quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Em Grandes Solenidades Públicas, O Povão Sempre Entra Para Fazer Número





José Pedro Araújo

Estava lendo hoje mais uma crônica histórica do acadêmico, romancista e cronista parnaibano Pádua Marques, no blog do Poeta Elmar, quando recordei um fato ocorrido na minha aldeia, lá pelo início dos anos 80, quando da inauguração da agência da Caixa Econômica Federal na cidade. O texto que me levou a esse regresso no tempo falava da festa popular que foi o anúncio da construção do Porto Marítimo no litoral piauiense.  Com seu jeito jocoso de escrever suas crônicas, e sempre lançando mão dos termos regionais utilizados pelos populares da Parnaíba, o cronista não deixa de aplicar suas vergastadas, sobretudo, nos lombos dos enganadores e patranheiros. No caso em questão, relembra o autor o carnaval antecipado em que a população da aprazível cidade nortista mergulhou para comemorar a benfazeja notícia que os políticos e empresários levavam até ao povo crédulo da terra de Simplício Dias. O nosso interesse aqui, fica por conta do que acontece aos mais pobres, sempre tão propensos a acreditarem nos falaciosos de plantão e suas notícias grandiosas e pouco críveis. Em determinada altura do seu interessante texto, Pádua Marques discorre sobre a alegria que tomou conta da plebe ribeirinha, entre estes, estivadores, embarcadiços, vareiros, mariscadores e toda a classe de ribeirinhos que retiravam seu sustento do fabuloso Rio Grande dos Tapuias ou do mar-oceano de Amarração. 
A notícia da construção do tão almejado porto parou a cidade e levou a população a suspender todos os seus compromissos para ir ouvir as promessas de melhores dias da voz dos poderosos do lugar. Tudo isso debaixo de um sol inclemente e abrasador. Mas, nada, nada mesmo, era impeditivo para aquela gente. Na hora marcada, estavam todos lá, aplaudindo, sorrindo com as alvíssaras anunciadas de que melhores dias estavam chegando para eles. Enquanto isto, uma semana antes, os ricos e demais classes “superiores” haviam tomado ciência da grande notícia sob o abrigo do Cine Éden, refestelados nas suas poltronas e sob a proteção do seu teto. Agora era a vez do povão humilde. Para esses, os verdadeiros “beneficiários da grande nova”, não era necessário nem anteparo para abrigá-los dos raios dardejantes e da canícula incandescente, nem muito menos um lugar para assentarem as suas nádegas. Que aguentassem o peso do próprio corpo com suas pernas, afinal, já lhes bastava a boa notícia que lhes era destinada.
 E é exatamente aqui que eu entro nessa história. Em uma das minhas costumeiras passagens pela cidade, fui convidado pelo meu pai a testemunhar um acontecimento grandioso para nós presidutrense: a inauguração da agência da CEF na cidade. E de fato era um grande acontecimento para a população local. Quantos empregos seriam gerados na cidade? Seria ainda a oportunidade para os mais pobres depositarem seus dinheiros guardados sob o colchão ou mesmo levantar um crédito especial para a construção ou reforma da tão sonhada casa da família. Nada tão grandioso quanto a construção de um porto, mas, sempre uma grande novidade.  À tarde, aí por volta das dezesseis horas e trinta minutos estávamos nós na Praça do Mercado para ouvirmos os discursos da gente importante que atulhava a alta calçada do prédio onde funcionou o Cine Canecão, esquina da praça do Mercado com a travessa Doca Sereno. A começar pelo responsável pela vinda do banco para a cidade, o Deputado Federal Édson Lobão, ainda no começo da sua trajetória política. O deputado Lobão havia recolhido farta votação dos presidutrense, daí a sua empolgação naquele instante ao fazer o seu discurso para uma massa popular feliz, apesar do sol que queimava seus cocurutos.
Ao fim do interminável desfilar de oradores que oravam exaltadamente sobre o grande momento desenvolvimentista pelo qual passava o município, os ocupantes da calçada alta foram convidados a adentrarem às instalações bancária, para um reconhecimento, mas, e sobretudo, para degustarem um lauto coquetel regado a vinhos, whisky, cerveja, refrigerantes e canapés; muitos, variados e saborosos canapés. A mesa estava farta, e os garçons que circulavam pelo ambiente refrigerado e em meio aos ilustres convidados não regateavam na sua missão. E assim, não economizavam na distribuição de bebidas e salgados aos montes, enquanto lá fora, sob um calor abrasador, a população ficava a ver navios. Mais precisamente, a usufruir da sua insignificância. Muitos, curiosos com o que se passava lá dentro, comprimiam-se contra a vidraça frontal e observavam o que se se passava no interior da casa de crédito. Ao mesmo tempo, outros corriam às bodegas do mercado para comprar um copo d’água ou uma garrafa de refrigerante para minorar a sede que sentiam naquele instante.
Volto ao texto que me instigou a essas lembranças para deixar com o próprio autor o seu sentimento sobre o que ocorreu na Parnaíba naqueles idos de começo do século vinte: “Os bêbados, rapazinhos, meninos, os avulsos, saíam no rumo do Cheira Mijo pra comprar nos botecos alguma coisa pra beber, fosse aguardente, bolos, cuscuz de milho verde e tapioca. Ricos como seu Marc Jacob e James Clark naquele dia eram de estar bebendo uísque, gim, vinho de boa procedência, licores. Os pobres estavam gastando o pouco apurado com Tiquira, Genebra, cachaça serrana, conhaque de alcatrão. Mascando fumo. E assim foi aquele dia de muita celebração em toda a Parnaíba”.
Aqui, como lá, os pobres sempre servindo de plateia para aplaudir aos ditos poderosos nos grandes comícios e demais solenidades para anúncios de grandes acontecimentos que, dizem sempre, irão beneficiar os mais pobres. Enquanto isto, comemoremos nós – devem pensar assim – por estarmos sendo tão bons samaritanos com os mais necessitados. E bebamos em homenagem ou retribuição à nossa bondade ilimitada. Naquele dia de outubro de 1982, voltei-me com um copo de refrigerante na mão e dei de cara com a cena que narrei acima. Dezenas de pessoas se acotovelavam do lado de fora, cara enfiada na vidraça, e observavam com um semblante agora tristes, o que ocorria do lado de dentro da agência bancária. Aquilo me confrangeu a alma e, incontinente, apontei para o meu pai o que estava ocorrendo. Ele concordou comigo que aquela era uma cena deprimente, mas que acontecia sempre daquela forma. Depositamos nossos copos sobre uma mesa encostada na parede e fomos para casa constrangidos e tristes. Não estávamos nos sentindo confortável com aquela situação. Se a festa era para todos, se toda aquela gente havia sido convidada para o evento, por que somente alguns poucos estavam se banqueteando se quisesse, que gastasse do seu suado dinheirinho para matar a própria sede?
Antes que eu me esqueça, o tal Porto de Amarração – o que foi citado pelo cronista Pádua Marques - nunca foi concluído neste quase um século desde o seu anúncio (aniversário marcado para o dia 20 de maio deste ano de 2020). Nesse tempo, muitos se locupletaram com as verbas destinadas ao término da obra, mas os navios continuam passando ao largo.

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