segunda-feira, 30 de maio de 2016

A Vingança de Nabucodonosor



José Pedro Araújo


            Nabucodonosor não era uma ave igual às outras, seu dono pôde verificar isso desde o início quando ele chegou por ali, adquirido em uma feira da capital. Pequeno ainda – e plumagem tingida de azul para agradar à meninada - já se mostrava cheio daqueles costumes somente vistos nos seres superiores, inigualáveis, naqueles que vieram predeterminados a não se comportar como o grosso dos da sua espécie. E ele procedia sempre assim, empinado, orgulhoso, pescoço em riste, desconfiado com o ser humano que adentrava no seu espaço para trazer-lhe comida ou agrados.

“Esse bicho é diferente dos outros”, pensou o homem logo que o viu assim, com aquele jeito afetado, mantendo-se à distância e comportando-se como um nobre, munido daquela pose altiva. Foi adquirido mesmo assim. Não para fazer às vezes de brinquedo para crianças. Foi adquirido porque era diferente.

Ganhou logo o nome do Rei da Babilônia, Nabucodonosor. Entre os doze de sua espécie que vieram habitar o quintal da casa, era um dos três machos. As outras nove fêmeas, à medida que o tempo ia passando, cercavam-no de cuidados cada vez maiores o que não tardou a despertar ciúmes nos outros dois companheiros de sexo. Esse sentimento foi passando de um simples desconforto inicial, para uma grande aversão, culminando com uma disputa tão acirrada por espaço que chegou ao extremo da violência física. E nesses momentos, ele mostrou que era realmente diferente, batendo, em sequência, seus dois contendores. Surrou-lhes tanto que ganhou da parte deles uma reverência total, inconteste. Passaram estes da qualidade de opositores, para a de fieis escudeiros.

            Mas o destino das aves emplumadas da sua espécie é sempre fazer parte de algum banquete, na qualidade de repasto para os presentes, não na de convidado. E assim acontecia sempre que o dono do galinheiro encontrava alguma razão para mudar um pouco o cardápio. E esse destino negro fez com que, paulatinamente, seus pares fossem sendo eliminados um a um, quando chegaram à fase adulta. Só sobrou ele.  

Nesse período, já era uma ave de porte avantajado, belíssimo na sua vestimenta de penas brancas, e mais compenetrando ainda. Não se deixou abater pela perda de seus vassalos. Contrariamente, mostrava-se cada vez mais arredio, arrogante, avesso a qualquer aproximação com o pessoal da casa. O chefe da família, que o observava desde o início, e o admirava, apesar da esnobação de Nabucodonosor, era o seu grande defensor, e não permitia que ele tivesse o mesmo fim de seus companheiros.

- O quê esse galo tem de tão importante que você não permite que o levemos à panela, homem!? – indagava a mulher cada vez que era impedida de lançar mão no bicho, transformando-o em uma gostosa iguaria.

- Então você não está vendo, mulher! Ele é o nosso grande Nabucodonosor, o rei desses quintais – respondia orgulhoso.

- E para que nós precisamos de um rei no nosso quintal? – irritava-se a mulher.

- Para alegrar as nossas madrugadas com o seu canto eterno. Lembra-me minha infância na roça, quando eu acordava à noite para ouvir o canto desses bichos. Era uma festa. Um cantava perto, outro respondia mais distante, outro mais distante ainda, até não se ouvir mais nada. E ai o primeiro começava tudo novamente! Esse aí traz o sertão para dentro da minha casa aqui na cidade. – Respondia orgulhoso e saudoso o homem.

A conversa terminava sempre assim, e Nabucodonosor ia sempre escapando de ter o seu pescoço decapitado.

Não se sabe se por desconhecimento desse assédio cada vez maior, ou se por conta da sua herança nobiliárquica, o certo é que o bicho mostrava-se cada vez mais compenetrado e refratário à aproximação com o pessoal da casa. Nem mesmo o seu grande defensor era tratado de maneira diferente, e isso só fazia aumentar o número dos que lutavam pela causa da sua extinção pura e simples; queriam vê-lo convenientemente servido em postas no almoço de Domingo.

Mas, estranhamente, seu defensor arguia com ardor sempre maior, lutando pela sua salvação. Uma coisa que não conseguiu, contudo, foi livrá-lo do cativeiro atroz. Passou o seu “rei” a viver aprisionado, amarrado pelos pés para evitar que atacasse as pessoas que por ventura adentrasse ao quintal. Território Nabucodonosor já considerava como seu reino indevassável.

Não se sabe se pelo fato de ter sido mantido em cativeiro, o certo é que o bicho passou a se mostrar um pouco mais dócil. Não sabiam que isso era fruto do amadurecimento dele, da sua esperteza. O fato é que Nabucodonosor ganhou mais liberdade, recebeu permissão para se deslocar pelo quintal livremente, e seu canto melhorou sensivelmente, voltando ao nível melódico de quando estava ainda com o seu séquito intacto. Nos últimos tempos, sua ode lhe saía triste, tremido, e sem força, quase não ultrapassava os limites do próprio quintal. Agora não, soltava seus solfejos pelos ares qual um menestrel medieval, numa tentativa de agradar a sua amada enclausurada nas alturas da torre de um castelo fictício.

E seu território foi se expandindo, se expandindo, já podia até andar pelo gramado da frente da casa. E nesses momentos, espiava interessadamente para a rua, observando o vai-e-vem das pessoas e dos automóveis que se movimentavam livremente.

Certo dia arriscou uma subida na mureta baixa que protegia a casa da rua propriamente dita. Gostou de ficar ali em cima, em um ponto de observação acima do nível do solo, mas sempre voltava para dentro, para o seu quintal. Até mesmo a dona da casa passou da desconfiança estremada a um estágio de tolerância sob vigilância. O preço de uma bicada que o galo aplicara na sua caçula, estava lhe custando muito caro ainda, precisaria de muito tempo para que fosse esquecida.

Mas Nabucodonosor possuía o sangue quente dos guerreiros conquistadores, e não tolerava quem o confrontasse com brincadeiras fora de hora ou mesmo com gracinhas que considerava carregadas de pejoração. Essa assertiva foi confirmada pelo menino Bruno, um vizinho que morava em uma casa próxima ao território de Nabucodonosor. Garoto brincalhão, o garoto estava ai pelos seis anos de idade, no auge da sua curiosidade, e por isso mesmo explorava as cercanias de sua residência, sempre sob os olhos cuidadosos da mãe. Nesse dia, estava Nabucodonosor empoleirado em seu ponto preferido de observação, sobre o muro, quando Bruno se aproximou acompanhado por Andrey, um garoto um pouco mais novo, mas extremamente curioso também. Vinham subindo a rua, brincando, espantando os besouros e borboletas que pousavam sobre as flores dos imensos jardins que enfeitavam as largas calçadas.

Um pouco mais abaixo, conversavam com o dono do galo à sombra de um frondoso ficus, seu pai, o pai do menino Andrey e o avô deles dois, pois eram primos. Por isso, de onde se encontravam, os homens procuravam não perder as duas crianças de vista.

Quando já estavam próximos do lugar aonde o galo se encontrava no seu ponto de observação, cerca de uns cinqüenta metros de distância da sua casa, Bruno chamou a atenção do primo.

- Olha ali, Andrey. Que galo bonito!

A ave não se mexeu. Continuou lá, altivo, sem demonstrar o mínimo interesse pelos observadores que se aproximavam solícitos dele. Depois de admirá-lo por um bom tempo, Bruno resolveu mexer com o galináceo e começou a jogar-lhe alguns seixos que trazia nas mãos, no que foi acompanhado por Andrey.  Os meninos arremessavam as pedrinhas e riam gostosamente com a reação que o galo tinha agora. Nabucodonosor, para não ser atingido, pulava de um lado para o outro, abrindo as poderosas asas para se equilibrar sobre o muro. E isso serviu de estimulo aos dois garotos que se aproximaram mais para conseguir acertá-lo em cheio.

O que era brincadeira para os meninos, passou a ser encarada pelo galo como um acinte, uma agressão despropositada contra seus direitos à tranqüilidade. E ele, que não admitia nenhum desrespeito à sua condição de nobre na sua espécie, começou a indignar-se e a perder o autocontrole. E foi então que, abrindo as asas até ao limite, lançou-se no espaço em direção aos garotos.

Foi um vôo curto, mas parecia um Condor que se lançava do alto de um penhasco para o espaço infinito. As garras afiadas, e os esporões amoladíssimos estavam prontos para atingir dolorosamente a quem o estava molestando naquele momento.

Quando os meninos viram o salto majestoso de Nabucodonosor em direção a eles, partiram em desabalada carreira rua abaixo. Tentavam chegar até ao local em que estravam seus parentes. E Nabucodonosor, cada vez mais furioso, corria atrás deles com velocidade crescente. As asas agora abertas lhe davam um aspecto de uma aeronave que tentava levantar vôo sem, contudo, conseguir sair do solo. Saltitava, na verdade, na tentativa de voar, pois acabava voltando ao solo. Mas se não conseguia voar, empreendia uma velocidade grande, incerta, é verdade, mas crescentemente perigosa para os dois guris.

Bruno olhou para trás, e o que viu o deixou apavorado, razão pela qual soltou um grito de terror que ecoou pela rua inteira. Andrey, um pouco menor que o primo, estava ficando para trás na longa carreira que empreendiam, ficando à mercê do galo. Também já vinha gritando a plenos pulmões, completamente aterrorizado com o que adivinhava está prestes a acontecer.

Mas o galo, cheio de ódio e com gana de atacar dolorosamente a quem ele achava que o tinha destratado, emparelhou com Andrey e, sem nem ao menos olhar para ele, o ultrapassou na corrida. As asas que não conseguiam fazer com que aquela ave pesada alçasse voo, elevavam-no do solo por pequeníssimos instantes, e depois depositavam-no novamente sobre a calçada, mostrando, na verdade, que ele se deslocava aos pulos. Tal fato conferia ao bicho um aspecto aterrorizante, e ele já se encontrava próximo ao menino que considerava o seu verdadeiro inimigo.

De onde estavam os homens ouviram os gritos dos meninos e, ao observarem para saber a razão de tamanho alarido, ficaram preocupados com a cena dantesca que avistaram, e com a iminente agressão que se prenunciava. Nabucodonosor já estava quase alcançando o menino Bruno que, já sem forças, corria desequilibrado, quase flutuando, mantendo-se a muito custo de pé, sem cair ao chão. Os braços abertos do guri, tal qual as asas de Nabucodonosor, era o que o mantinha ainda em posição vertical, de pé.

Mais rápido que os demais, o pai de Andrey correu em socorro dos meninos e ainda teve tempo de amparar Bruno nos braços antes que ele caísse desfalecido e fosse atacado pelo feroz bípede.

Nabucodonosor não se intimidou, contudo. Estava já tomado por um furor animal que o fez atacar o garoto, e também quem o amparava. Os outros homens, vendo que a situação estava passando de crítica, atacaram o galo a pesadas tentando afastá-lo de sua pretensa presa. A muito custo fizeram com que ele refluísse do seu intento e voltasse para o seu território.

Passado o susto, com o garoto Andrey já devidamente sob os cuidados dos parentes, os salvadores caíram em estrepitosa gargalhada. Quanto aos garotos, continuavam em estado de terror absoluto, com os olhos quase a saltar das órbitas. 

Os homens riram por um bom período até não conseguirem suportar o incômodo na barriga. Um pouco aliviados, e outro tanto admirados com a valentia daquele animal que não demonstrara, em momento algum, receio pela presença deles, recolheram os dois meninos à segurança do lar.

Todavia, esse incidente quase teve resultados catastróficos para o nobre Nabucodonosor. Preocupados em manter a política da boa vizinhança, e com receio de que o reizinho viesse a atacar outras crianças, decidiram sacrificar o belo galo.

Mais uma vez seu protetor entrou em ação para salvá-lo do banquete do qual ele não tinha o menor interesse de participar. E, em nome da diplomacia e da boa política, decidiu agir. Na noite que antecedeu ao previsto banquete, o galo foi sorrateiramente retirado de lá, e levado, às escondidas, para o sítio de um amigo que possuía um mini zoológico com várias espécies de animais e aves, muitas da mesma espécie de Nabucodonosor. Lá o fugitivo se encontrou com belas companheiras originadas de muitos países, como a inglesa Bianca Leghorn, as americanas  Mimi Rhode Island Red,  Angel New Hampshire e  Desirée Plymouth Rock Barradas, entre outras, todas logo incorporadas ao seu novo séquito real. Para isto, não encontrou muitas dificuldades, pois os espécimes masculinos que antes reinavam no terreiro, foram vencidos um a um e passaram a fazer parte da sua corte, servindo-o e adotando-o como novo e verdadeiro líder. Chegara novo rei ao pedaço.

Até que Nabucodonosor gostava de suas novas pretendentes. Eram belas e educadas, de fina estirpe e o tratavam com carinho e devoção. Mas, apaixonar-se mesmo, só aconteceu com uma: a bela Gail White América, de andar gingado e orgulho nas alturas. Portadora essa índole também real, fazia questão de não acompanhar as outras amigas quando o assunto era bajular o recém-chegado rei do pedaço. E esta talvez tenha sido a razão para ela ter sido escolhida para rainha. A mais bela e inteligente rainha que se conheceu por aquelas terras em uma centena de anos. Quanto a Nabucodonosor, viveu feliz por muitos e longos anos e deixou numerosa prole que hoje se espalha por vários reinados onde ocupam os mais importantes cargos na realeza.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Ceticismo




Elmar Carvalho
Poeta, é membro da Academia Piauiense de Letras

Náufrago de uma tempestade
num copo dágua,
escuto o canto da desgraça
como um chamado de sereia.
Pregado numa cruz invisível,
de cabeça para baixo,
tenho os braços fechados
em sinal de protesto.
Herói morto de
um sonho desfeito,
tenho como epitáfio
a solidão e o
esquecimento.
Cantor do silêncio,
tenho a lira sem cordas
e as mãos paralíticas.
Pássaro-símbolo da liberdade,
tenho as asas quebradas e a
garganta afônica.
Mendigo da solidão,
tenho as mãos vazias.
Descendente de troglodita,
sou menos que um
macaco.
Partícula de mim mesmo,
sou menos que uma célula
fragmentada.
Resumo de mim mesmo
uma expressão me resume:
o NADA absoluto.


           Parnaíba, 04.09.77

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Assassinato a Sague Frio

Foto ilustrativa


                                                                                                            José Pedro Araújo


            Pindorama atravessava um inverno rigoroso, com chuvas torrenciais como só se viu naquele tempo. Era mal começar a tarde para grossas nuvens de chuva começar a se formar para o leste, caindo mais tarde estrepitosamente sobre a cidade. Rios, igarapés e lagoas já não aguentavam mais tanta água e começavam a vazar o excesso pelos baixios, alagando caminhos e destruindo estradas. As rodovias de acesso à cidade estavam também em lastimável estado de conservação, proporcionando atoleiros descomunais a quem se aventurava tentar chegar à cidade naqueles dias úmidos. Nem mesmo as rodovias de acesso a capital, a leste, e para o Tocantins, a oeste, ficaram imunes a tão pesada chuvarada.
            Mas, como afirma o dito popular, depois da tempestade vem a bonança, e naquela tarde o sol saiu luminoso, tão belo como somente consegue se apresentar nos dias subsequentes aos piores temporais. Estávamos, eu e meu pai, no comércio que possuíamos ligado à nossa casa, quando parou um veículo na porta e dele desceu um homem de estatura mediana, barriga um pouco proeminente, como a minha memória consegue visualizar hoje, e logo soltando a sua voz trovejante:
            - Pinheiro, a região está se dissolvendo feito Sonrisal. É tanta água que não cabe mais em lugar nenhum – falou com gestos largos, como lhe era peculiar.
            Entrou no salão comercial e foi logo dando um abraço apertado no seu interlocutor e depois passou a cumprimentar efusivamente as poucas pessoas que se faziam presente naquele instante.
            - Rapaz, quase não consigo chegar até aqui na noite passada. Era tanta água, mais tanta água por esses caminhos que a minha velha fubica teve dificuldades de me trazer de volta para casa.
            - Inverno rigoroso esse, Deputado Orlando – esse era o nome do homem que transbordava alegria por todos os poros, mesmo ao falar de dificuldades – tão rigoroso que os acessos à cidade estão quase todos cortados.
            - É verdade. Soube agora que a ponte sobre o Preguiçoso foi carregada pela enchente, aqui na saída para o oeste, e que um bueiro se rompeu na estrada para a capital, deixando a cidade quase ilhada. Vamos lá ver como está a situação?
            Convite aceito, embarcamos os três, eu, meu pai e o recém-chegado, em sua velha Kombi, que arrancou em uma velocidade infinitamente menor ao que atestava o barulho do motor quase a pular fora do chassi do veículo. Dentro do carro, no banco de trás, eu tinha dificuldades de ouvir o que os dois homens conversavam alegremente no banco da frente, tal a barulheira que as portas laterais faziam, já ameaçando saltar fora das dobradiças.
            Era um tempo de políticos pobres, que suplantavam seus adversários nos embates eleitorais com a força dos seus discursos, a assistência que prestavam às suas bases e a credibilidade de suas propostas.  Muito diferente dos deputados que trafegam hoje em potentes camionetas importadas, com ar refrigerado, adquiridas com recursos obtidos de forma nem sempre lícitas, e que só retornam para junto de seus eleitores quando precisam novamente dos seus votos.
            Como ia dizendo anteriormente, eu estava com dificuldades para ouvir o que os dois homens iam conversando. Apenas fragmentos do diálogo me chegavam de forma mais clara, permitindo-me saber que o assunto era a política do país. Vivíamos o tempo da revolução de 64, ou do golpe de 64, como preferem chamar os políticos de hoje que procuram vergonhosamente esconder de seus eleitores a sua participação ativa no governo de então.
            Aqui e acolá, quando a trepidação diminuía, era possível ver que a conversa tinha variado um pouco. Foi o que aconteceu em um dado instante, quando deputado se dirigiu ao meu pai e indagou-lhe:
            - Amigo Pinheiro, você se diz conhecedor de quase tudo sobre a Bíblia! Pois eu vou te fazer uma pergunta de resposta simples – e concluiu antes que meu pai protestasse ante o desafio – quando foi que Jesus chamou São Pedro de bule?
Surpreso com a pergunta, meu pai olhou para o rosto do deputado que se maninha sereno, como a atestar a seriedade da pergunta que acabara de fazer.
- E então? – provocou ainda sério.
- Deputado, não lembro ter lido alguma passagem na Bíblia em que Jesus tenha chamado o apóstolo Pedro por algum apelido – respondeu-lhe com incredulidade e dentro da sua costumeira sabedoria.
- Ah! Essa eu te peguei – riu gostosamente o desafiante. – Foi quando ele falou para os apóstolos “o que temeis, homens de pouca fé!” – e arrematou: onde é que se põe café?  No bule, é claro!”.
E caiu na gargalhada.
O homem se referia à passagem Bíblica em que Jesus dormia no barco  em meio a uma terrível tempestade que ameaçava levar o pesqueiro à pique com todos os seus passageiros.
Essa brincadeira é verídica, e é aqui relatada apenas para mostrar o outro lado, o lado brincalhão do político jovem, que sofria naquele momento uma perseguição intensa dos militares que ocupavam o poder naquele instante.
De outra feita, estávamos na cidade vizinha, que os habitantes de Pindorama insistem em afirmar se tratar do seu maior bairro, quando ouvimos em uma amplificadora instalada a poucos metros da residência de um grande amigo do meu pai, alguém discursar de forma contundente. Logo fiquei sabendo se tratar do deputado Orlando. Foi a primeira vez que o ouvi falar para o público, e fiquei impressionado com o poder devastador da verve daquele jovem e destemido político. Não deixou naquele momento pedra sobre pedra, trucidando com maestria seus adversários políticos locais e mostrando, como eu ainda não havia visto, as entranhas do poder que interrompeu de assalto a caminhada da democracia no país.
Mas, voltando um pouco ao objetivo da nossa curta viagem na velha Kombi, eu estava extasiado com a oportunidade de passear de carro, daí esse caso específico está tão vivo na minha memória.  Quando chegamos próximo às margens do rio Preguiçoso, no lugar onde há pouco tempo se tentou instalar uma barragem-balneário, jogando pelo ralo um soma vultosa de recursos públicos, vimos que de fato a estrada estava completamente destruída naquele ponto.  A água passava por sobre o aterro como se não tivesse nenhum obstáculo a lhe barrar o caminho. Os velhos tubos metálicos colocados nas duas passagens do rio estavam completamente destroçados, lançados por sobre a várzea à jusante como se fossem meros tubos de plástico. E a água preenchia o espaço numa extensão que meus olhos de criança, que nunca haviam visto o mar, elegeram logo como o maior ajuntamento de água já visto.
Situação quase idêntica, porque em menores proporções, acontecia no outro ponto por nós visitado, quando fomos ver o que acontecia na estrada que liga a cidade à capital. De fato, estávamos completamente ilhados naquele inverno, como é chamado aqui no nordeste o período chuvoso.
E qual não foi a minha tristeza, quando algum tempo depois, não sei precisar quantos meses ou anos, pois a minha mente infantil guardava muito bem os fatos acontecidos, não se importando com o espaço temporal, uma notícia caiu como uma bomba sobre nós: o deputado Orlando havia tombado morto, vitima de um pistoleiro que o assassinou na cidade vizinha a Pindorama, quando ele retornava da capital. Diziam ainda que ele fora alvejado covardemente quando havia descido do ônibus em que viajava para cumprimentar alguns amigos que já o esperavam quando souberam que passariam por lá.
A notícia abalou a cidade como se uma bomba de muitos megaton houvesse sido lançada sobre ela. E, de fato, foi o que aconteceu, pois lançou efeitos devastadores sobre o município que nascia, pujante, e sobre sua gente, esperançosa, que ansiava por melhores dias ante a ação eficiente do jovem político. Foi o primeiro político eleito, nascido naquela comunidade pobre a morrer de forma violenta. Depois, muitos anos depois, viriam a falecer outros dois de trágicos acidentes. Mas, esses casos, que me tocaram também profundamente, dado à sua contemporaneidade e a amizade que me unia aos dois, serão tratados em outras crônicas por mim lavradas, com informações retiradas do mais profundo da minha mente terrivelmente magoada por todos esses acontecimentos. Esse espaço seria muito pequeno para cuidar de tantos assuntos ao mesmo tempo.
Mas, o assassinato do deputado Orlando abalou profundamente e alterou o ânimo pacífico da população da cidade. Logo que ficaram sabendo que o assassino havia sido preso, e que se tratava de um policial militar lotado no próprio município onde o fato ocorrera, alguns cidadãos logo cuidaram de alardear a notícia de que ele seria solto logo que a noite chegasse por seus colegas de farda, agora incumbidos da sua guarda. A notícia se transformou em um levante. Dezenas de pessoas, costumeiramente pacíficas e temerosos de que mais um crime ficasse impune na região, embarcaram em um caminhão rumo à cidade vizinha e, logo ao chegar, se dirigiram para a delegacia de polícia para lançar mão sobre o assassino.
Ali chegando, perceberam que os policiais, com o intuito de proteger o colega de farda, juntaram-se a ele na mesma cela, armados e de prontidão.
Os visitantes, já dentro da delegacia, solicitaram a entrega do homem de forma pacífica. Mas, diante da negativa dos policiais, decidiram arrombar as portas da cela para capturar o meliante. Os policiais engatilharam as armas e, diante da iminente invasão, atiraram. Atingiram mortalmente o primeiro atacante, um parente do deputado assassinado. O que se seguiu depois, versão ouvida de pessoas que estavam presentes, foi que um pandemônio se instalou dentro da cela, culminado com a morte terrível do assassino do Deputado Orlando. Tombou trucidado pela fúria da turba que só queria levá-lo preso para um lugar onde pudesse ficar seguro à espera da ação da justiça.
O fato é que o assassinato do jovem deputado nunca foi totalmente esclarecido. Os verdadeiros mandantes nunca foram de fato identificados e punidos, desencadeando uma série de outros crimes violentos na região. Alguns, mais ressabiados, afirmam que a multidão enfurecida foi orientada por pessoas que tinham interesse em eliminar o assassino sem se comprometer. Que fora queima de arquivo. Não se sabe se essa versão é verdadeira ou não, mas, o fato, é que juntamente com o indivíduo justiçado, foi para a tumba o segredo do nome mandante.