José Pedro Araújo(*)
A região central do Maranhão,
também conhecida como zona do Japão, foi desde muito um corredor de passagem
para os que fugiam da seca nordestina, atravessavam o Parnaíba e seguiam em
busca das terras onde as chuvas caiam dadivosas e o solo devolvia em porções
monumentais as sementes arremessadas na terra. Do mesmo modo, e em sentido
contrário, seguiam os que levavam seus rebanhos desde os campos de Goiás e ribeiras
do Tocantins para as feiras de Caxias ou para o campo das Pombinhas, no
Itapecuru, pernoitando no Curador para descansar do cansaço da jornada.
Com a abertura da primeira
estrada rasgando a região central, que interligou Caxias a Barra do Corda, nos
distantes dias de 1854, muitos dos que desciam das caatingas nordestinas, paravam
no velho Curador. Algumas vezes, somente para um breve período de descanso, com
o intuito de refazerem as forças e, se possível, ganharem alguns trocados para,
depois, continuarem suas sagas até chegarem ao alvo previamente estudado. Mas,
até mesmo estes, depois de alguns dias por ali, encantados com a região antes
escolhida apenas para uma breve parada, mas também atraídos pela qualidade dos
solos e a exuberância das chuvas, terminaram por descansar a bagagem no solo
definitivamente, e nunca mais de lá arredaram.
Mas não apenas estes,
agricultores por excelência, criadores por motivação, mas outros tantos que
laboravam como pequenos manufatureiros de tudo o que interessava a uma
população em expansão. E entre estes, foram se radicando no Curador os
funileiros, sapateiros, ferreiros, barbeiros, costureiras e alfaiates,
marceneiros ou carpinteiros, entre tantas outras profissões, pois viram na
região uma oportunidade para se estabelecerem. Foram estes nordestinos
desprovidos de recursos financeiros, mas abastados da vontade de superar toda a
carência de que vinham padecendo durante toda a vida até chegarem ali. E foram
estas pessoas que estabeleceram a base familiar de todos os que vivem e povoam o
agora município de Presidente Dutra. Cada família residente no município
carrega nas veias o sangue daqueles homens, mulheres e crianças que aportaram na
região, trazidos, a maioria, pelos caminhões que vinham para adquirir o arroz
produzido a mãos cheias nos campos e roças da nova localidade que foi se formando
na mesopotâmica e ubérrima faixa de terra existente entre os riachos Preguiça e
Firmino.
Algumas famílias chegavam, se estabeleciam
em alguma morada simples, mediante o pagamento de aluguéis irrisórios, e
ficavam observando a movimentação da comunidade, com o propósito de escolher a
melhor maneira de começarem a produzir algo também para o sustento da própria
família. Não esqueçamos que naqueles anos duros, não se tinha nenhuma ajuda do
governo para minorar a necessidade dos mais pobres. Cada um daqueles recém-chegados
tinha que se desdobrar para conseguir ganhar algo para prover o sustento da
família. E assim foram surgindo os barbeiros, os funileiros, os pedreiros, e
tantos outros profissionais que amealhavam diárias baixíssimas a custas do suor
derramado. E quem não tinha qualquer conhecimento prévio dessas profissões, lançava
mãos de qualquer pedaço de madeira que fosse encontrando, e transformavam em estantes
rústicas e balcões rudimentares para montar um pequeno negócio, que começava
sempre com a arrumação de algumas poucas garrafas de cachaça de forma bem espaçada,
para ocupar espaço nas prateleiras, vez que o estoque ainda era mínimo. Ali
ficava a mulher para tomar conta da casa, das crianças e do paupérrimo comércio,
enquanto o chefe de família perambulava pela cidade em busca de algum serviço
temporário que lhe rendesse alguns cruzeiros.
Quando criança, conheci algumas dessas
famílias, pessoas que se desdobravam para fazer algum dinheiro e alimentar suas
famílias, na maioria das vezes, numerosas. Gente como um barbeiro que se
estabeleceu em uma casa na rua que passa atrás daquela em que morávamos. O chefe
daquela família, um cidadão meio gorducho, talvez já se aproximando dos
cinquenta anos, montou uma rústica cadeira de barbeiro na sala de visitas, e
logo apareceram os primeiros clientes, normalmente gente das redondezas. Fui um
dos seus primeiros clientes, e logo deduzi que a profissão por ele abraçada agora
devia ser uma novidade para ele, uma vez que o cliente deixava a cadeira-de-barbeiro
com alguns caminhos-de-rato espalhados pela cabeça. E quando o cliente era uma criança,
a situação se configurava ainda pior, mesmo sendo mais simples, uma vez que ele
lançava mão de uma máquina manual daquelas de raspar a cabeças dos militares, e
com ela saia arrancando o cabelo pela raiz, enquanto rebaixava o restante a
quase zero. No alto da cabeça, sobrava uma lingueta de cabelos escorridos que
desciam até a testa. E como sempre existe algo que
pode piorar uma situação que já se configura ruim, enquanto isso, ouvíamos o
som entrecortado de acordeom que o filho mais velho do barbeiro se esforçava
para fazer emitir nos seus longos e demorados ensaios. O rapaz se preparava
para a noite, quando em algum lugar da cidade ele animava festas,
especialmente nos finais de semana. Contudo, mais duro mesmo, era suportar a
voz fanhosa e fina que ele soltava no ar ao tentar imitar o famoso Luiz
Gonzaga. Aí vinha aquela vontade de deixar logo aquela cadeira de barbeiro que
nos punia com aquele suplício redobrado. Ali, até a esposa do barbeiro também atuava
na caça aos cruzeiros perdidos. Vendia bananas para os clientes do marido,
frutos adquiridos na feira da cidade, especialmente bonitas e doces bananas maçãs.
Daqueles frutos bem maduros eu gostava imensamente.
Outro cidadão que se estabeleceu
na nossa região da cidade, foi um homem já entrado na idade, magro, com uma
tosse intermitente que nos levava a crer que ele padecia de algum mal do tórax.
Homem de gestos afáveis, cabelos brancos, ralos e escorridos para a testa, óculos
na ponta do nariz, respondia pelo nome de Beato. Não sei se era um nome
verdadeiro ou apelido, mas ele parecia demais com um devoto de algum santo
milagreiro. De suas mãos saiam sapatos masculinos e femininos, cintos, celas de
montaria, bridões, chinelos de dedo, e tudo o mais que se pode fazer quando se
tem um meio de sola em mãos. Era também um exímio contador de história, e por
isso atraia algumas crianças que, como eu, residiam por ali. Já adolescente,
certo dia encontrei uma fivela bonita e graúda, igual a que os artistas usavam
naqueles tempos, enquanto mexia no baú da minha avó, e levei para o “seu” Beato
fazer um cinturão para mim. E ele caprichou na sua arte, imprimindo inclusive
alguns desenhos no couro com a ajuda de um ferro quente, que mais parecia um
ferro daqueles utilizados para ferrar animais. Gostei demais do meu cinto artístico.
Quer dizer, mais ou menos. Somente o usei uma única vez, pois o bicho exalava
um cheiro forte de sola curtida, e não teve quem o fizesse desaparecer. O jeito
foi abdicar do meu cinto, retirar a minha bonita fivela e jogar o couro fora.
Lembro-me ainda que tinha um
flandeiro também que fazia bonitas lamparinas, bacias e tantos outros artefatos
de metal. Estive uma vez na sua oficina com o meu pai, que ficava lá no início
da rua Graça Aranha, próxima à pracinha que chamávamos na época de Praça da
Mangueira, em virtude de lá existirem duas bonitas árvores dessa fruta. Fiquei
impressionado com a quantidade de artefatos produzidos por aquele funileiro. E,
pelo que pude observar, o carro chefe daquele empreendimento era mesmo a lamparina.
Por lá observei pencas de lamparinas atadas umas às outras, mercadoria que os
filhos do artista saiam vendendo pela cidade. Acredito que com a chegada dos
candeeiros e depois da energia elétrica, o seu principal produto perdeu
importância e ele teve que se mudar mais uma vez.
E assim foram tantos os recém-chegados
das distantes caatingas nordestinas que se fixaram na cidade e hoje seus
familiares desempenham todas as funções que ditam a economia local. O que foi feito
da família do barbeiro, do funileiro ou mesmo do senhor Beato, não sei dizer. É
provável que tenham continuado viagem em direção ao Tocantins, anos mais tarde.
(*)