quarta-feira, 8 de abril de 2020

UMA VISITA A PARENTES EM BARRAS DO MARATAOAN

Foto: Barrasvirtual.com.br


 
(Chico Acoram Araújo)*
                No final do ano passado decidi visitar um tio e uma tia, ambos irmãos do meu pai, que moram em Barras, no Bairro Boa Vista. Antes, porém, de pegar a estrada para aquela cidade, convidei uma outra tia que mora aqui em Teresina. Esta aceitou de bom grado meu convite. Durante o percurso, tia Deusenira relembrou alguns fatos sobre seus pais e irmãos, dando um destaque especial ao seu Francisco, meu pai, quando toda a família ainda vivia naquele município.  Foram duas horas e meia de proveitosa conversa. Ao atravessarmos a ponte do rio Marataoan, cartão de visita para os que vem de Teresina, olhei para o relógio do carro que marcava exatamente dez horas da manhã.
O Sábado estava esplêndido. O sol brilhante e o clima pouco úmido, típico de um dia de dezembro em Barras. A cidade estava ainda de ressaca de dois consecutivos festejos: o de Nossa Senhora da Conceição e o de Santa Luzia, realizados recentemente na igreja Matriz, e no Bairro Boa Vista, respectivamente. Fomos diretos para residência do tio Dominguinhos, localizada nas proximidades da igreja daquele bairro. A nossa presença em sua casa foi muito festejada por ele e por tia Aldenora, sua esposa. Não o tinha avisado sobre essa nossa visita. Abraçou terna e demoradamente a sua querida irmã que, há algum tempo, não via. Em seguida, me cumprimentou com um forte abraço demonstrando, como sempre, um certo carinho e estima. Perguntou-nos como estavam nossos familiares que ficaram em Teresina. Todos estão bem, respondemos. Passamos a conversar coisas amenas, sem nos darmos conta do tempo.
Já são onze horas! Exclamou meu tio. Vamos almoçar? Fomos todos à mesa. Arroz branco, galinha caipira, um cozido de peixes do Marataoan e feijão “apartado” foram servidos. Deleitamo-nos fartamente. Uma delícia! Disse minha tia Deusenira.
Após o almoço, tio Dominguinhos nos convidou para conversarmos em uma pequena varanda localizada na parte frontal da casa voltada para o nascente. Nessa área havia uma fileira de cadeiras de ferro recobertas com espaguete de plástico. E todas com seus encostos colados na parede de modo a permitir que os presentes tivessem uma visão da rua. Uma grade metálica protegia toda a frente da casa. Meu tio sentou-se na cadeira central. Acomodei-me ao seu lado esquerdo, enquanto sua esposa e a tia Deusenira, sentaram-se em cadeiras situadas do lado direito do anfitrião.
Foram mais de duas horas de conversa ininterrupta. Uma memória fantástica essa do meu tio, apesar dos seus 88 anos de idade! Narrou com detalhes toda a história da família Araújo Lima, inclusive dos seus ancestrais paternos e maternos. Falou da expulsão, sem contemplação, da sua família das terras pertencentes a um famoso latifundiário de Barras. De como e quando foram morar no Maranhão. Em seguida, do casamento de Francisco com Jovita, minha mãe; da decisão do irmão Francisco de não mais morar em terras de terceiros, e da sua vida de camelô, e do triste assassinato de um amigo daquele, em uma desobriga na cidade de Chapadinha-MA. E tantos outros fatos nos contou no longo depoimento, deixando-me impressionado com aquela extraordinária narração.  
Por volta das três horas daquela animada tarde eu e minha gentil acompanhante fomos para a casa da tia Idalina (mais conhecida como “Nega”) localizada próxima à confluência do Marataoan com um lago que separa os bairros Boa Vista e Pedrinhas, ambos situados na margem esquerda do referido rio, e separados por aquele braço de rio. A distância entre as residências desses dois irmãos não passava de 01 quilômetro.
A hospitalidade que tivemos na casa da tia Nega não foi muito diferente da de seu irmão Dominguinhos. A satisfação de reencontrar a irmã Deusenira e o sobrinho foi comovente. De igual modo, seu esposo Jerônimo nos recebeu com muita gentileza, assim como sua filha e genro. Na oportunidade, tia Nega nos ofereceu um café preto feito na hora e ainda bem quentinho, com beiju que acabara de fazer. Depois desse gostoso lanche, fomos conversar na sala de estar que ficava na entrada da residência.
A conversa transcorreu de forma muito animada, predominando o diálogo entre as minhas duas tias. Lembraram o tempo em que seus pais residiam na zona rural de Barras. Nesse instante, a visitante perguntou à irmã: - lembras quando a gente morava lá no Balaio? Ora se me lembro! Tempos difíceis aquele, respondeu tia Nega. Ainda hoje tenho uma cicatriz de um corte que levei no dedo da mão quando eu quebrava coco babaçu no machado, complementou.
E por aí as duas irmãs enveredaram no túnel do tempo. Recordaram até do período em que a família foi expulsa da casa onde morava por conta de desentendimentos entre seu pai e o proprietário daquelas imensas terras férteis. Naquele momento, preferi apenas ouvi as interlocutoras, por achar suas recordações engraçadas e muito interessantes.
Senti um pouco de calor no recinto. Fui para o terreiro da casa, após um pedido de licença às minhas tias. Senti no rosto uma tênue brisa que vinha do Marataoan, que passa ali bem próximo. Decidi ir até ao querido caudal, onde o mesmo faz confluência com um lago (braço de rio). Segundo Wilson Gonçalves, em seu Dicionário Enciclopédico Piauiense Ilustrado, o topônimo Maratoã, como era antigamente grafado, é de origem indígena que significa “riacho da Pedra Grande”.
A paisagem daquele lugar é espetacular. Digna para uma tela de Vicent van Gogh. As mansas águas do exuberante rio refletiam naquele momento os últimos raios solares daquele belo entardecer. O rio, a montante, parecia um sinuoso e cumprido espelho, cujas bordas tinham um melancólico sombreamento das majestosas árvores com suas frondes descaídas sobre suas águas.  Dezenas de garças brancas, além de outras aves menores, pousavam nas copas daquela mata ribeirinha. Ao mesmo tempo, mais elegantes pássaros sobrevoavam aquela lâmina como se estivessem a admirar suas imagens, em voos de puro divertimento.
Mas a topografia da região agora estava muito diferente em comparação com o tempo em que nossa família ainda residia em Barras. Ali próximo, a jusante do rio, foi construída uma barragem de concreto que muito mudou a paisagem do lugar. Com o represamento das águas, aquela área do Marataoan tornou-se mais larga, embora pouco profunda. E por consequência, no lago que outrora não era perene, hoje seu leito acumula água em abundância, o ano inteiro. É possível que, por conta daquela obra, houvesse também a necessidade de se construir uma pequena barragem de “passagem molhada” para servir de ponte entre os bairros da Boa Vista e de Pedrinhas, bem como outros povoados adjacentes. Antes, recordo-me, que os alagamentos desse braço de rio só ocorriam nos tempos de rigorosos invernos, obrigando os moradores da região a atravessarem o lago em uma pequena canoa.
 Recordo que em uma certa noite de um inverno, por volta das sete horas, ouvimos alguém gritando lá do outro lado do lago pedindo que levassem de volta a canoa que estava na margem do lado em que ficava a nossa casa, no alto da ribanceira, nas proximidades da já citada confluência. Aquele chamado parecia ecoar nos meus ouvidos outra vez. Nos períodos de festejos de Nossa Senhora da Conceição o tráfego de pessoas naquela travessia era maior. Certamente, um dos moradores havia atravessado o lago mais cedo, privando os demais de se locomoverem para o centro da cidade.
Ouvindo aquele chamado, minha mãe foi para o terreiro para informar, em voz alta, que em casa não havia ninguém que pudesse levar a canoa para o outro lado. Eu intervi prontamente: “Mamãe, a senhora me deixa levar a canoa? Eu sei remar muito bem”, enfatizei. – “De jeito nenhum, replicou ela. Você é muito criança, só tem sete anos. Ora essa! Onde se viu uma coisa dessa? Além do mais já estar turvo!”.
Enquanto isso, no outro lado, a gritaria ecoava aos quatro cantos: - “Queremos ir ao festejo e o tempo está passando”, alardeou alguém -. Nesse momento, outra pessoa gritou: - “Jovita, deixa o Carlinhos levar a canoa pra cá, pois ele sabe remar muito bem”! Fiquei todo orgulhoso. Reconheci aquela voz. Era do Timóteo, um conhecido parente do meu pai.
Depois de ouvir aquelas insistentes súplicas, minha saudosa mãe resolveu, com a mão no coração, me deixar levar o mui requisitado transporte. Não sem antes avisar-me: “Olhe! rapazinho – muito cuidado!”. Ela me acompanhou até a beira do lago e ficou a me observar ternamente, ao mesmo tempo que olhava para outra margem. Senti que ela estava um pouco trêmula. Salvo engano, acredito que a distância entre as margens era cerca de cinquenta metros, mas o curso d’água no local era um pouco profundo, daí a razão do seu temor. Quando eu estava me preparando para zarpar e cumprir aquela honrosa missão, minha mãe me chamou. “Espere que também vou com você!”.
Cabe aqui um adendo. Minha mãe não sabia nadar. Isso ela dizia quando ia para o rio lavar roupas. E quando me via nadando, dizia, orgulhosa:  “esse meu menino é uma “piaba”!
A missão foi cumprida. Fomos festejados como extraordinários heróis. Depois, o nosso parente acima citado nos levou de volta para outra margem, que de imediato retornou para pegar os outros companheiros.  
Feitas essas recordações, voltemos ao ponto em que eu estava a descrever a topografia da beira do rio Marataoan.
Após reconhecer e contemplar aquele belo lugar, lembrei-me que a nossa antiga residência se localizava a pouco metros, ao meu lado direito. A casa foi construída toda em alvenaria em um terreno de frente para os dois cursos d’água, o que proporcionava aos seus habitantes uma visão fantástica da região.  Na época, lá residiam meus pais, eu, meu irmão e duas irmãs pequenas. Eu, com completados seis anos de idade, era o mais velho dos irmãos. Fazia parte também da família, minha companheira de viagem, a tia Deusenira, que muito ajudava meu pai no seu comércio localizado aqui na Boa Vista. Para mim, a tia era como se fosse uma irmã mais velha. Depois que fomos embora para Teresina, meus avós paternos ficaram morando na nossa casa. Anos depois minha avó faleceu. Meu avô, apesar da idade, constituiu outra família. E a casa foi abandonada. Meu pai nunca teve aptidão para acumular bens materiais, em que pese ter ganho algum dinheiro em seus negócios. O nosso terreno aos poucos foi sendo ocupado por dezenas de outras famílias. Lembro que até o final dos anos 50 e 60, naquela região fronteiriça com o Marataoan e o lago, o número de residências (com extensos quintais) não passava de 6 ou 7.  
                À medida que eu caminhava rumo ao terreno onde situava nossa antiga vivenda, uma emoção indescritível foi tomando conta de mim. Fui andando entre a ribanceira da margem do lago e as cercas de madeiras que protegiam os pequenos quintais das modestas casas. Percebi que essas moradias foram construídas no terreno pertencente a nossa família. Segundo uma antiga vizinha e amiga contemporânea, o referido imóvel tinha uma área de aproximadamente 01 hectares. Não sei se procede essa informação. Apenas lembro que o terreno se estendia por cerca de uns 100 metros, margeando o lago. Quanto as casas, não cheguei a contá-las. Acho que eram para mais de uma dezena. Com alguma dificuldade, devido aos cercados das residências, consegui chegar até ao local onde eu imaginava ser o da nossa antiga casa de morada.
Confesso que fiquei decepcionado com aquela realidade. Uma profunda tristeza me abateu, apesar ser do meu conhecimento que a casa tinha sido desmoronada completamente por conta de várias enchentes que aconteceram nesse local. De longe observei uma pequena casa com paredes de reboco e telhado de cerâmica. No quintal existiam algumas espécies de fruteiras. No momento, desejei imensamente que aquelas árvores fossem remanescentes do nosso antigo quintal. Nesse, recordo-me, existiam pés de guabiraba, coroa-de-frade e Creoli, além de uma mangueira, um cajueiro e uma goiabeira. Mas faz tanto tempo, quase 60 anos! Desistir dessa ideia, pois conclui que o terreno da nossa casa e do quintal já não nos pertencia, havia sido desmembrado para construção de outros casebres.
Pesaroso, sai dali o mais depressa que pude. Mas as mais belas imagens que tenho daquele lugar, quando ainda criança, não me fogem das lembranças. Essas estão mais vivas em mim do que nunca.
Com o sentimento de uma grande perda sentimental, retornei para casa da tia Nega, mas arrisquei um olhar para trás mais uma vez. E  por alguns minutos, contemplei aquele belíssimo cartão postal que o Marataoan, ao por do sol, generosamente me presenteava com sua magnifica paisagem multicolor.
Na manhã do dia seguinte, após o café, eu e minha tia Deusenira estávamos de volta para Teresina. Ficamos felizes em rever os parentes. Durante o trajeto elaborei uma trova: 

A casa que eu em criança
morei, as inundações
não turvarão a lembrança
das minhas recordações.



(*)Chico Acoram Araújo é poeta, cronista e Funcionário público federal

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