sábado, 14 de março de 2020

O PRAZER INCONTESTÁVEL DE OBSERVAR A CHUVA CAIR MANSAMENTE

Imagem TV WEB Sertão


José Pedro Araújo
Da minha infância guardo as lembranças dos períodos chuvosos na minha aldeia. Eram chuvas que duravam, às vezes, mais que um dia. Achava aquilo tão bonito, tão acariciador, que até hoje me animo quando o período que chamamos no nordeste de inverno chega. E não estou falando de plantios, esperança de açudes cheios ou algo que o valha. Refiro-me somente à beleza de ver a chuva descendo do alto sobre os telhados ou sobre as copas das árvores. E depois de cair, escorrer mansa e intermitentemente para o solo ou se espatifar com aquele barulho conhecido sobre as lajes ou em cima do chão ressequido e sedento. Quanto calmante há nesse movimento espontâneo.

Alguém pode até pensar que me sinto assim por não morar em uma área de risco. Não faltam razão aos que pensam assim. Talvez, se não tivesse escolhido uma região fora de risco de inundação, as minhas lembranças tivessem sido alagadas e levadas pela enxurrada também. Entretanto, tive esse cuidado. Escolhi a minha casa em um local longe do perigo de enchentes e onde pudesse apreciar um dos mais belos fenômenos da natureza, que é ver a chuva se preparar e depois dar o ar da sua graça.

Naqueles idos dos sessenta, costumamos afirmar, as chuvas caiam com outra intensidade sobre o Maranhão. Especialmente na região dita Pré-amazônica. Lá, também, não existem as quatro estações definidas no ano, como temos em outras partes do país. É tão somente inverno e verão. Verão englobando quase três estações, e Inverno, o que sobra disso. Em verdade, o nosso inverno arrebanha uma parte da primavera, o verão inteiro e frações do outono. Assim mesmo, contra as normas climáticas preestabelecidas.

No nordeste brasileiro, essas duas estações são aguardadas com diferentes expectativas. No verão, especialmente na região do semiárido, o inverno é esperado ansiosamente, no mais das vezes, com extrema alegria. Há até mesmo os estudiosos que se utilizam de alguns indicativos da natureza para saber se este será bom ou não. O João de Barro está construindo a sua casa com a entrada virada para o nascente ou para o poente? Se a porta da morada ficar para o poente, vai chover muito. E as borboletas? Se voarem rapidinho, não vai chover. Os cupinzeiros estão úmidos e cheio de cupins: Então vamos ter inverno sim. São muitos os indicativos naturais utilizados pelos profetas do tempo.

Enquanto que o verão vem recheado de expectativas e lembranças doloridas. Lembranças do cinza tomando o lugar do verde; da falta de água nos riachos e cacimbas, da aflição da sede, enfim. O inverno, não. Vem com a sua carga de esperança. Será que vem água suficiente para segurar a safra de alimentos, para encher os açudes e revigorar os pastos para os animais? Será que pelo riachinho da porta de casa vai correr água abundante. E os peixinhos vão subir e se espraiar pelas vazantes em busca de alimento?

As minhas lembranças são de outra ordem. Rebatem na ansiedade que fazia o meu pai correr atrás de um profissional para reparar o telhado da nossa casa, observar se havia goteiras, substituir as telhas quebradas no teto e, depois, esperar a chuvarada cair com força e sem pena. Via de regra, as casas do interior não eram forradas, e uma goteira sobre a cama, a rede ou o paiol, era um desassossego, poderia provocar um desastre. Acordar no meio da noite com água pingando sobre as nossas cabeças era tudo o que não se almejava. Dai a necessidade de se tomarem certas providências quando o verão se aproximava do seu final. Feito isso, era só esperar. Esperar que a chuva trouxesse o cheiro de terra molhada, que a água espantasse o calor esfalfante para longe.

Aqueles que possuíam alguma condição, trocavam as telhas quebradas, enquanto os que habitavam em casas cobertas de palha de babaçu corriam atrás de material novo para recobrir suas choupanas ou simplesmente fechar os buracos nos tetos. E aí aconteciam uma coisa que ainda hoje me encanta: a solidariedade. O trabalho de revigoramento dos tetos das casas de palha, contava com um número graúdo de pessoas da comunidade. Uns se mantinham encarapitados sobre o teto das casas, enquanto outro, do chão, arremessavam as palhas para o alto. Trabalhavam em regime de mutirão, alegres, um ajudando aos outros. Trabalho árduo e sem pagamento, de graça. E com muita graça. Ao dono da casa, ficava a responsabilidade de fornecer o material para a cobertura, mas, também, o almoço e umas boas talagadas de cachaça para elevar os ânimos. Belo espetáculo de amizade e confraternização.

Quando me ocorreu de escrever este texto, fui remetido às minhas lembranças pela água que batia no telhado do alpendre da minha casa e escorria ligeira para acabar em uma estrepitosa queda sobre as lajes do chão. Sempre que começa a chover eu corro para lá e fico a observar este espetáculo da natureza que tanto me encanta. Quão bonito é observar essa cortina de água que cai do céu sobre a copa das árvores. Certa vez contei que estava em uma fazenda no semiárido piauiense, realizando um cansativo trabalho de vistoria, quando um vento forte chegou anunciando chuva iminente. Não deu tempo para chegar até o carro estacionado um pouco distante. Fiquei todo ensopado e o meu material de trabalho muito comprometido. Não reclamei, porque já esperávamos ansiosamente pelas chuvas para rebater o período seco que tostava tudo e todos.

Choveu nessa tarde quase duas horas ininterruptamente. Quando parou, concluímos o trabalho iniciado e iniciamos o nosso retorno para a cidade. No meio do caminho, um espetáculo de rara beleza: uma impressionante de sabiás e canários da terra brincava despreocupadamente sobre a relva e tomavam banho nas poças d’água que se formaram na estrada pouco transitada. Pedi ao motorista que parasse o carro e ficamos contemplando a alegria e o trinados emitidos por aqueles pássaros felizes. De onde saíram tantos assim? Pareciam crianças a brincar em um piquenique festivo.

É como me sinto vem uma chuva mansa e dadivosa sobre a cidade. Especialmente porque antecipei-me a elas, recuperei o teto da minha casa e o deixei sem goteiras. Que venham as chuvas em forma de bençãos.

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