segunda-feira, 22 de agosto de 2022

STALIN, o cão bonachão.

Imagem aleatória do Google

José Pedro Araújo(*)


Antes que o título provoque alguma dissensão, deixem-me fazer uma observação: Stálin, aqui no caso, foi o nome que o meu filho deu ao cachorro aqui de casa logo no primeiro dia que, ainda filhote, ultrapassou os muros da minha casa para aqui residir por doze anos. Acho que ele o queria violento quando se metesse em alguma briga com rivais, e não porque admirasse o ditador soviético sanguinário. O nosso Stálin era um pastor Alemão de bom sangue com as características da espécie bem visíveis na pelagem, no formato da cabeça, na cauda espessa e nas orelhas pontiagudas e eternamente eretas, e também no porte elevado e elegante. Essas características da raça já ficaram bem definidas desde que era um bebezinho buliçoso, mas ficaram mais evidentes ainda quando ele foi ganhando idade e corpo, até se tornarem definitivas na sua fase adulta. Exceção feita apenas ao seu gênio infantil irrequieto. Este transformou-se, passando ele a adotar sempre um comportamento de muita calma e prudência. Aliás, minto, o olhar também mudou. Ficou calmo e parado, de modo que, pelos olhos não se podia saber distinguir o seu estado de espírito, o seu ânimo naquele momento. Ao cravar em nós aquele olhar sem vida, parado, não demonstrava qualquer tipo de afeto, mas era só chamá-lo para perto, seja através de palavras ou com um simples gesto com as mãos, que ele logo se aproximava e nos desferia uma lambida fria e pegajosa a título de demonstração de amizade. E a forma mais acentuada de afeto que ele demonstrava era completada quando ele se deitava aos nossos pés.

Mas não se enganem. Stálin possuía a valentia e o destemor dos da sua espécie. Nunca perdeu a calma, nem foi consumido pelo medo de qualquer outro cão. Era diferente, por exemplo, do Charley, o cão de guarda do Nobel de Literatura John Steinbeck, que, conforme ele descreveu no seu livro Viajando com Charley, preferia a negociação ao confronto; especialmente por não saber brigar. E que na primeira vez que ele encontrou um canzarrão que não aceitou seus argumentos, perdeu parte de uma das orelhas. Nas palavras do autor, Charley não mordia nem uma folha de papel. O Stálin era de pouca conversa e muita ação, diferentemente.

A propósito disto, certa vez, quando conseguiu fazer uma das coisas de que mais gostava: levantar o grande ferrolho do portão de entrada da nossa casa com o focinho, empurrar as duas bandas de metal com as patas, e lançar-se para a rua rapidamente, deu de cara com uma quase matilha completa de cães, composta por uma cadela no cio e três machos que queriam tirar proveito deste seu estado de ânimo. Logo que o Stálin viu a comitiva que descia a rua, seguiu em direção a ela e deu de cara com o cão que se achava o primeiro da lista de pretendentes a lhe mostrava todos os dentes afiados da boca como cartão de visitas. Stálin agradeceu-lhe com um ataque rápido e feroz, desfechando-lhe uma mordida na parte superior do focinho e o arremessou para longe. Os outros dois cachorros que já haviam se preparado também para escorraçar o indesejável recém-chegado, ao observarem o que acontecera com o companheiro de farra que, a propósito, já descia a rua em desabalada carreira, fugiram também rua abaixo e deixaram a donzela à mercê do vencedor. O resto da história não me recordo mais. Alias, nem deu mesmo para ver, porque o novo casal dobrou apressado na esquina próxima e não fui atrás para trazer o nosso cão de volta para casa. Seria uma injustiça com o galanteador que seguiu todo glamouroso os passos da nova pretendida.

Quem conhece o procedimento dos cães, sabe que eles dificilmente largam a cola da cadela em cio, mesmo que um fortão os ponha para correr. E isso aconteceu com aqueles três covardões. Logo que o novo casal virou a esquina, os três voltaram atrás e seguiram de longe o casal que havia se formado recentemente. Talvez, esperando a hora em que Stálin resolvesse deixar a nova companheira e voltar para casa. E foi exatamente isso o que aconteceu. Bem mais tarde, com uma fome de leão, Stálin arranhou o portão com as suas unhas afiadas para pedir que fosse aberto. E ao permitir que ele entrasse, observei que estava com a pele intacta e sem arranhões. Talvez, apenas muito suado. E que ao se ver novamente em casa, correu para a sua vasilha de ração e comeu como um desesperado. Estava faminto.

Para dizer a verdade, foi essa a primeira vez que observei essa face destemida do nosso companheiro vigilante. Fiquei admirado com a sua postura calma e a sua rápida estratégia de ataque que pôs seus adversários em fuga. E isso só se acentuou com a idade. Assim como a sua postura de namorador.

A propósito disto, um amigo dos nossos filhos, vizinho de muro, como dizemos por aqui do vizinho mais próximo, ganhou de presente do pai uma cadelinha bem mestiçada, mas com um forte sangue de pastor Alemão. E negociou logo com um dos meus filhos a realização do cruzamento com o Stálin, logo que a cachorrinha atingisse o primeiro cio. Meu filho, tirando partido disso, exigiu que queria uma participação na venda dos filhotes. E assim foi fechado o acordo. Acordo feito pela lei do fio do bigode adolescente, mas cumprido à risca. Dava gosto ver a alegria dos garotos quando o parceiro veio anunciar que a cadelinha estava naqueles dias. Os inexperientes garotos entraram em estado de nervosismo completo, e logo trataram de levar o Stálin para o encontro tão ansiado. Era fim de tarde, e a ideia era deixar o nosso cão passar a noite no quintal do vizinho. Encontro oficializado, voltaram eles para casa e ficaram impacientes pelo resultado. Resultado que só veio no dia seguinte. Logo cedo o garoto vizinho trouxe o nosso Stálin pela corrente. Vinham desanimados, o condutor e o conduzido. Stálin logo que o entrou em casa já se recolheu ao seu canil e caiu em sono profundo, estava exausto e nem quis saber da comida. Se eu soubesse interpretar o olhar do nosso cão, diria até que ele estava um pouco desapontado e um tanto decepcionado consigo mesmo.

Quanto aos garotos, ficaram muito tristes com o resultado daquele desencontro na tarde noite anterior: nada havia acontecido.

Depois soube. A cachorrinha de primeiro cio não permitiu de modo algum o assédio do nosso cão. E passou o tempo todo a aplicar-lhe dentadas quando se aproximava, afastando-o para longe dela. E ele, cavalheiro como era – aliás, outra de suas facetas que eu não conhecia – deixou-se machucar sem promover nenhuma reação contrária. A não ser a de deixá-la em paz por alguns momentos. Mas depois, voltava a assediá-la. Contudo, a reação dela foi sempre a mesma durante todo o tempo.

Como o Stálin dormiu o resto da manhã quase toda – por certo havia passado uma noite e tanto em claro – somente na tarde seguinte, e nos dias subsequentes também, o nosso cão foi levado até a sua pretendida. E logo nesse segundo dia a coisa já aconteceu de modo diferente. Não sei com que tipo de conversa nova Stálin conseguiu convencer a sua namorada, ou até mesmo se a própria havia meditado bem na ausência do pretendente e chegado a conclusão de que havia feito uma grande besteira em ter procedido daquela maneira, o certo que o Stálin voltou para casa no dia seguinte e logo voltou a dormir profundamente a manhã inteira. Entretanto, dava para ver que aquele sono era diferente. Dormia relaxadamente e suspirava feliz e profundamente enquanto soltava alguns grunhidinhos de felicidade.

Foram alguns dias corridos nessa mesma rotina, até que um dia Pandinha – esse era o nome da cachorrinha do vizinho - apareceu grávida. Foi um grande momento de comemoração. Desta vez, pelos meninos. E meses depois veio o resultado da gravidez da Pandinha: uma bela ninhada de cachorrinhos chorões e famintos.

A felicidade dos meninos era diferente da dos pais dos petzinhos. E até certo ponto, era uma alegria injusta com os pais dos filhotes. Os garotos só pensavam na venda dos pequenos que, diga-se, já estava assegurada de antemão, desde que a gravidez de Pandinha se confirmara. E assim se deu mais de uma vez. A única diferença, era que o casal já estava bem afinado e nosso Stálin não voltava mais todo mordido para casa.

Grande amigo, o Stálin. Deixou saudades!

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.


4 comentários:

  1. Posicionamento político a parte, realmente o nome foi escolhido apenas para incentivar o gosto pela violência, algo que felizmente não se concretizou. Deixou saudades.

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    1. Verdade, meu filho. Stálin era um bonachão, e a sua postura altiva afastava possíveis problemas com a raça.

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  2. Sempre um deleite as leituras dos textos escritos por José Pedro, quaisquer que sejam os assuntos.

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    1. Obrigado, mais uma vez, meu amigo. também sou admirador perpétuo do seu trabalho como compositor e cronista. O blog se ressente da ausência dos seus textos!

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