domingo, 24 de fevereiro de 2019

CARTA DE FREI ADRIANO DE ZÂNICA AO PRELADO PROVINCIAL - Apontamentos para a história de Tuntum



Por Jean Carlos Gonçalves*

Em setembro de 2005, por ocasião dos cinquenta anos de aniversário da emancipação do município de Tuntum, circulou em nossa cidade, a edição nº 3 do jornal “GAZETINHA DE TUNTUM”, cuja responsabilidade editorial fora do “Conselho de Mobilização Social de Tuntum”, uma espécie de instituição criada por militantes do grupo político opositor ao governo de Cleomar Carvalho Cunha, o Tema, que na época exercia seu terceiro mandato. 
Esse impresso, de apenas quatro páginas, trouxe em destaque um importantíssimo e esclarecedor artigo, assinado pelos ilustres tuntuenses Geovanny Alves e João Almy Alves, ambos pertencentes a uma das famílias pioneiras na ocupação de Tuntum no início do século XX.
No texto intitulado “Tuntum: Cinquenta anos de emancipação política”, os autores apresentaram um histórico do município, remontando ao início do século XIX, contextualizado com o processo de ocupação do sul do Maranhão, a partir da frente de expansão do povoamento ocorrida por conta da pecuária e sua influência para nossa constituição. No mesmo artigo, uma longa citação me deixou maravilhado. Pude pela primeira vez, tomar conhecimento de um valiosíssimo documento histórico que faz referência ao lugar Tuntum, citando, inclusive, localidades que mais tarde fariam parte do nosso município: “VIAGEM DE FREI ADRIANO DE SÃO LUÍS A BARRA DO CORDA”. Trata-se de uma Carta em que o Fr. Adriano de Zânica remete ao Prelado Provincial, Frei Luigi de Guanzate, em São Luís-MA, após sua épica viagem pelos sertões e chegada a cidade de Barra do Corda. Carta essa, assinada em 28 de janeiro de 1931.
Uma vez sabendo da existência do documento, tratei de ir até os arquivos da biblioteca da Igreja do Carmo na Capital. Lá, recebido pelo Fr. Ruggero Beltrami, responsável pelo acervo, me deparei com a epistola que, surpreendentemente conta 42 páginas.
Neste mês de janeiro, em que o documento histórico completa 86 anos, reproduzo aqui um trecho que acredito deixará muitos maravilhados, especialmente aos amantes de nossa história, estudantes, professores, pesquisadores e a todos que se sentem pertencentes a uma identidade comum. Além de tudo acima mencionado, o documento faz uma bela descrição da floresta exuberante da época, com sua fauna e flora, entre outros aspectos que discorreremos noutra oportunidade. Assim sendo, degustem!
Escrevo-lhe com entusiasmo de voluntário de guerra que do fronte escreve a seu próprio pai... não das linhas da retaguarda, mas dos lugares de comando, da primeira linha de fogo, da trincheira!!!
Saída de São Luis, 15.01.1931, às 6h15min; chegada à Mata do Nascimento em 21.01.1931, às 17h. Quando o motorista recebeu notícias alarmantes sobre o movimento revolucionário.
Percurso de São Luís-Codó, Trem; Codó-Mata do Nascimento (hoje Dom Pedro), caminhão: Mata do Nascimento-Barra do Corda, lombo de burro.
Em 25.01.31, sem incidentes, chegamos ao Curador, primeiro povoado do município de Barra do Corda; o lugarejo parecia ter sido tomado de assalto. Os habitantes, tomados de forte terror, trancavam-se em suas casinhas, fechando também as janelas, as luzes apagadas. A rua estava deserta, somente aqui e acolá grupos de revolucionários armados estão de sentinela.
Saída do Curador às 17h do dia 26.01.31, por uma vereda que encurtava a distância para a Barra do Corda, em 10 léguas, parando na primeira palhoça perto do povoado Canafístula (hoje pertence a Tuntum), no qual seis anos antes faleceu Frei Carmelo de Bréscia.
Em 27.01.31, enquanto repousávamos chegaram os revolucionários, procurando requisitar as armas dos moradores da Vila Tuntum.
Eu já virara um cavaleiro abalizado, precedia a comitiva, contemplando com toda a comodidade as belezas da floresta.
A floresta! Oh! A floresta é sempre bela, sempre atraente, poética! Tirar fotografias é tempo perdido. Só um filme poderia dar uma idéia; mesmo assim uma idéia simples, muito descolorida e imperfeita.
Naquele dia, admirando tão de perto as belezas de uma natureza totalmente nova para mim e tão atraente, não me parecia verdade encontar-me na floresta tropical do Brasil, ainda quase virgem. Entretanto, estava ali, montado num cavalo, qual um caçador atravessando uma selva inóspita de árvores gigantescas enroladas de cipós que como corda revestiam ramos formando um amaranhado confuso e fechado. Logo mais um capão de mata verdadeira e impenetrável de buritis onde lentamente corre um riacho, morada predileta de terríveis surucucus e de barulhentas guaribas.
A todo passo sempre topo em algo novo que atrai minha atenção: musas maravilhosas em forma de grandes leques; enormes cactos; palmeiras das mais variadas qualidades, anajá, babaçu, buritirana, buriti, kitara, catolé, marajá, açaí, etc. Uma mais bela do que a outra. Frutos silvestres que o viajante pode saborear, naturalmente com prudência e moderação, especialmente abacate, aguapé, pitanga, pequi, etc. Ninhos de aves e abelhas grudadas nos ramos nas formas mais originais. Habitações incomuns de formigas saúvas. Cupins capazes de destruir numa só noite árvores inteiras deixando-as despidas de folhas e casca.
E as aves? As aves são numerosas e maravilhosas. Encontram-se de todos os tipos, dos grandes galináceos aos colibris. São eles que nos cantos e seus diminutos vôos dão vida à floresta, especialmente as várias espécies de papagaios com seus gritos desagradáveis.
Vemo-los esvoaçar aqui e acolá a breves distâncias quase querendo suas belas plumagens de cores vivas; enquanto outras ficam nos galhos imóveis observando a nossa passagem. Nossos caçadores e todos os apaixonados ornitólogos encontrariam com que se divertir fartamente.
Mamíferos não se encontram de dia; eles deixam suas tocas ao escurecer, começando assim, a sua atividade durante a noite toda. Só de longe pude observar algum pequeno roedor em fuga e alguns sauros maiores, com uma crista ao longo da espinha dorsal.
Serpentes há de todas as espécies, sobretudo a terrível cascavel. Não é para desejar o encontro com esse tipo de animal peçonhento e, graças a Deus por mais que olhasse cuidadosamente, nada reparei a não ser um rastro bem marcado na relva por onde pouco antes passara um réptil.
Outra coisa que pudemos admirar nessa travessia é a sucessão gradual de três estações: inverno, primavera e verão. Num breve percurso de alguns quilômetros vimos primeiramente a floresta despojada completamente e folhas sem encontrarmos sequer um fio verde. Apesar do calor estafante parece-nos estar atravessando um bosque das nossas regiões no mais intenso inverno. Sendo que esse trecho de mata tem o chão muito enxuto, naturalmente todos os vegetais durante o período das secas estão em completo repouso.
Mais adiante temos a impressão de estar no fim de março, no tempo em que as árvores estão todas floridas, enquanto as frutíferas começam a fazer despontar seus primeiros frutos. Depois vem maio com o perfume agradável da primavera, até encontrarmos na selva verde-escuro.
Esse suceder de estações na vegetação era causado pela chuva que caíra por acaso pouco antes. Geralmente no verão é difícil que não chova, ao passo que no inverno, dito assim porque é o período das chuvas, é raro que passe um dia sem que não chova demoradamente. Neste período a vegetação é sobejamente luxuriante. À noite, às 19h chegamos ao povoado Cipó, com suas choupanas”. (ZÂNICA, 1931).

(*)Jean Carlos Gonçalves é professor, historiador e cronista.

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