José Pedro Araújo
Estava lendo hoje mais uma
crônica histórica do acadêmico, romancista e cronista parnaibano Pádua Marques,
no blog do Poeta Elmar, quando recordei um fato ocorrido na minha aldeia, lá
pelo início dos anos 80, quando da inauguração da agência da Caixa Econômica
Federal na cidade. O texto que me levou a esse regresso no tempo falava da
festa popular que foi o anúncio da construção do Porto Marítimo no litoral
piauiense. Com seu jeito jocoso de
escrever suas crônicas, e sempre lançando mão dos termos regionais utilizados
pelos populares da Parnaíba, o cronista não deixa de aplicar suas vergastadas,
sobretudo, nos lombos dos enganadores e patranheiros. No caso em questão,
relembra o autor o carnaval antecipado em que a população da aprazível cidade
nortista mergulhou para comemorar a benfazeja notícia que os políticos e
empresários levavam até ao povo crédulo da terra de Simplício Dias. O nosso
interesse aqui, fica por conta do que acontece aos mais pobres, sempre tão
propensos a acreditarem nos falaciosos de plantão e suas notícias grandiosas e
pouco críveis. Em determinada altura do seu interessante texto, Pádua Marques discorre
sobre a alegria que tomou conta da plebe ribeirinha, entre estes, estivadores,
embarcadiços, vareiros, mariscadores e toda a classe de ribeirinhos que retiravam
seu sustento do fabuloso Rio Grande dos Tapuias ou do mar-oceano de Amarração.
A notícia da construção do tão
almejado porto parou a cidade e levou a população a suspender todos os seus
compromissos para ir ouvir as promessas de melhores dias da voz dos poderosos
do lugar. Tudo isso debaixo de um sol inclemente e abrasador. Mas, nada, nada
mesmo, era impeditivo para aquela gente. Na hora marcada, estavam todos lá,
aplaudindo, sorrindo com as alvíssaras anunciadas de que melhores dias estavam
chegando para eles. Enquanto isto, uma semana antes, os ricos e demais classes “superiores”
haviam tomado ciência da grande notícia sob o abrigo do Cine Éden, refestelados
nas suas poltronas e sob a proteção do seu teto. Agora era a vez do povão humilde.
Para esses, os verdadeiros “beneficiários da grande nova”, não era necessário
nem anteparo para abrigá-los dos raios dardejantes e da canícula incandescente,
nem muito menos um lugar para assentarem as suas nádegas. Que aguentassem o
peso do próprio corpo com suas pernas, afinal, já lhes bastava a boa notícia
que lhes era destinada.
E é exatamente aqui que eu entro nessa
história. Em uma das minhas costumeiras passagens pela cidade, fui convidado
pelo meu pai a testemunhar um acontecimento grandioso para nós presidutrense: a
inauguração da agência da CEF na cidade. E de fato era um grande acontecimento
para a população local. Quantos empregos seriam gerados na cidade? Seria ainda
a oportunidade para os mais pobres depositarem seus dinheiros guardados sob o
colchão ou mesmo levantar um crédito especial para a construção ou reforma da
tão sonhada casa da família. Nada tão grandioso quanto a construção de um
porto, mas, sempre uma grande novidade.
À tarde, aí por volta das dezesseis horas e trinta minutos estávamos nós
na Praça do Mercado para ouvirmos os discursos da gente importante que atulhava
a alta calçada do prédio onde funcionou o Cine Canecão, esquina da praça do
Mercado com a travessa Doca Sereno. A começar pelo responsável pela vinda do
banco para a cidade, o Deputado Federal Édson Lobão, ainda no começo da sua
trajetória política. O deputado Lobão havia recolhido farta votação dos
presidutrense, daí a sua empolgação naquele instante ao fazer o seu discurso
para uma massa popular feliz, apesar do sol que queimava seus cocurutos.
Ao fim do interminável desfilar
de oradores que oravam exaltadamente sobre o grande momento desenvolvimentista
pelo qual passava o município, os ocupantes da calçada alta foram convidados a
adentrarem às instalações bancária, para um reconhecimento, mas, e sobretudo,
para degustarem um lauto coquetel regado a vinhos, whisky, cerveja, refrigerantes
e canapés; muitos, variados e saborosos canapés. A mesa estava farta, e os
garçons que circulavam pelo ambiente refrigerado e em meio aos ilustres
convidados não regateavam na sua missão. E assim, não economizavam na
distribuição de bebidas e salgados aos montes, enquanto lá fora, sob um calor
abrasador, a população ficava a ver navios. Mais precisamente, a usufruir da
sua insignificância. Muitos, curiosos com o que se passava lá dentro,
comprimiam-se contra a vidraça frontal e observavam o que se se passava no
interior da casa de crédito. Ao mesmo tempo, outros corriam às bodegas do
mercado para comprar um copo d’água ou uma garrafa de refrigerante para minorar
a sede que sentiam naquele instante.
Volto ao texto que me instigou a
essas lembranças para deixar com o próprio autor o seu sentimento sobre o que
ocorreu na Parnaíba naqueles idos de começo do século vinte: “Os bêbados,
rapazinhos, meninos, os avulsos, saíam no rumo do Cheira Mijo pra comprar nos
botecos alguma coisa pra beber, fosse aguardente, bolos, cuscuz de milho verde
e tapioca. Ricos como seu Marc Jacob e James Clark naquele dia eram de estar
bebendo uísque, gim, vinho de boa procedência, licores. Os pobres estavam
gastando o pouco apurado com Tiquira, Genebra, cachaça serrana, conhaque de
alcatrão. Mascando fumo. E assim foi aquele dia de muita celebração em toda a
Parnaíba”.
Aqui, como lá, os pobres sempre
servindo de plateia para aplaudir aos ditos poderosos nos grandes comícios e
demais solenidades para anúncios de grandes acontecimentos que, dizem sempre,
irão beneficiar os mais pobres. Enquanto isto, comemoremos nós – devem pensar
assim – por estarmos sendo tão bons samaritanos com os mais necessitados. E
bebamos em homenagem ou retribuição à nossa bondade ilimitada. Naquele dia de
outubro de 1982, voltei-me com um copo de refrigerante na mão e dei de cara com
a cena que narrei acima. Dezenas de pessoas se acotovelavam do lado de fora,
cara enfiada na vidraça, e observavam com um semblante agora tristes, o que
ocorria do lado de dentro da agência bancária. Aquilo me confrangeu a alma e,
incontinente, apontei para o meu pai o que estava ocorrendo. Ele concordou
comigo que aquela era uma cena deprimente, mas que acontecia sempre daquela
forma. Depositamos nossos copos sobre uma mesa encostada na parede e fomos para
casa constrangidos e tristes. Não estávamos nos sentindo confortável com aquela
situação. Se a festa era para todos, se toda aquela gente havia sido convidada
para o evento, por que somente alguns poucos estavam se banqueteando se
quisesse, que gastasse do seu suado dinheirinho para matar a própria sede?
Antes que eu me esqueça, o tal
Porto de Amarração – o que foi citado pelo cronista Pádua Marques - nunca foi
concluído neste quase um século desde o seu anúncio (aniversário marcado para o
dia 20 de maio deste ano de 2020). Nesse tempo, muitos se locupletaram com as
verbas destinadas ao término da obra, mas os navios continuam passando ao
largo.
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