terça-feira, 10 de dezembro de 2024

O JUDICIÁRIO DE JOELHOS

 

Mera ilustração retirada do Google

  

 

José Pedro Araújo (*)

Devo esclarecer que não trato aqui dos problemas e discussões que tomam conta do país a respeito da lisura e dos feitos da magistratura nacional. Refiro-me aqui, em vez disto, a um fato verídico acontecido no meu velho e querido Curador. Fato, aliás, que ouvi de fonte bastante confiável. Entretanto, se algum exagero há não me cabe culpa nesta história. Estou vendendo o peixe pelo mesmo valor que o comprei. E como não me foi pedido segredo sobre o acontecido, repasso aos leitores tudo o que ouvi. Procuro, apenas e tão somente, ordenar a história de forma a torná-la mais palatável, entendível.
Afiançou-me a minha honestíssima fonte, que certo dia se encontrava em audiência com o meritíssimo Juiz da Comarca de Presidente Dutra, que naquele dia despachava preguiçosamente na sua residência, situada à Praça São Sebastião, quando um fato pra lá de inusitado aconteceu. Naquele tempo, é bom que se diga, a dita Praça, ou melhor, Largo, ainda não possuía uma pedra sequer de calçamento, como de resto toda a cidade. As ruas ficavam esburacadas no período das chuvas e, logo que vinha o sol, a poeira cobria a todos com um pó avermelhado que se mantinha em constante suspensão, dando ao ambiente um aspecto triste e lúgubre.


Naquele dia, na Praça mencionada, o capim-de-burro crescia viçoso, atraindo alguns animais vadios que transitavam livres e desimpedidos pelas ruas da pacata cidade, aprontando todo tipo de estripulia, situação tão peculiar àqueles irracionais. Pois bem. Naquela tarde modorrenta, despachava a maior autoridade judiciária do município na sala da sua casa, situada ao lado do Convento das Irmãs, enquanto alguns quadrúpedes aparavam alegremente a grama que crescia livre no Largo ainda à espera de uma ação da prefeitura. Aboletado em uma cadeira situada atrás de uma pesada mesa, local costumeiramente utilizado para as principais refeições diárias, conversava o magistrado despreocupadamente com um visitante. Era, portanto, o meu confidente quem se achava sentado no lado oposto ao togado e, de costas para um corredor estreito e comprido que dava para a porta de entrada, e ouvia-o atentamente.

Naquele instante, trajava sua excelência um vistoso pijama de verticais listras vermelhas e azuis, enquanto desfiava a sua agradável e bem articulada verve. Estava ele particularmente animado naquela tarde que se encaminhava para o fim. De repente, um barulho ensurdecedor chegou até os ouvidos dos dois homens, interrompendo aquele agradável e amigável colóquio. E, em um instante apenas, já era possível identificar um tropel acelerado penetrando casa adentro. Aquele ambiente fechado agia como um amplificador e elevava às alturas o barulho que aumentava de intensidade à medida que o tropel se aproximava da sala em que os homens conversavam.

Aqui abro um parêntese para lembrar que naquelas inauditas eras, a insegurança e a violência já andavam juntas e de mãos dadas, intranquilizando, sobretudo, as autoridades que, vez por outra, viam-se confrontadas com o cano de alguma arma de fogo empunhada por um truculento pistoleiro de aluguel. Não era para causar espanto, portanto, o pavor que tomou conta do ambiente naquele instante. Contudo, tratava-se de outra coisa. Mesmo assim, um misto de surpresa e terror, estampou-se no semblante daqueles homens no instante em que um casal de jumentos irrompeu furiosamente pela sala, deixando tempo suficiente apenas para o interlocutor do juiz jogar-se de lado e fugir do atropelamento iminente.

E o que aconteceu a seguir, abalroou literalmente a autoridade do magistrado encarregado pela aplicação e o respeito às leis do nosso país naquele perdido rincão. Munida da sua condição de animal irracional, enquanto procurava escapar do assédio incontrolável de um jumento endoidecido, uma pobre jumentinha adentrou ao primeiro local que considerou mais seguro: a casa do nosso juiz, àquela hora com a porta de entrada descuidadamente escancarada.
Em louca disparada o animal penetrou pelo comprido corredor até que se viu impedida de continuar fugindo do seu algoz, pois havia abalroado a mesa de reunião e imprensando o desafortunado juiz contra a parede. Estava confirmado, mais uma vez, animais irracionais não respeitam a lei mesmo!


A cena que se seguiu foi apavorante para aqueles homens. Enquanto o macho dava vazão à sua incontrolável e bestial tara, os dois homens se achavam em posição desconfortável e humilhante. Caído de lado, aos pés da dupla invasora, que naquele momento consumava o ato instintivo e animalesco, o visitante observou que o Magistrado se achava em posição muito pior do que a sua. Imprensado entre a mesa e a parede, o Juiz era obrigado a receber no rosto uma baba gosmenta que a vitimada deixava escorrer pela boca. Era possível jurar mesmo que dava para ele sentir o ar quente e o cheiro de ervas que saia pelas narinas do animal, tão perto se achava o seu rosto do da seviciada.


Caos instalado, com muito custo o visitante conseguiu se levantar e logo cuidou de agir para retirar o magistrado daquela situação constrangedora. E, diligente, num primeiro momento tentou empurrar os animais usando apenas a força dos braços. Não conseguiu sucesso. Os bichos nem se mexeram. Apelando depois para a ignorância, deferiu-lhes alguns chutes na ilharga. Outra vez os bichos nem se deram conta do que ele lhes fazia. Ai já era demais! O pobre magistrado precisava ser retirado daquele estado de completa humilhação! Então, empunhando uma pesada cadeira, meu confidente voltou a espancar ainda outras tantas vezes o animal cobridor, mais ele, novamente, não arredou do lugar, para desespero seu. Não havia força bruta que interrompesse aquele ato carnal.

 
Somente quando deu por concluído o libidinoso entrevero, o estuprador desmontou da pobrezinha e tomou o caminho da saída como se nada de grave houvesse acontecido. A fêmea o seguiu tranquilamente, parecia não ter acontecido nada com ela também, e era vida que seguia. Ao juiz, que estava com a sua autoridade vilipendiada e, literalmente, pisoteada, só restou vociferar, soltando palavras ácidas contra aquele lugar mergulhado em tão profundo atraso a ponto de submeter um dos três poderes da república a um vexame tão grande. Descabelado, nosso legitimo representante do judiciário gesticulava furiosamente enquanto apalpava o próprio corpo para verificar se algum órgão ou osso se achava rompido ou fora do lugar. Menos mal. Nada quebrado ou distendido.


Literalmente, havia o soberbo Juiz apenas se ajoelhado ante uma força maior e descontrolada.  

(Texto publicado anteriormente em 25/02/2015. Ampliado e corrigido).

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas. 

    

 

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