a quem gosta de uma boa música. O YouTube, por exemplo, é um celeiro de boas coisas. Lá podemos encontrar vídeos maravilhosos com passagens memoráveis dos melhores artistas do mundo. Alimento a minha alma e elevo o meu espírito com músicas que não consigo ouvir nas emissoras de tevê ou nas rádios que, ao que parece, estabeleceram um pacto maldito com o que há de pior nas artes e na cultura.

                 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Outras Fotografias para o Álbum da Cidade - Religião(Igrejas)

Acervo do IBGE
           Iniciada em 1945, a bela catedral, erguida em homenagem a São Sebastião, só ficou pronta em 1949, obra concluída pelos padres Frei Renato e Frei Dionísio de Primolo. Construída em estilo lombardo evoluído, replica das igrejas italianas, seu campanário, como na na maioria dos casos, foi posicionado ao lado do templo propriamente dito. Na foto acima ainda é possível ver as muretas que ladeavam o  prédio, construídas no mesmo estilo. As sucessivas reformas deixaram o conjunto arquitetônico mais pobre, como a que suprimiu o muro original e pôs em seu lugar um gradil de ferro de gosto duvidoso, para dizer o mínimo. Quanto à torre, sofreu também uma pequena alteração recentemente, deixando-a, a meu ver, menos bonita e com detalhes de mesquita muçulmana. O importante é que o templo continua como um dos mais belos de todo o Maranhão.

Acervo do IBGE
           Os templos evangélicos são construções mais simples, com arquitetura menos elaborada, fruto do diminuto número de membros da denominação que se inicia em comparação com as igrejas católicas construídas no passado. Na fotografia acima temos a igreja Batista nos anos oitenta, inaugurada em 1979, cujo primeiro pastor foi Gessi Camilo de Sousa.
Acervo do IBGE
               Primeira denominação evangélica a se estabelecer em Presidente Dutra, o templo que se vê na foto ao lado é dos anos 40. Do livro Nossa Raízes, de autoria do pastor Abdoral Fernandes da Silva, colhe-se a informação de que, no que pese os trabalhos de evangelização terem começado na década de 30, somente no dia 15.07.1947 a igreja foi formalmente inaugurada. E teve como primeiro pastor Virgílio dos Reis Feitosa, que desempenhou por longos e longos anos um trabalho profícuo. Meu pai também pastoreou esta igreja por algum tempo.
Acervo do IBGE
          O templo acima data de 1974 e, salve engano, a Assembleia de Deus foi a segunda denominação evangélica a se estabelecer em terras presidutrense. E seu primeiro pastor foi Manoel Bentivi Filho.
         Todos os templos evangélicos passaram também por reformas e, até mesmo por mudança de endereço. A Cristã Evangélica, por exemplo, acabou de erigir um belo templo na avenida Olavo Sampaio.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Um Papagaio Admirável



                                         José Pedro Araújo

Papagaio é como chamamos no Curador aquele brinquedo conhecido pelos meninos da cidade grande como Pipa ou Arraia. Esta talvez seja a brincadeira que me fazia mais feliz e que também habitou os meus sonhos por mais tempo. Não faz muito tempo, já morando fora da minha cidade, sonhei empinando um Suru tala-dura, e, ao acordar, ainda sonolento, pensava ainda ouvir o barulho que ele fazia lá no alto. 
Interessante como o som emitido pelas pestanas de um papagaio de papel tem o dom de ativar a minha emoção até quase no limite. A felicidade de sentir a linha esticada em minhas mãos pela força do vento contrário - é assim que o papagaio sobe para as alturas -, e depois uma lanceada, quando o bicó desce com o castelo apontado para baixo até quase tocar no solo, não tem igual. E depois da descida, a linha é afrouxada completamente e ele, num giro de 180 graus, volta a subir vertiginosamente até o ponto onde estava antes. Puro delírio!
Ainda me lembro de certa manhã de maio, época dos ventos gerais - como chamávamos esse período de ventos fortes e dias sem chuva -, estávamos tomando o café da manhã quando ouvi o roncar de um papagaio voando sobre a nossa casa. De pronto larguei tudo e corri para o quintal sob os protestos de minha mãe, para observar o cafifa lá em cima. Era o maior Suru que eu jamais havia visto.  Lindo, vermelho no centro, verde nas laterais e amarelo no castelo e na parte inferior onde está amarrado o cabresto. Era um belo papagaio brincando alto no céu de um azul metálico inesquecível, soltando seus rugidos para assombrar as outras pipas menores que já estavam no ar naquele momento. Causou-me mais admiração porque nessa hora da manhã os ventos ainda estão relativamente fracos, e assim não é comum empiná-los. Mas ele estava lá, vivo, arisco, sobranceiro, zoando para todos.
Corri para a rua e vi que não muito distante, na altura da travessa Nelson Sereno, que um primo meu, cercado por alguns amigos, era o responsável pelo portentoso Suru. Parti para lá e fiquei impressionado também com a espessura da linha usada: linha 3 zero. Quase um cabinho usado para fazer rodar um pião. Meu primo Daniel Falcão, já rapaz nessa época, fazia forças para sustentar o brutamonte que empinava naquele momento, cercado da admiração dos presentes. Depois, quando o vento começou a ficar mais forte, ele começou a puxar o papagaio para baixo. Estava explicado porque empinava o dito cujo naquela hora da manhã. Sabia ser impossível fazê-lo em horário de vento forte.
Quando conseguiu descer a Pipa, fiquei espantado com o seu tamanho: atingia acima do umbigo do rapaz. Meu coração estava aos pulos, como se presenciasse uma experiência com uma aeronave; ou um foguete aeroespacial sendo lançado para a lua. Daniel mostrava as mãos feridas em várias partes pela linha tensa e pelo peso do grandalhão, e isso só fazia aumentar a nossa admiração por ele.
No outro dia, a breve vida da imensa pipa teve fim. Ao tentar empiná-lo em horário de vento mais forte, o bicho escapou de suas mãos e foi bater no quintal de uma casa próxima, preso em alguma árvore e completamente destruído. Seu papel de seda lindo e brilhante estava agora completamente esfarrapado. Ficou a experiência de que até mesmo para os papagaios havia um limite a ser respeitado. 
Para os menos iniciados na arte de empinar pipas, vai aqui uma observação: Suru é o papagaio sem rabo, construído e empinado apenas pelos maiores experts no assunto. E Curica, ou Rabiola, é o papagaio com cauda. Mas nesse meio, quem construía ou empinava uma Curica era indigno de brincar conosco. É de fato uma arte conseguir fabricar um papagaio e elevá-lo ao ar sem um rabo de contrapeso para equilibrá-lo. Somente os bons são capazes desta proeza.


domingo, 14 de fevereiro de 2016

Um Exímio Contador de Histórias



                                                                                    José Pedro Araújo

Sou de uma geração que muito preza as histórias contadas nas calçadas em noites de lua cheia. Entretanto, sou péssimo depositário de uma grande parte das mais belas que ouvi com tamanho encantamento. A minha memória ainda resiste e não se esquece do prazer que sentia ao ouvi-las, mas deixou que se perdesse o conteúdo delas. Quanto a minha alma, por outro lado, agasalhou com o cuidado de um banqueiro avarento o guião de cada uma delas e não revela nem mesmo para mim.
Assim mesmo, ou por isso mesmo, sou escravo delas. Divirto-me apenas com as lembranças desses momentos como se visitasse um ambiente de locação de um filme, mesmo sem saber o seu roteiro. Sei apenas que o tema era belíssimo e que a história, apesar de bem guardada no meu intimo, não consigo recordar.
Meu pai era diferente. Tinha uma memória fantástica para armazenar informações que ouvia ou fatos que presenciava. Coisa de bom matemático que ele era, que nunca se esquecia das fórmulas necessárias para a resolução dos problemas. Por conta disso, tinha a memória perfeitamente fresca e arejada para armazenar novas informações. Se vivo estivesse, faria agora dia 17 de fevereiro oitenta e nove anos.
E uma vez caída na sua memória, jamais se apagava. Essa capacidade de reter as histórias que ouvira na sua meninice ou que lera em algum folhetim usava também com maestria para nos reter em casa, nas noites escuras do meu Curador. Para evitar que fôssemos brincar com as outras crianças nas vielas de puro breu, ele arrumava os travesseiros da sua cama como encosto e desfiava uma série ininterrupta de belas estórias de Trancoso sem repetir uma única vez qualquer delas. Enquanto isso, deitávamos em torno dele sem perder uma palavra do que dizia, até que adormecíamos um por um. E ele considerava sua missão concluída quando nos colocava nas nossas redes para acordarmos somente no dia seguinte.
Exímio contador de narrativas fantásticas, sua vida também daria um belo compêndio de histórias. Histórias verdadeiras, cheias de atos folhetinescos e hiláricos, gostosamente contadas por ele, e também atestadas por testemunhas de ilibada e incontestável estofo moral.
Acredito mesmo que os poucos leitores das crônicas que escrevo aqui nesse blog, também devem está lembrando algo parecido enquanto passa os olhos por essas singelas linhas. Pais, na acepção da palavra, são todos iguais. Exortam, admoestam, e até mesmo desferem alguns cascudos quando o mau comportamento dos filhos extravasa. Mas termina o dia sempre da mesma forma também: com a filharada em sua volta para ouvi-los contar belas histórias, fictícias ou não.
            Uma dessas histórias que muito me causava admiração aconteceu quando ele, ainda jovem, pouco depois de atingir a maioridade, sentou praça na Policia Militar do Maranhão. Nessa época, o estado passava por uma grave crise politica e institucional em decorrência do descontentamento causado pelo resultado das últimas eleições para governador do estado.
A história: quando foi anunciado como eleito naquele pleito majoritário o empresário Eugênio Barros, incontinente, as Oposições Coligadas reclamaram de fraude nas apurações e conclamaram a população de São Luís a sair às ruas para impedir a continuação do mandato do governador que rapidamente havia sido empossado no cargo maior do Estado. Ao cabo de uma semana a revolta já estava instalada em toda a cidade, culminando com algumas ações de violência explicita que desaguaram na depredação das casas do Desembargador Henrique Costa Fernandes e do Juiz Rui Morais. Estes dois magistrados haviam tido atuação decisiva no resultado do pleito, pelo que consta. Algumas casas de populares também foram queimadas e a culpa pelo acontecido foi jogada para um e outro lado, acirrando ainda mais a disputa que tomava contornos de tragédia.
O palanque das oposições estava armado em plena Praça João Lisboa, a poucos quarteirões do palácio do governo, ao tempo que alguns oposicionistas armados haviam se entrincheirado, a princípio, na igreja da Sé, defronte à sede do governo. A história da revolta encontra-se registrada nos anais da politica maranhense, mas, a que desejo contar foi vivida por meu pai e relata uma passagem engraçada daquele instante em contraponto ao momento de profunda incompreensão que se vivia naqueles tempos de extrema violência.
Instalado no Palácio dos Leões, sede do governo do estado, Eugênio Barros determinou que se fizesse um reforço na guarnição que lhe dava proteção. Temia pela sua própria vida. O comandante buscou no destacamento da capital alguns homens de porte físico avantajado e munidos de reconhecida coragem para enfrentar a população conflagrada que ameaçava invadir o palácio a qualquer instante. Foi nessa ocasião que meu pai foi destacado para servir na guarda palaciana. E mesmo entre esses homens destemidos, havia certo receio de se ficar de sentinela na guarita instalada no portão lateral do palácio, cidadela mais avançada e mais propensa a um ataque. De fato, algumas escaramuças sempre ocorriam principalmente no final da tarde, quando alguns oposicionistas faziam incontáveis disparos de arma de fogo em direção ao palácio, acobertados pela penumbra que começava a cobrir a cidade nessas horas e protegidos pelas espessas portas da catedral.
Certo dia estava meu pai como sentinela mais avançada na famigerada guarita, quando um velho cabo da guarda palaciana se aproximou dele e indagou como estavam as coisas. A pergunta fazia sentido porque estava se aproximando a hora em que se realizavam os costumeiros disparos em direção à sede do governo. O cabo não era reconhecido pelos companheiros de farda como um homem de muita coragem. Além disso, era motivo de chacota em razão de um defeito de nascença que fazia com que seus pés se voltassem para dentro, conhecidos entre nós como tesourinha. Claudicante, o velho militar passou em frente à sentinela e continuou se movendo lenta e receosamente rumo à calçada. Nesse momento, meu pai, a sentinela, esquecendo todas as normas militares que exigem respeito ao superior hierárquico, soltou um grito de alarme: “cuidado, cabo! Os homens vão começar o ataque!”. O pobre homem tentou voltar para a segurança do palácio, mas as pernas lhe faltaram e ele caiu sentado ao chão. E como os membros inferiores não atendessem ao comando do cérebro, voltou engatinhando para dentro. A gargalhada foi geral. Humilhado, o cabo apelou para a sua autoridade e disse que ia denunciar o soldado Araújo aos seus superiores. No que o transgressor lhe respondeu: “denunciar como, Pé-de-porco, se tu não sabes escrever”? O apelido, empregado em razão do seu caminhar bamboleante, deixava o pobre homem ainda mais injuriado. Mas, a verdade sobre o seu analfabetismo o deixava mais propenso ainda à gaiatice dos colegas. E por essa razão, não conseguia formular nenhuma denúncia contra os subordinados que estavam sempre a tirarem brincadeiras com ele. Ao concluir a história, sempre se dizia arrependido de ter assim procedido com uma pessoa que nunca lhe havia feito mal. E que contava aquilo como exemplo de como não se deve proceder com as pessoas portadoras de deficiências que elas não tinham culpa de possuir.
Outra história que gostava de contar teria ocorrido quando ele já se encontrava destacado no novo município de Presidente Dutra. Naqueles tempos, a má fama sobre a violência que imperava na cidade já havia chegado à capital, São Luís. E era tamanha, que fazia com que poucos policiais se aventurassem a servir na cidade, mesmo a despeito de receberem um aditivo ao soldo para prestar serviço na região do Japão, como era conhecida. Animado pelo incremento no salário e estimulado pela notícia de boas oportunidades na região que começava a se desenvolver com certa rapidez, o soldado Araújo veio prestar os seus serviços na longínqua cidade de Presidente Dutra. E, de fato, não encontrou vida fácil no município. Apesar do seu tamanho diminuto, a cidade não parava de produzir novos fatos que serviam para aumentar ainda mais a sua fama de terra violenta. Naquele tempo, a ingerência politica era também um dos principais problemas com o qual a polícia tinha que conviver, talvez mais ainda do que a que se observa hoje em dia.
Certo dia, o soldado foi chamado para atender a uma ocorrência. Certo cidadão havia chegado embriagado em casa e promovera bárbaro espancamento na sua pobre esposa. Não era a primeira vez que isso ocorria e nem a primeira em que a polícia era chamada para impedir a continuação do grave delito. O problema era que o sujeito, useiro e vezeiro em grave atentado à vida da pobre mulher, sempre recebia a proteção do maior líder politico local e em poucas horas já estava na rua novamente. E sabendo-se acobertado pela autoridade que lhe esquentava as costas, o homem já saía desafiando a policia quando era levado preso após desferir mais uma sessão de espancamentos contra a maltratada esposa. Nesse dia, porém, ele não contava com uma mudança na situação que iria influenciar sua vida para sempre.
Destacado para cumprir a missão, Araújo saiu da delegacia prometendo a si mesmo que precisava adotar uma postura diferente em relação àquele caso que já lhe estava enchendo as medidas. Chegando à casa do reincidente espancador de mulheres, o militar encontrou um quadro pavoroso. Com o rosto muito inchado pelas agressões e o resto do corpo todo lanhado em razão de inúmeras chibatadas recebidas, a mulher estava naquele momento sofrendo novas agressões. Com uma chibata em uma das mãos, o marido havia iniciado nova sessão de espancamentos, quando foi impedido pelo soldado que acabava de adentrar ao quarto do casal, alertado pela gritaria que se ouvia do lado de fora da casa. Revoltado com o quadro dantesco que acabava de presenciar, o policial tomou o chicote das mãos do agressor e passou a tratar-lhe da mesma maneira, aplicando-lhe uma série de chicotadas no lombo. Atingido pelas tiras de couro cru, o homem começou a gritar e a espernear, incomodado bastante com o mesmo remédio que costumava aplicar na pobre esposa. Concluída a abordagem, o militar arrastou o homem rua acima no sentido da delegacia de polícia. E como vinha acontecendo nas outras vezes, o salafrário começou a gritar pedindo ajuda ao seu protetor e dizendo-se agredido e humilhado pelo policial. Nesse momento o soldado o repreendia, e por fim, cansado do estardalhaço feito, mandou que ele gritasse mais alto ainda, e mostrasse a sua falta de vergonha para toda a cidade. A situação continuou assim até chegarem à delegacia. A comunidade inteira saia à porta para presenciar a cena que deixava a todos com um sorriso nos lábios, satisfeito com o novo desfecho daquele caso que já estava virando requentado angu de caroço.
Não se sabe se por já está agastado com os problemas causados pelo insano aliado politico ou se por respeito, desta vez, às leis vigentes, o certo é que o homem não recebeu cobertura nenhuma do seu protetor, e permaneceu um bom par de dias preso. Certo mesmo, é que quando a prisão foi relaxada, ele pegou a família e desapareceu. Mudou-se para lugar desconhecido ou ignorado. A história não terminaria ai, entretanto. Anos depois, paisano novamente e desempenhando a nobre profissão de mascate para sustentar a família recentemente formada, meu pai transitava certo dia por uma estrada erma tocando um burro carregado de mercadorias, quando avistou dois sujeitos que vinham ao seu encontro. O da frente, montava um belo cavalo muito bem ajaezado. Vinham em marcha acelerada. Papai julgou reconhecer o homem que encabeçava aquele pequeno cortejo, ocasião em que passou pela sua cabeça toda a história acontecida naquele triste dia, quando teve que se rebelar contra a sua natureza e partir com descontrolada fúria contra o agressor.
Ao se aproximarem, os homens diminuíram a marcha e encararam o outro viajante com muita insistência. Meu pai confessou ter temido pela sua vida. Desarmado como estava, viu o homem à sua frente parar de um tranco só, forçando-o a adotar igual procedimento. E por baixo da camisa que ele mantinha aberta até quase a altura do umbigo, avistou o cabo branco de um volumoso revólver. Era chegada a hora do acerto de contas, pensou meu pai.
“Soldado Araújo”? – indagou o viajante com voz forte e autoritária. “Ex-soldado Araújo” – respondeu meu pai no mesmo tom – “Com quem tenho a honra de falar?” - tentou também ganhar tempo enquanto pensava em alguma saída. Nesse instante o homem estendeu a mão para cumprimentá-lo e perguntou se ele não estava reconhecendo o sujeito que havia dado tanto trabalho para a polícia lá no Curador. Meu pai disse que lembrava sim, mas que aquilo era coisa do passado. O homem sorriu como se tivesse entendido o receio que provocava naquele instante. E soltando uma gargalhada disse que meu pai estava agora apertando a mão de um homem verdadeiro. E agradecia pela surra que havia tomado naquele tempo, fato que o fez mudar de cidade, e de vida também. Ele agora era um verdadeiro pai de família e agradecia isso à lição recebida naquele dia. Pôs-se ainda à disposição afirmando que sua casa estaria sempre de portas abertas para receber os amigos. Falou ainda que a mudança de vida havia permitido que ele conseguisse amealhar um considerável patrimônio também.
Quando ouvi esta história à primeira vez, indaguei do papai se ele não havia ficado com medo daquele encontro. Sorrindo gostosamente ele me respondeu: “Medo que só passou quando a poeira levantada pelas montarias daqueles dois homens se dissipou na estrada”.
Estas foram apenas duas das histórias vividas pelo meu pai, um piauiense que viveu a vida intensamente e que escreveu a maior parte dela em terras do velho Curador.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

(IR)REAL





Elmar Carvalho
Poeta, juiz aposentado, cronista, membro da Academia Piauiense de Letras e coordenador do blog do Poeta Elmar(poetaelmar.blospot.com.br)

Eu busco as
mais loucas sinestesias
em minha mente alucinada,
onde as cores aromáticas
se agregam a sons macios,
misturados com aromas térmicos.
A loucura vem do cosmo
em taças de cristal com sangue,
em aortas com água,
na alucinação total
de um homem que
se diz lúcido.
Na noite calma
um cão ladra
na solidão de
luzes irreais de
um cemitério de
cruzes partidas e
de esqueletos quebrados.
(E outro cão
responde em mim.)
De repente, eu levito
e me deixo transportar
em êxtase ao
país dos mortos-vivos
e lá eu vejo todos os mortos
e todos os vivos como simples
mortos-vivos.
Depois, eu me sinto preso
em todos os extremos do Universo
e sinto que conquistei
a liberdade cósmica,
pregado no infinito.

           Parnaíba, 24.11.77