terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A HISTÓRIA DE PRESIDENTE DUTRA (Parte 2)

Arte da Capa: Ricardo Araújo




José Pedro Araújo

A presença indígena em terras do Curador - A literatura é pobre em registros sobre quais tribos habitavam a região do Curador no princípio da colonização maranhense, entretanto, pode-se dela retirar passagens importantes na elucidação desta questão. São registros importantes que possibilitam identificar o nome dessas tribos, até quando permaneceram em solo presidutrense e para onde se deslocaram depois.

Sabe-se, por exemplo, que esta região era infestada por índios da nação Timbiras que ocupavam as terras situadas entre o Mearim e o Itapecuru, e se constituía também em passagem obrigatória de indígenas desgarrados que estavam naquele momento fugindo das guerras travadas contra o homem branco(a exemplo dos Timbiras quando expulsos do território piauiense que depois se refugiaram no oeste maranhense). 

Existem ainda alguns registros que nos dão conta de que nesta região viveram, em tempos remotos, algumas tribos indígenas. É o que se depreende ao se analisar alguns vestígios da passagem desses ancestrais deixados na lagoa do Binga, onde foram achados restos de vasos e de outros instrumentos em cerâmica reconhecidamente indígena. Essas pistas foram descobertas por trabalhadores quando retiravam areia nas proximidades de um paredão rochoso, de onde brotava uma nascente de água potável. Aliás, desse mesmo lugar, durante muito tempo se retirou água para o consumo dos habitantes do Curador. E, pela idade, aspecto e forma rudimentar dos vasilhames encontrados, calcula-se que às margens da lagoa acima identificada viveram silvícolas atraídos pela abundante caça, e pela facilidade de construção de suas ocas, utilizando-se da presença, em larga escala, da palmeira do babaçu.

Sabe-se, ainda, que é tradição do povo Timbira ter como morada permanente as imediações de algum manancial importante, lugar que ofereça condições ideais para a pesca, a caça, a coleta de frutas, e que também apresente solos propícios ao plantio anual da mandioca, da batata, do feijão e do milho catité ou zaburro, espécie do cereal cultivado por seus ancestrais, e que apresentam grãos coloridos e com tamanho mais reduzido.

Esses mesmos silvícolas quando as chuvas sumiam, o leito dos rios baixava e o sol esturricava o solo, partiam os caçadores mais adestrados na arte em busca de regiões já previamente determinadas para se estabelecerem até a volta das águas. Segundo o costume, atrás deles, com algumas horas de diferença, seguiam as mulheres com as crianças e os mais velhos, empreendendo viagem na mesma direção.

Às vezes caminhavam por vários dias até chegar ao local idealizado. Lá, organizavam a aldeia, segundo os seus costumes, protegendo-se do ataque de alguma tribo inimiga ou mesmo do homem branco, escolhendo ainda áreas com abundante caça. A região do Curador poderia estar perfeitamente integrada a uma situação como essa, já que possuía caça abundante e todas as outras situações que eram pré-requisito a uma boa estada. O certo é que, ou local definitivo, ou campo de caça dos Sacramecrãs(tribo Timbira), nossas terras foram habitadas por muitos indígenas durante muitos séculos.

Quando os primeiros brancos chegaram à região se depararam com uma situação inusitada: todas as nascentes de água estavam obstruídas com pedras e paus, e dentro delas havia muitos animais mortos. Antes de partir, os indígenas haviam contaminado a água, dificultando a permanência dos novos ocupantes. Esta era uma prática indígena corriqueira que visava expulsar os indesejáveis de suas terras, ou, pelo menos, dificultar-lhes a permanência nelas.

Existem ainda algumas referências bibliográficas que atestam o que estamos afirmando, de que nessa região já residiram muitos indígenas. Entre estas, podemos citar a obra do Professor Júlio César Melatti, da Universidade de Brasília, importante estudioso das questões indígenas e um dos autores da Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil. Este compêndio detalha bem em um mapa denominado Maranhão: frente agrícola e pastoril no início do século XIX, que a área onde se encontra o município de Presidente Dutra foi também habitada por índios Timbiras.

É dele também a informação de que dois povos Timbiras que viviam na faixa que vai do rio Itapecuru ao Mearim desapareceram como grupos autônomos, sendo que um deles, os Txocramekrás (Sacramecrãs ou Mateiros), ocupavam a faixa de terra de mata que se localiza a oeste do rio Itapecuru e segue até o rio das Flores, onde estavam nucleados. É precisamente nessa região descrita pelo pesquisador que se localiza o território de Presidente Dutra.

Discorrendo ainda sobre os fatores que contribuíram para não se ter mais a presença indígena em nossa região, ele cita uma informação repassada pelo sertanista Paula Ribeiro, de que os Sacramecras “sofreram uma derrota dos brancos no fim do século XVIII. Foram surpreendidos por uma outra expedição em 1815 e refugiaram-se no alto de uma serra. Os que daí desceram desarmados, enganados por uma proposta de paz, aliança contra seus inimigos e promessas de ferramentas, foram aprisionados e vendidos na praça de Caxias(Mellati)”.

Mas a principal referência que temos de que os silvícolas habitaram estas terras antes de nós foi registrada pelo pesquisador alemão Curt Nimuendaju, considerado a maior autoridade em assuntos indígenas no Brasil. É também de autoria deste incansável estudioso o mais importante trabalho já realizado sobre indígenas sul-americanos. Nesse estudo de fôlego, ele descreve com rara precisão sobre os costumes, crenças e lendas, identifica a sua língua, e, principalmente, determina sua localização exata. Mas não apenas somente isso, também sinaliza para onde foram, e quando se deu essa emigração. Detalhou, por fim, quais os povos hoje extintos e o ano aproximado em que isto aconteceu.

Em seu Mapa Etno-Histórico, publicado em 1944, sob encomenda do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, republicado em edição fac-similar pelo IBGE em parceria com o Instituto Pró-Memória, em 1981, Nimuendaju afirma que os Kakamekrás(Txocramekrás, Sacramecrãs ou Mateiros), pertencentes ao tronco linguístico Jê, habitaram nosso território até o século XIX, tendo migrado depois de sucessivos ataques de brancos que desciam de Caxias e Pastos Bons, para a região do rio Alpercatas.

Confirma assim as informações emitidas muito depois pelo prof. Melatti, que omitiu apenas a informação de que o remanescente desse povo, ao sofrer tantos ataques do homem branco, fugiu para a região do rio Alpercatas, afluente do Itapecuru, indo mais tarde se juntar aos Canelas na região de Barra do Corda. Essa última migração se deu depois de ficarem reduzidos a um pequeno grupo, quase exterminados que foram pelos Capiecrãs, seus adversários históricos, e tantas vezes batidos por eles em longas refregas.  

Elimina quaisquer dúvidas que porventura ainda persistissem quanto à presença desses povos no Curador o depoimento do major graduado português Francisco de Paula Ribeiro, comandante do destacamento militar sediado em Pastos Bons naquela época. Esse importante trabalho, realizado em 1819, é hoje objeto de pesquisa da totalidade dos estudiosos que procuram se debruçar sobre o desbravamento dos sertões maranhenses. Na forma de um diário, este indomável e incansável pacificador denominou suas anotações de “Memória sobre as nações gentias que presentemente habitam o continente do Maranhão”. Fonte inesgotável de informações sobre a sua época, teve umas de suas novas publicações coordenada pelo professor João Renôr F. de Carvalho em parceria com o também historiador Adalberto Franklin, e nele Paula Ribeiro faz referência à presença dos Txocramekrás no local citado pelos outros estudiosos acima mencionados, com um nível de detalhamento excepcional.

É dele a informação, dentre outras também importantes, de que esses índios foram atacados por uma expedição comandada por paisanos, ajudados por índios domesticados, fato já narrado em página anterior. O saldo final da “entrada” foi o aprisionamento de cerca de 300 índios, o assassinato de muitos outros, aí incluídos velhos, mulheres e crianças, como também o estupro de suas mulheres e filhas. Terminada a nefasta operação, levaram-nos para a Vila de Caxias, onde os mais jovens foram comercializados como escravos.

Afirma, finalmente, Paula Ribeiro, que quando alguns desses pobres miseráveis conseguiam fugir e retornar à aldeia, eram mortos pelos próprios irmãos, sob o pretexto de que teriam adquirido o costume dos brancos invasores, tal era o ódio que nutriam pelos seus detratores. Sobre essa página triste da nossa historia, veja o que dizia o Major Paula Ribeiro:



"Em 1815, uma tal ou qual escolha de paisanos, dirigida pelo expediente judicial da vila de Caxias, saiu de Pastos Bons contra esses Timbiras, auxiliada por outros Timbiras seus inimigos... Mas quão diferente não foi deste acolhimento protestado aquele que receberam na crueldade com que a sangue frio foram ali mesmo mortos, alguns atraiçoadamente; nas prisões com que imediatamente agrilhoaram outros, e na infame partilha que se fez das suas famílias em tom de escravos perpétuos, chegando a ser arrematados em leilão público na praça da vila de Caxias, e levados aos escaroçadouros dos algodões daquele distrito, aonde, amarrados como macacos ao cepo, foram asperamente castigados para adiantar a tarefa do serviço consignado pelos seus ilegítimos senhores, no entanto que talvez sofriam fomes intoleráveis! Feliciano Francisco Cordeiro, morador na fazenda Inhuma, em Pastos Bons, nos relatou que empregara quatrocentos ou quinhentos mil réis na compra desses escravos, mas que persuadido depois da ilegitimidade desse contrato, não querendo estar pela sua validade, fora citado para se legitimar em juízo. Nada porém nos admira tanto, relativo a semelhante questão, como haver esse juízo que lho legitimasse”.(p. 217, 1819).



Ao que parece, todas as autoridades constituídas estavam envolvidas nos atos espúrios e cruéis praticados contra os aborígenes, até mesmo as relacionadas à justiça. E isso era prática comum, não era fato isolado. Encontram-se registrado em documentos existentes no Arquivo Público do Maranhão, inúmeras ordens emitidas pelos Governadores da Província, autorizando a captura de silvícolas com o propósito de transformá-los em escravos ou soldados, e até mesmo muitas autorizações para o seu extermínio puro e simples.

No caso do extermínio e/ou prisão dos Sacramecrãs que viviam nas matas centrais, fato noticiado pelo major Paula Ribeiro acima, o capitão-general da Capitania do Maranhão enviou oficio, datado de 04.08.1815, ao desembargador Luís de Oliveira Figueiredo e Almeida, juiz de fora da Vila de Caxias, manifestando sua satisfação pela ação comanda pela autoridade judicial contra os indígenas da mata, os quais “foram destruídos e rendidos depois que não quiseram receber a aliança e amizade, que o comandante da bandeira lhes ofereceu”. E continuou estimulando a dita autoridade judiciária a prosseguir com a empresa para “conquista das terras” (Repertório de Documentos para a História Indígena no Maranhão, p. 168, 1997, Coleção de documentos do APEM).

        Defensor de medidas menos coercitivas contra os indígenas, o major português descreveu o guerreiro Sacramecrã como um índio de bom porte físico, corajoso e profundamente inteirado da arte da guerra. Essa mesma percepção teve os cientistas austríacos Spix e Martius, quando por aqui passaram, mais ou menos no mesmo período. Viandantes calejados vinham observando o aspecto de muitas tribos com quem haviam mantido contato, surpreendendo-se ao encontrarem indígenas de porte alto, musculosos, pele cor de cobre, mas um pouco mais clara do que a tez dos nativos que encontraram durante a longa travessia pelo país. Admiraram-se ainda com a fronte altiva desses aborígenes, denotando terem a consciência de pertencerem a uma espécie diferenciada. Estes cientistas permaneceram muitos dias em Caxias se recuperando das doenças contraídas na viagem que quase lhes custaram a vida. E enquanto aguardavam pela recuperação das próprias forças, curiosos que eram, contataram com muitos dessa nação que andava pela povoação, todos trazidos à força para lá, fruto das diversas incursões dos brancos em suas regiões de origem.

         Concluindo o assunto da presença de índios em terras do nosso município, faz-se necessário informar que ouvimos diversos relatos de que os primeiros habitantes da pequena e ainda incipiente povoação do Curador haviam recebido muitas “ameaças” dos poucos indígenas que ainda estavam aldeados nas margens do rio Preguiça, no trecho conhecido como Fortaleza, de que não tardariam a invadir aquela povoação. Foram momentos, claro, de verdadeiro tormento para os poucos habitantes do povoado na época, uma vez que nele não havia qualquer contingente militar que os protegesse, em caso de concretização dessas ameaças. Felizmente nada disso ocorreu. Antes que as tais ameaças se concretizassem, os últimos bugres deixaram a região em função do grande número de colonos que chegavam diariamente animados com as notícias da existência de terras férteis, e agora quase “livres” na região. Descaracterizados como tribo autônoma, o pequeno grupo juntou-se aos Canela de Barra do Corda, seus irmãos, afinal.


sábado, 24 de fevereiro de 2018

CRÔNICAS VIVIDAS

Imagem by Google


AMABILIDADE DE VIAGEM

José Ribamar de Barros Nunes*

Nos jornais gosto de focar nos pensamentos de gente que se destacou em alguma coisa da vida. Hoje chamou a minha atenção uma reflexão do poeta luso Fernando Pessoa, autor da famosíssima frase – “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Mas o destaque descrito pelo jornal é outro, a saber: “A vida é uma viagem a bordo de um navio em que desconhecemos o porto de partida e de chegada. Por isso cai bem uma amabilidade de viagem”.
Creio que a segurança marítima aumentou muito no correr dos tempos. Não sei e nem posso afirmar se a amabilidade e cortesia nas viagens aumentou ou diminuiu no século vinte um. Como a esperança é a última que morre, alimento o ânimo de que essa amabilidade específica possa ter aumentado um pouquinho na travessia no mar, digo, vale de lágrimas.
No mundo em que a gentileza e a cortesia e os bons modos parecem ter ficado mais raros, pareceu-me de bom alvitre comentar o pensamento do ilustre e inesquecível vate lusitano. Talvez possa servir de reflexão ou subsídio para todos, mormente para aqueles que têm a chance de viajar... Fica a sugestão. Se alguém quiser, pode comentar mais...

(*) José Ribamar de Barros Nunes é cronista, Assessor Parlamentar e autor de Duzentas Crônicas Vividas

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A HISTÓRIA DE PRESIDENTE DUTRA (Parte 1)

Foto de uma comunidade real da região - By Eva Mills




José Pedro Araújo

A conquista dos sertões de dentro - “Sertões de dentro”, assim se conheciam as terras do Piauí e do Grão-Pará, que envolviam o Maranhão e os Estados amazônicos. Já os “sertões de fora”, consistiam nos territórios da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará.

Continuando a saga dos novos desbravadores, com a ocupação das terras do entorno da ilha de São Luís, os recém-chegados foram em busca das terras situadas no vasto sertão. Começava, assim, a conquista dos ditos “sertões de dentro”, imensa área de floresta aonde, até então, apenas os nativos corriam soltos, vivendo do plantio da mandioca e batata, da pesca e da caça abundante, e usufruindo uma liberdade até então nunca ameaçada.

Tentaremos discorrer sobre as formas e os roteiros de penetração das bandeiras que avançaram sobre o vasto território maranhense, transpondo serras, rios e campos infestados pelo nativo belicoso, sempre em busca das terras ubérrimas e incultas que o desconhecido ocultava. Montados em animais de sela, a pé ou navegando em embarcações rudimentares, esses homens penetraram fundo o território vasto e desconhecido. Nessa caminhada rumo ao poente e ao sul, iam estabelecendo suas fazendas de gado nas vastas áreas de campo nativo, uns, e promovendo as primeiras derrubadas, outros, trabalhando a terra antes ocupada por vegetação milenar, e implantando culturas exóticas no solo virgem e receptivo. E foi assim que acabaram por chegar e lançar âncoras nas terras apetitosas do Japão maranhense.

Para entender melhor esse termo, ”Japão”, é necessário lembrarmos que o solo maranhense era mais ocupado nas ribeiras do baixo Itapecuru, baixo Pindaré, e baixo Mearim. E que nos sertões existiam apenas duas vilas importantes àquela época, a de Caxias e a de Pastos Bons. A de Pastos Bons, por exemplo, tinha como território as dilatadas porções de terras que iam do rio Parnaíba até o rio Tocantins. Por esse tempo também, começava a ser povoada a ribeira do rio Grajaú, de onde futuramente seríamos destacados, juntamente com Barra do Corda.        

            Diante das dificuldades para penetrar na região, começaram a chamar o lugar que hoje pertence aos municípios de Presidente Dutra, Dom Pedro, Graça Aranha, São José dos Basílios, Parte de Tuntum, e parte de São Domingos do Maranhão, e que lhes parecia tão indevassável, de região da Mata ou Japão. Com o passar dos anos, a informação daquela muralha verde e impenetrável, com solos ubérrimos e água de superfície em quantidades benfazejas, chegou até a Caxias e Pastos Bons, além da capital do Estado, despertando a atenção dos nossos irmãos situados mais ao leste. Com essas características impeditivas, logo a região passou a ser chamada por eles de Japão, numa referência, portanto, a algo distante e desconhecido para eles.

                Foi o que aprendemos com os nossos antepassados, que esse nome devia-se a nossa localização distante das áreas mais povoadas, como se estivéssemos situado no fim do mundo. Não restam dúvidas de que esse sentimento era verdadeiro. Não possuíamos um rio navegável por onde se pudesse aqui chegar, e, por outro lado, a floresta fechada, com suas árvores poderosas, dificultava a abertura dos caminhos, que naquele tempo necessitavam do braço forte dos pioneiros para serem construídos, já que não havia o menor interesse público e ainda não possuíamos maquinário capaz de substituir a força humana e a dos animais de tração. 
 
            Mas, o nosso isolamento também decorria da insalubridade da região. Aqui, doenças como o impaludismo (malária), e a febre amarela, impunham dificuldades para aqueles que por ventura se dispusessem a se estabelecer neste lugar longínquo. E esse aspecto, somado ao fato de sermos descendentes de famílias nordestinas, enquanto que os moradores da região mais a leste foram colonizados por europeus ou descendestes destes, gerou, por parte das autoridades sediadas na capital, um tratamento discriminatório que ainda hoje se abate sobre nós quando se trata de recebermos os investimentos públicos de que tanto necessitamos.


            A soma de todos esses percalços, não foi bastante para barrar o desenvolvimento da última parte do solo maranhense a ser colonizado. Do mesmo modo, a distância da sede do município ao qual pertencíamos, não nos privou de alcançarmos rapidamente a condição de vila importante no município de Barra do Corda. Nem mesmo a falta de acesso à sede e o descaso para com a comunidade que lutava contra tudo e contra todos, impediu que logo conquistássemos a nossa independência do município-mãe e voássemos alto com asas de fênix em busca do nosso próprio destino. 


            A combinação de solos férteis com um índice pluviométrico invejável, cujos quantitativos de chuvas ultrapassavam a barreira dos 1.600 mm/ano, somados ao espírito desbravador e indômito dos nossos pioneiros, alavancaram o desenvolvimento da comunidade que nasceu à beira da lagoa do Curador, longe das ribeiras mais importantes do território maranhense.


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

AS CINZAS DO CARNAVAL




José Pedro Araújo

Antes de entrar no centro cirúrgico, Dr. Pedro Martins deu uma espiada pela janela do corredor e observou o vai-e-vem dos foliões lá embaixo. Eram os últimos que insistiam em transgredir a norma cristã de continuar com o carnaval na quarta de cinzas. Naquele instante as lembranças voaram de encontro a um passado ainda não tão distante. O som do batuque penetrou pela janela e aumentou o ritmo das batidas do seu coração.

Baixou a máscara cirúrgica e respirou intensamente o ar que penetrava pela janela e entrou no recinto asséptico, onde já lhe esperavam para mais uma intervenção médica. Enquanto recebia as luvas, outra instrumentista amarrava os cordéis da bata azul. Mas a sua mente estava longe, e as lembranças fluíam como nunca na sua memória: Salvador fervia ao som dos trios elétricos que arrastavam multidões pelas avenidas do circuito Barra-Ondina. E ele, vivendo os últimos meses da sua carreira acadêmica, misturava-se à multidão de sambistas, sozinho, vez que se perdera dos colegas logo no início do desfile.

De repente, no ruge-ruge daquela tarde que já se encaminhava para o fim, viu-se envolvido por um grupo de alegres passistas. Com elas chegou também um nível de alegria muito superior ao que já era grandioso. E como estavam todas vestidas com o mesmo tipo de fantasia, diferente da maré humana que trajava um tipo diferente de abadá, logo Pedro identificou um grupo de amigas que havia saído para se divertir sem ligação alguma com algum trio. Lindas, corpos esculturais, sambavam desinibidas, sorriso largo nos rostos inundados de alegria.

Eram seis. Meia dúzia de beldades destacadas nesse mar apinhado de mulheres estonteantes. E ele, laçado pelo grupo feliz, qual criança dentro de uma roda de ciranda, viu-se encantado e começou a girar para observar melhor aqueles rostos de fada. Rápido giro, parou o olhar em uma e logo conseguiu o que perecia impossível: fixou-se na que lhe pareceu mais bela, mais simpática, mais alegre. Pronto. Estava lá aquela que lhe ocuparia o coração por todo o restante do carnaval, até a quarta-feira de cinzas chegar.  

Dez anos passados, ali estava ele a rememorar, mais uma vez, aquele sorriso maroto, cintilante como as estrelas do céu em noite sem nuvens. Mais uma vez, o batuque que ainda se ouviam advindo de um ponto ou outro da cidade, trazia para junto de si aquela gargalhada galhofeira, aquele lábios doces e sensuais que beijou por todo o restante do carnaval.  E foi só. Passada a quarta feira de cinzas, procurou-a no hotel em que se hospedava e lhe veio a triste notícia: havia partido logo na madrugada.

Passaram-se muitos carnavais, mas não passou aquela lembrança que lhe ficaria para o resto dos seus dias. O coração ritmado pelo som dos tantãs era comandado agora pelo som melífluo do sorriso que tinia qual cristais em contato. Era a música que fazia o seu ser se mexer e, inescapavelmente, levava-o àquele estado de melancolia ao relembrar aqueles três dias de intensa paixão. E agia tão forte sobre ele, que nunca mais se abriu para outra emoção amorosa, outra paixão, mesmo que carnavalesca. Não que não houvesse mais voltado às ruas de Salvador para procurá-la durante os carnavais que se seguiram. Voltou sim. Por três anos, consecutivamente. E nada de Helena, nem um fiapo de sorriso que ao menos se assemelhasse a sua alegria de sol rompendo nuvens condensadas de água. Depois não foi mais a sua procura. A dor de não encontrá-la era maior do que a que lhe magoava o coração com suas lembranças. Não voltou mais às ruas de Salvador, também. Nunca mais, durante os muitos dias de carnaval que inundavam e espalhava a alegria pela cidade.

Certa vez, de um amigo obtivera uma boa ideia: “procura pelas redes sociais, dissera ele. Se ainda estiver viva, com certeza aparecerá em uma delas”. Não teve coragem de tentar. E se ela estivesse casada, fosse já mãe. Não! Preferia ficar com aquela esperança ainda que meio impossível, inalcançável. E assim passaram-se os anos, e o sentimento foi se transformando em dor de perda, e o seu coração foi se fechando mais e mais para outras emoções.

Até aquele dia em que, resoluto, ao sair da sala de cirurgia, decidiu que já era tempo de tentar algo, fazer alguma coisa diferente. Nem que fosse para sofrer uma brutal decepção. Então, foi direto para a sua sala e ligou o computador para acessar o Facebook. Ali, diziam, encontraram muita gente de quem nem mais se recordavam. O coração estava irrequieto, não podia negar, pulsante como nunca.

Ligou o computador e, no espaço destinado à pesquisa, digitou as letras amadas: H,e,l,e, outra vez, n,a. Apareceram uma infinidade de helenas. Precisaria digitar um sobrenome para iniciar a filtragem. Não sabia. Nunca lhe ocorrera perguntar. Mas também, amor de carnaval era assim: bastava um nome, e pronto. Às vezes, nem isso. Mas como lhe fazia falta!

Decidiu-se. Começara pela profissão. Também não sabia. Estado natal. Também não. Cidade de origem. Pior. Quedou desanimado. E então começou a rolar lentamente na tela a infinidade de helenas que o face lhe disponibilizara. Olhava o rosto e passava adiante. Não era aquela. Helena disso, Helena daquilo, o rosto lhe dizia que não. Mesmo que estivesse diferente agora, o sorriso jamais mudaria. Reconheceria de imediato. Era certo que ela, caso estivesse ali, estivesse sorrindo. Tempos depois, já desanimado e decidido a parar com aquilo, passou displicentemente por uma Helena que lhe fez voltar atrás, alarmado e com o coração ao pulos: estava ali. Era ela!

Seus olhos encheram-se de lágrimas e os dedos, tremendo, dificultavam atender ao comando do cérebro. A muito custo, foi em busca de mais informações. Pouquíssimas fotografias, nenhuma informação sobre aquela Helena, a sua profissão, a cidade onde morava, nada! Ficou abatido, era daquelas que pouco usava a rede, assim como ele próprio. Desesperou-se.

Resolveu tentar, assim mesmo, um contato. Quem sabe se dessa vez a sorte lhe sorriria! Digitou o nome amado: “Helena?”.  Não esperava resposta imediata, estava claro. Apenas uma tentativa, pensou desanimado. E tomou um susto quando viu aparecer uma mensagem na tela: “Quem é?”. Os dedos desobedeceram de vez ao comando. E mesmo assim, dizer o que? Parou emocionado. E quase perde o "time". Ainda pensou em levantar e ir embora. Mas resolveu colocar aquilo em dia. Desse no que desse. E então respondeu: “Pedro”.

Quando a resposta lhe veio, após passados alguns minutos, parecia ver como se as letras na tela estivessem tremidas: “Não sei quem é”, foi a resposta. Ao invés das letras trêmulas, julgou agora vê-las decepcionadas. Ele insistiu: “Pedro Martins, o carnavalesco de Salvador!” O tempo de resposta foi maior. “De que carnaval?”, letrinhas emocionadas agora, mas, reticentes. “2008!”. Nova pausa. Depois: “vi a sua foto, agora te reconheci”. Isso foi o início da troca de mensagens, porque, depois, o diálogo fluiu e vieram somente notícias boas, alvíssaras. “Estás casada?”. “Não! Não, divorciada!?” “Também não! Solteira mesmo. Nunca encontrei o meu folião amado!”

Lágrimas de emoção começaram a cair sobre o teclado, e os dedos, agora cúmplices, corriam ligeiro em busca de mais e mais informações. “Não vou perder o "time" agora: nome completo e endereço?” Residiam em cidades próximas, foi a surpresa seguinte.

Dia seguinte, quinta-feira comum, sem nome, uma vez que somente a quarta-feira de cinzas recebeu um nome de batismo, estava ele desembarcando no Aeroporto de Recife para o reencontro esperado por longos dez anos. E ao penetrar no salão de desembarque, lá estava o rosto amado a sorrir feliz. Mas, os últimos vinte metros que lhe separavam da mulher amada foram os mais extenso da sua vida, e alargou demais o tempo até tê-la em seus braços outra vez. Refletiu muito e rápido durante o trajeto, como se estivesse recebendo as cinzas da conversão sobre a sua testa, e aduziu: a vida teria um recomeço!