segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

VIDA DE AGRÔNOMO(4) – PFA E A CONFRONTAÇÃO COM O PERIGO




José Pedro Araújo

Existe nos tempos que correm uma certa polêmica sobre a reforma administrativa que o governo planeja apresentar por estes dias no congresso nacional. Dentre os pontos que podem causar um estrago significativo para os servidores públicos está a que trata sobre as carreiras típicas de estado. Há quem diga que muitos cargos rotulados com este título não deveriam estar ali, como já se ouviu de “muitos entendidos”. Contudo, não à toa, o enquadramento de uma carreira nessa categoria vem a reboque das grandes responsabilidades ou perigos a que os profissionais ocupantes destes cargos são submetidos. E por isso mesmo, precisam de maior proteção estatal contra poderosos quando se veem na mira delas.

É o caso da carreira de Perito Federal Agrário(um eterno quase carreira típica) – e que nos interessa aqui nesse texto – que juntamente com os Fiscais Federais Agropecuários, Fiscais da Receita, ou mesmo os Policiais Federais, que precisam da proteção do estado contra a sanha dos mais poderosos para poderem exercer a sua missão. O Perito Federal Agrário, por exemplo, é um dos que sofrem tremendas pressões quando tem que executar a sua missão nas desapropriações de imóveis rurais pertencentes a grandes e poderosos latifundiários, via de regra também políticos ou protegidos por alguns destes.  Nestes instantes, seus cargos estão em iminente perigo, sob ameaça de demissão, ou até mesmo coisa pior. Ocupados por Engenheiros Agrônomos concursados, os peritos são aqueles profissionais que assinam os laudos propondo a desapropriação de imóvel que não está em consonância com a sua função social, requisito primordial previsto na Constituição Federal em relação à exploração de propriedades rurais.

O caso que relato aqui, demonstra a necessidade desses profissionais estarem protegidos contra o insidioso e perverso ataque de poderosos contra a sua manutenção no emprego, e até mesmo, da sua própria vida. O caso se deu assim:

Certa vez recebi a determinação do meu chefe imediato de chefiar uma equipe de vistoria para realizar trabalhos em imóvel rural localizado na região do Médio-Parnaíba. Fiquei sabendo de imediato, que o caso era grave, por se tratar de uma terra pertencente a uma família poderosa que reagia fortemente ao propósito do governo de dar nova destinação ao imóvel em questão. Mais que isto. Seu proprietário já havia barrado a entrada de técnicos do INCRA na fazenda e impedido, com isto, o seu trabalho. Quando fui escolhido para desempenhar a missão, alguns colegas me alertaram que isto poderia ser uma vingança pessoal do meu chefe imediato, com quem tinha problemas de relacionamento nessa época.  Não acreditei nisso. Preferi intuir que a minha escolha se devia mais à minha experiência em casos assim, do que propriamente algum resquício de vindita pessoal.

Alertado ainda pelo engenheiro da equipe barrada, tomei conhecimento de que o proprietário do imóvel os havia recebido com muita dureza, impedindo até mesmo que a equipe adentrasse ao imóvel para conversarem sobre o real motivo daquela visita. Embarquei para a região sabendo das dificuldades que nos esperavam. Comigo, viajava um Topógrafo e um Técnico de Cadastro, além do motorista. A equipe ia muito preocupada, mas alertei logo que não forçaríamos nada. Caso fossemos impedidos de acessar ao imóvel, retornaríamos para Teresina e relataríamos o ocorrido a fim de que nossos superiores adotassem as medidas cabíveis em casos assim. Melhorou o ânimo da equipe, mas não de todo.

Mesmo chegando ao município já com a tarde bem avançada, preferimos iniciar os trabalhos imediatamente, antes mesmo de procurarmos alojamento em alguma pousada, pois a propriedade ficava próxima à cidade, e não teríamos dificuldades de encontrá-la, já que o nosso motorista já fizera parte da equipe anterior que havia sido barrada na sua intenção, e conhecia a sua localização. Por outro lado, como há uma notificação prévia do Instituto sobre o dia previsto para o início dos trabalhos, gostaríamos de chegar ao imóvel na data aprazada para evitar que o proprietário pudesse alegar uma possível ausência da área em razão de não termos cumprido com o prazo marcado para o início dos trabalhos.

Chegando à porteira de entrada da fazenda, já observei a presença de três homens com aspectos carrancudos sob a sombra de árvores, logo após a cerca limítrofe. Desci do veículo e, ao me aproximar da cancela, fui instado por um dos homens a não ultrapassar a cerca, que parasse por ali mesmo. O homem se destacou dos outros dois e, dois passos depois parou e me encarou com rudeza. E mais uma vez falou em alto e bom som: “seja lá o que vieram fazer aqui, aconselho a voltarem pelo mesmo caminho por onde vieram”. Observei que os três estavam armados e faziam de tudo para que notássemos isso. Um dos homens, chapéu enterrado na cabeça, aspecto bélicos, deixava ver o cabo de um revólver de forma muito acintosa.  Continuei caminhando para a porteira, e o proprietário do imóvel - constatei depois quem ele era - disse-me mais uma vez que não ultrapasse o limite do terreno. Falou isso de maneira muito incisiva, de forma que quem estivesse a algumas dezenas de metros de distância pudesse ouvir perfeitamente o que ordenava. Parei e disse-lhe que queria apenas conversar sobre o objeto da nossa viagem até ali. Mas o indivíduo continuava irredutível, e mais que isso, parecia que o seu nervosismo somente se acentuava. “Sei o que vieram fazer aqui. E não permito que entrem na minha propriedade”, foi a sua resposta.

Parei antes mesmo de tocar na porteira, e disse-lhe, de forma branda, mas fazendo ver a ele que não estava intimidado com a recepção. Disse-lhe, por fim, que me sentiria muito constrangido em ter que voltar ali, alguns dias depois, acompanhando por um contingente da polícia federal para poder realizar o meu trabalho. Mas que seria isto o que iria acontecer, caso fosse impedido de entrar na propriedade.  Afirmei-lhe ainda que aquela seria a primeira vez, e que por isso não me sentia nem um pouco feliz em ter que proceder daquela maneira. Disse-lhe, por fim, que tinha uma proposta a lhe fazer, que poderia, dependendo do seu ponto de vista, ser do seu agrado.

O homem ficou a me olhar por alguns instantes, e, afinal, disse-me que eu poderia entrar. Mas, somente eu. Os outros componentes da equipe teriam que ficar fora e aguardar pelo resultado da nossa conversa. Não concordei e disse-lhe que ou entrava toda a equipe, ou ninguém. Eu sabia que não poderia fazer nenhuma concessão ao indivíduo daquele tipo ao indivíduo. E mais que isso, precisava aproveitar que estava inseguro para que a missão tivesse sucesso.  

Passados alguns instantes, ele autorizou a um dos seus homens que fosse abrir a porteira para permitir que o carro do órgão pudesse adentrar à sua terra. Fui caminhando com eles até a casa sede, que ficava a uns trezentos metros da entrada, sem que fosse proferida uma só palavra. Os homens se mostravam em um estado de nervos que qualquer palavra dita fora do contexto, poderia provocar uma reação que eu não saberia até onde poderia nos levar. Sentamo-nos no alpendre e eu passei a lhe fazer a proposta que eu tinha em mente rapidamente. Aqui faço um pequeno intervalo para afirmar que havia folheado o processo e lido um ofício encaminhado pelo indivíduo em que ele dizia possuir um rebanho com uma certa quantidade de cabeças de gado, e que não teria para onde leva-los quase viesse a perder a sua terra. E que o número de famílias que vivam no imóvel, e que agora reivindicavam a posse da terra, era muito pequeno para o tamanho do imóvel. Isso me deu a dica que eu precisava.

A proposta que lhe fiz era técnica, e levava em consideração, tanto ao tamanho do seu rebanho, quanto o número de famílias a serem beneficiadas caso aquele imóvel viesse a ser expropriado. Propunha, portanto, uma divisão do imóvel ao meio. Notei que o homem ficara um pouco mais sossegado, e passou então a negociar comigo tentando perder a menor fatia da terra possível. Contudo, mostrei para ele que os nossos critérios eram eminentemente técnicos, como já afirmei, e que não poderíamos abrir mão da fração do imóvel necessária para o assentamento daquelas famílias para elas pudessem tirar dela o seu sustento familiar.

Passou então ele a negociar a questão da água. Dentro da área existia uma lagoa muito importante, histórica mesmo, e muito piscosa, que ele queria manter para si. E também a parte que limitava com o rio, pois seu rebanho precisa de muita água, principalmente no período da estiagem. Não concordei com o argumento. Propus-lhe que ficasse com um manancial ou com o outro. Que as famílias assentadas precisariam também de acesso a água, pois fatalmente iriam criar um gadinho, mesmo pouco.

Afinal, fechamos a negociação que me pareceu boa para os dois lados. Antes, disse-lhe que precisávamos da aquiescência das famílias para poder fechar o acordo. Saímos de lá e fomos até a casa do líder do grupo de ocupantes, e colocamos na mesa a nossa proposta para resolver a questão que poderia se arrastar por muito tempo, caso não chegássemos a aquiescência do grupo. Notei que ficavam aliviados, e até mesmo muito feliz com o resultado. Dias depois, já em Teresina, recebi a visita do fazendeiro (também advogado e funcionário graduado do estado), que queria tratar de algumas outras questões que haviam ficado fora da conversa inicial. Como a transferência de todas as famílias de dentro da parte do imóvel que ficaria com ele para a área desapropriada. Disse-lhe que isso estava implícito para mim, e que já até havia tratado disso com os assentados. Mas que eles somente poderiam sair de lá quando a instituição construísse as suas nova moradias.  Quis ainda se aproveitar para renegociar a questão da água, mas fui irredutível, e notei que ele ficou um pouco agastado comigo.

Dias depois desse acontecimento, estava eu abastecendo o carro em um posto de combustível na zona leste da cidade, quando senti aquele incômodo como se alguém estivesse me observando insistentemente pelas costas. Virei-me, e me deparei com o olhar rancoroso do dito proprietário, que me observava de pé, fora do carro. E quando viu que eu havia me virado para observá-lo, entrou no seu veículo e se foi, sem uma palavra. Fique, naturalmente, preocupado, pois achava que já estivesse tudo em paz com ele.

Chegando à repartição, no dia seguinte, tomei conhecimento de as coisas andavam um pouco complicadas em razão da ingerência de membros do sindicato na questão. E que estes tentavam tirar proveito da desapropriação para reivindicar mais terra para si e para algumas outras famílias associadas à entidade. Entrei no circuito mais uma vez e falei com o meu chefe que estava havendo uma quebra de acordo e que isso desmoralizava completamente a instituição, além da equipe que realizara as negociações. Fui compreendido por ele e, pouco depois o superintendente enviou correspondência ao sindicato do município em que o imóvel estava jurisdicionado reafirmando o compromisso anterior.

Pouco tempo depois assumi o cargo de Superintendente Regional e pude dar cumprimento a todos os itens do acordo firmado. Foram muitas as vezes que o fazendeiro esteve na Superintendência para resolver questões relativas ao imóvel. Contudo, no final, foi tudo resolvido, e até ganhei, se não a amizade, mas o respeito do ex-proprietário.

Esse foi apenas um caso que terminou bem. Em outros, alguns colegas por esse Brasil afora perderam até mesmo a vida em questões parecidas.

A perda de um imóvel rural, muitas vezes em mãos de uma família há várias gerações, deixa profundas chagas na alma do expropriado. E nem é preciso falar na perda de poder quase ditatorial a que uma propriedade eleva a quem tem a posse de um grande latifúndio. E por isso, a sua importância extrapola muitas vezes ao seu real valor de mercado, transformando-se em um feudo, e conferindo ao seu proprietário imensos poderes políticos, e até de polícia, em uma determinada região. O papel do Perito Federal Agrário, na questão do reordenamento e redistribuição fundiária do país, e no beneficiamento de milhares e milhares de famílias de trabalhadores rurais sem-terra, é vital e imprescindível. E por isso mesmo é tão árduo.  E muito desconfortável. E estes técnicos, em muitas situações, têm que expor suas próprias vidas para realizar o seu mister.  Trabalho duro e mal remunerado.


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