sábado, 3 de março de 2018

O PADRE E A INVENÇÃO DE TERESINA

Capela de N. S. do Amparo, Poti Velho - Fotografia do autor


Chico Acoram Araújo

                O jovem padre Mamede Antônio de Lima, recém-ordenado no Seminário de Olinda, em Pernambuco, teve a sua carreira sacerdotal iniciada na paróquia de Sobral onde permaneceu por pouco tempo vez que fora nomeado para ocupar a “vigaria colada” da Freguesia de N.S. do Amparo da Vila do Poti, província do Piauí e Bispado do Maranhão. Nascido em Icó(CE), ainda muito criança seus pais, o modesto alfaiate Mariano Antônio de Lima e d. Thereza Maria de Lima, decidiram encaminhá-lo para Sobral onde fez seus primeiros estudos. É provável que o Padre Mamede tenha chegado à Vila do Poti logo após ser ordenado, em 1842, uma vez que pouco permaneceu residindo em Sobral. Segundo o Dicionário Bio-Bibliográphico Cearense – Barão de Studart, obra do Dr. Guilherme de Studart, Mamede foi contemporâneo dos importantes reverendos e políticos cearenses Antônio de Souza Neves e José Beviláqua, todos ordenados no Seminário de Olinda. Padre Mamede faleceu em outubro de 1877 em Teresina. Contava ele aproximadamente 60 anos de idade.
                Mas antes de se procurar conhecer a vida desse valoroso religioso e grande colaborador do Presidente da Província do Piauí, Conselheiro José Antônio Saraiva, na construção da nova capital na Chapada do Corisco, necessário se faz descrever, de forma resumida, a história da invenção de Teresina e seus antecedentes históricos.
Para começar, onde ficava essa freguesia de N.S. do Amparo da Vila do Poti? Consoante livro TERESINA 160 ANOS, organizado pelo ilustre historiador e cronista Fonseca Neto, o antigo Arraial da Barra do Poti localizava-se na região onde fazem barra os rios Parnaíba e Poti. No local já se verificava a presença de “brancos” no final do século XVII que, de forma gradativa, iam povoando o lugar e exterminando ou expulsando os nativos que antes os  habitava, os índios Tremembé, da tribo Poti.
                Fonseca relata que o Piauí só se transformou em capitania no ano de 1718, sem, contudo, ter governo próprio, e na época tinha a sua jurisdição subordinada ao Maranhão. Foi nessa condição que, em outubro de 1728, o Governador e Capitão General do Maranhão, João Maia da Gama, visitou o Piauí. Tinha como destino a vila da Mocha (Oeiras). O governador atravessou o rio Parnaíba no local onde o Poti faz barra, e ficou impressionado com o que viu, pois anotou em seu diário de viagem:

“Aquarteleime na beira do Rio Parnaiba e junto da barra do Rio Poty que aqui entra e dezagoa neste grande e famozo Rio Parnaíba e entre hum, e com terras singullares para plantas de toda casta e para canas, e com muita abundancia de peixe, asim do Rio Parnaiba, como dito Rio Poty, e com muita cana e achei ser sitio mto util, papâs comodo e muito conveniente para hua povoação e precisamente se deve levantar alli hua Igreja e erigir hum curato porque pela Parnahiba abaixo e asima de hua parte e outra tem mtª fazenda que todas ficão distantes das mais freguesias, ou curatos”.

Já com relação à Mocha, não foi tão otimista, para dizer o mínimo:
“Depois de sair duas vezes a cavallo com dito Menistro, e Cap.ªmor, e alguas pessoas de governança a ver os redores da dita villa todos agrestes e sem terras e sem madeiras e falta total de peixe lhe porpus, não a extinção da dita villa mas a Irecção de outra na beira do Parnahiba ahonde faz barra o Rio Poty em que ja falei na vigesima quando cheguei aquelle sitio e na marcha que fis delle para esta villa observei as m.tªs terras proprias de mantimentos e contidade de madeiras que hâ na beirada do Parnahiba ... e pelo Rio Poty asima”.
                O emérito historiador acima citado é peremptório em afirmar que “é a primeira notícia capaz de explicar a invenção de Teresina na mesopotâmia Parnaíba-Poti”. Assim, pode-se afirmar que Maia da Gama foi a primeira autoridade a ter a ideia de construir uma cidade na beira do rio Parnaíba, fato que veio a acontecer apenas 124 anos depois da sua passagem por terras piauienses.
                 A Barra do Poti passou por um demorado crescimento. A região chegou ao final do século XIX com uma população de algumas centenas de pessoas e com isto as famílias residentes no local sentiram a necessidade de erigir uma capela, o que foi concretizada ainda nos anos 1796 a 1797, em homenagem a N.S. do Amparo. Mas somente em 1827, o antigo Arraial da Barra do Poti foi elevado à categoria de freguesia por Decreto assinado por D. Pedro I, imperador do Brasil. Obtinha assim foro eclesiástico e civil. E não parou mais no tempo.
Pouco depois, em 1832, o imperador assinava um novo decreto transformando a freguesia em Vila-Município do Poti, sendo, no entanto, instalado oficialmente em 21 de novembro de 1833. A sua sede, contudo, não demoraria muito tempo no seu local de origem. Por estava localizada em uma região muito baixa e exposta a inundações frequentes e, por isso mesmo, franqueada aos males palustres e outras epidemias. Em 1852 a sede foi transferida para um local mais elevado e passou a denominar-se Vila Nova do Poti. Depois, Teresina). O novo local escolhido era mais adequado, não inundável, apesar de se localizar ainda à margem do rio Parnaíba, região conhecida como Chapada do Corisco.  Até este ponto, a história da capital é bem conhecida, o que não são de domínio público foram as dificuldades para se prover a mudança de local.
Não foi tão fácil, houve fortes resistências por parte de grande parte da população da região. E aí que reside a importância das ações do Padre Mamede de Lima. Convencido das vantagens da mudança, o reverendo partiu para um trabalho solitário de convencimento das famílias reticentes e refratárias à transferência, mostrando-lhes as vantagens de residir no novo local, distante apenas uma légua e meia de onde residiam. Tinha como subsídio à sua mensagem o incentivo da administração provincial que se dispunha a doar um terreno a cada família para a construção da nova moradia. O êxito do trabalho do Padre foi imediato. A partir da nova igreja em construção, dezenas de quarteirões bem planejados e com área de 40 por 40 braças, foram distribuídos à população, organizados a partir do Altar-Mor do novo templo, que passou a ser considerado o Marco Zero de Teresina.  “Saraiva jamais teria concretizado a transferência da capital sem a ajuda desse padre, seu aliado político e amigo do povo”, ressalta Fonseca.
O nobre historiador acrescenta ainda que Mamede foi um dos principais protagonistas da criação de Teresina, e injustamente “esquecido pelos cronistas e pelos que cantaram a fundação da nova capital do Piauí”. Ele, como grande incentivador da mudança, foi também um dos primeiros habitantes a se transferir para Teresina, passando a morar em uma casa que mandou levantar em um dos quarteirões próximos à igreja de N. S. do Amparo, em local que tempos depois ficou conhecido como Rua da Glória (atual Rua Lisandro Nogueira). Naquela oportunidade, levou também para a nova cidade o Orago da Matriz pertencente à Vila do Poti. Depois que Padre Mamede faleceu, a sua casa passou a ser sede do antigo Centro Proletário.
O Padre Mamede, figura muito popular na Vila do Poti, além de desenvolver suas atividades religiosas teve uma atuação importante na vida política local, participando diretamente na administração do município, e também exercendo, depois, o mandato de deputado provincial. Como tal, foi um grande amigo e aliado de José Antônio Saraiva, Presidente da Província do Piauí, na transferência da capital piauiense para a nova sede municipal do Poti. Padre Mamede celebrou a primeira missa que aconteceu no local onde seria erigida a igreja de N. S. do Amparo, da qual, em seu redor, foram paulatinamente sendo construídas as ruas, casas, praças e prédios públicos da nova cidade que se formava.
No livro RUA DA GLÓRIA, de autoria do teresinense Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, recentemente publicado, menciona-se que houve uma trama clerical no Brasil, por ocasião da independência, uma vez que, nesse tempo, a ação política da Maçonaria foi acentuada, havendo até mesmo padres filiados às lojas. O ilustre autor registra “que a criação da loja maçônica logo no início da construção de Teresina deve estar ligada a ação de Mamede Antônio de Lima, primeiro vigário de N. S. do Amparo”. Carlos Monteiro, cita ainda o caso de conflito envolvendo Padre Mamede e o Presidente da Província do Piauí, o Barão de Loreto, Franklin Américo de Menezes Doria, (25/05/1864 a 03/08/1866). O cronista da Rua da Glória comenta entre outros fatos históricos a atuação da Maçonaria em Teresina logo após sua criação, inclusive mencionando a existência de um antigo templo maçônico (A Loja Cap. Caridade II) situada na Rua Bela, hoje Teodoro Pacheco.
O escritor Wilson Carvalho Gonçalves comenta em seu DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO ILUSTRADO, pagina 227, que o Padre Antônio de Lima era um homem corajoso, destemido e muito amigo do povo. Diz também que o religioso faleceu em Teresina no final do século XIX, e que foi sepultado na igreja de Nossa Senhora do Amparo.
Por sua vez, Antônio Lemos, conhecido como “Semana”, conceituado jornalista piauiense que viveu no século passado (faleceu em 24/11/1998, aos 78 anos de idade), publicou alguns escritos sobre a vida do Padre Mamede Antônio de Lima no Jornal “ A Luta”, dirigido por A. Tito Filho, no dia 23 de agosto de 1952, quando das comemorações de 1º Centenário de Teresina. No pequeno texto biográfico ele salienta que o trabalho por ele publicado foi feito todo de memória. Em 1977, o referido texto jornalístico transformou-se em livro. A seguir, transcrevo, resumidamente, algumas de suas anotações relacionadas com a vida do primeiro vigário da Chapada do Corisco.
Segundo Lemos, não se sabe se todos os padres de Teresina tinham o costume de usar trajes civis na época. No entanto, é verdadeiro que o Padre Mamede, quando fora do seu mister sacerdotal, trajava roupas civis. Por esse tempo, era comum as pessoas usarem sobrecasaca e chapéu alto (chapéu-de-pelo). E ele assim se trajava também nas ocasiões já citadas. Esse missionário de Deus era muito destemido também. Nos momentos de conflitos, não vacilava em enfrentar situações perigosas. Foi o que ocorreu certa noite em que o religioso socorreu o poeta e jornalista Licurgo Paiva, ocasião em que este estava sendo açoitado com pedaços de talos verdes de palmeira de babaçu por dois capangas a mando do Presidente da Província, Pedro Afonso Ferreira. O jornalista vinha criticando severamente a sua administração e por isto sofria a sua repulsa. Isso aconteceu em frente à casa do Padre Mamede, altas horas da noite. O vigário, que já se encontrava com roupa de pijama, pronto para dormir, saltou por uma das janelas, e com um revólver em punho disparou várias vezes contra os dois agressores do jornalista. Não se soube se algum dos capangas chegou a ser alvejado. Sabe-se apenas que se tratavam, conforme foi espalhado no dia seguinte, de dois soldados da polícia militar disfarçados.  
Mas o conflito mais grave envolvendo Mamede Lima se deu por ocasião de umas eleições. Para garantir a realização do pleito, decidiram-se instalar as mesas eleitorais dentro da igreja do Amparo. O clima daquelas eleições era tenso. Quando iniciaram os trabalhos para formação das mesas, surgiu um mal-entendido entre o Padre Mamede e o Juiz de Paz, Dr. Deolindo Mendes da Silva Moura. Este último, sem querer, havia tocado no braço do padre, que por sua vez entendeu como uma provocação. Os capangas do padre, que se encontravam nas dependências ao lado, todos armados de achas de lenha, partiram em socorro ao religioso. A confusão se fez dentro da grande nave da igreja. Macedinho, escrivão que estava em uma das mesas, gritou: “haja paz, que haja paz”. Os “cabras” do padre entenderam como “haja pau”. Desferiram pauladas “a torto e a direito”. O pobre Macedinho, segundo Lemos, levou a pior. Morreu em decorrência de uma violenta cacetada na cabeça.
Lemos conta ainda o caso em que Padre Mamede, certo dia do mês mariano, celebrava missa na igreja do Amparo quando um dos músicos que estavam no Coro começou a fazer balbúrdia, instigado pelas muitas doses de pinga ingeridas horas antes do evento religioso. O padre pediu silêncio por mais de uma vez, mas não foi atendido. Mamede, muito aborrecido, dirigiu-se ao local onde estavam os músicos, tomou o trombone das mãos do bêbado e, em seguida, com esse instrumento metálico, aplicou várias pancadas na cabeça do inoportuno auxiliar; depois, jogou o infeliz no olho da rua.
É sabido que Mamede também era apreciador contumaz de uma boa cachaça, a “branquinha”. Comumente, após chegar a casa, deitava-se em sua surrada rede armada na varanda, bem de frente ao corredor, colocava a garrafa de cachaça e um copo em cima de uma pequena mesa próxima e ao alcance do braço, e dava umas boas talagadas da “água que passarinho não bebe”. Era nesse sagrado lugar de descanso do incansável guerreiro de Deus e do povo, que o padre recebia as pessoas que iam visitá-lo para tratar de diversos assuntos, seja da igreja, seja de negócios ou de política.
Assim como seu conterrâneo e contemporâneo, Padre José Beviláqua, Deputado Provincial do Ceará e pai do famoso jurista Clóvis Beviláqua e também do General José Beviláqua, Mamede Antônio de Lima não comungava muito de um dos preceitos da igreja: a castidade. Conforme anotação do jornalista Lemos, o padre convivia em sua casa com uma mulata chamada Raimunda, que se tornara sua amante e lhe dera um filho ao qual foi dado o nome de Sebastião.
Em que pese a grande importância desse valoroso Padre Mamede Lima para a fundação de Teresina, pouco se conhece sobre sua biografia. O atual pároco da Matriz de N.S. do Amparo corrobora que, realmente, são escassos os escritos biográficos de Mamede, acrescentando não existir nenhum vestígio de seu túmulo no interior da igreja, não obstante existirem relatos de que aquele religioso tenha sido sepultado nesse vetusto templo católico.  
“É preciso estudar e conhecer-se mais a vida de padre Mamede Antônio de Lima, inclusive as razões por que foi ele alijado, até hoje, do horizonte dos intérpretes da história”, conclui o historiador Fonseca Neto no capítulo dedicado ao primeiro pároco de Teresina.

3 comentários:

  1. Chico Acoram Araújo3 de março de 2018 às 12:31

    Dr. Araújo,
    Agradeço ao amigo pela revisão e correções do texto. A foto de autoria do grande cronista do Curador deu uma ilustração perfeita à história do Padre e a Invenção de Teresina. Mais uma vez, muito obrigado pela publicação dessa crônica no seu conceituado Folhas Avulsas.

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  2. Mais um resgate de nossa história, com muita justiça, realizado por nosso amigo Acoram. A biografia do Pe. Mamede deve ser mais pesquisada por nossos historiadores. Uma povo sem história é um povo sem origem. Bem descrita a mudança da sede de Teresina, com um grande adjuntório desse Padre de garra. Era um Pe. polivalente. Topava qualquer parada. PARABÉNS ACORAM. A vida não é pra quem/ para em qualquer topada Entretanto para quem/ topa qualquer parada/ Assim, disse Bob Marley/ de forma muita acertada (Fco. ALmeida).

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    1. Chico Acoram Araújo4 de março de 2018 às 12:55

      Obrigado pelo incentivo, Dr. Almeida. Espero escrever outros textos do gênero.

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