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Foto: Barrasvirtual.com.br |
(Chico Acoram Araújo)*
No
final do ano passado decidi visitar um tio e uma tia, ambos irmãos do meu pai,
que moram em Barras, no Bairro Boa Vista. Antes, porém, de pegar a estrada para
aquela cidade, convidei uma outra tia que mora aqui em Teresina. Esta aceitou
de bom grado meu convite. Durante o percurso, tia Deusenira relembrou alguns
fatos sobre seus pais e irmãos, dando um destaque especial ao seu Francisco, meu
pai, quando toda a família ainda vivia naquele município. Foram duas horas e meia de proveitosa conversa.
Ao atravessarmos a ponte do rio Marataoan, cartão de visita para os que vem de
Teresina, olhei para o relógio do carro que marcava exatamente dez horas da manhã.
O Sábado
estava esplêndido. O sol brilhante e o clima pouco úmido, típico de um dia de
dezembro em Barras. A cidade estava ainda de ressaca de dois consecutivos festejos:
o de Nossa Senhora da Conceição e o de Santa Luzia, realizados recentemente na
igreja Matriz, e no Bairro Boa Vista, respectivamente. Fomos diretos para
residência do tio Dominguinhos, localizada nas proximidades da igreja daquele bairro.
A nossa presença em sua casa foi muito festejada por ele e por tia Aldenora,
sua esposa. Não o tinha avisado sobre essa nossa visita. Abraçou terna e
demoradamente a sua querida irmã que, há algum tempo, não via. Em seguida, me cumprimentou
com um forte abraço demonstrando, como sempre, um certo carinho e estima. Perguntou-nos
como estavam nossos familiares que ficaram em Teresina. Todos estão bem,
respondemos. Passamos a conversar coisas amenas, sem nos darmos conta do tempo.
Já são onze
horas! Exclamou meu tio. Vamos almoçar? Fomos todos à mesa. Arroz branco, galinha
caipira, um cozido de peixes do Marataoan e feijão “apartado” foram servidos. Deleitamo-nos
fartamente. Uma delícia! Disse minha tia Deusenira.
Após o almoço,
tio Dominguinhos nos convidou para conversarmos em uma pequena varanda
localizada na parte frontal da casa voltada para o nascente. Nessa área havia uma
fileira de cadeiras de ferro recobertas com espaguete de plástico. E todas com
seus encostos colados na parede de modo a permitir que os presentes tivessem uma
visão da rua. Uma grade metálica protegia toda a frente da casa. Meu tio sentou-se
na cadeira central. Acomodei-me ao seu lado esquerdo, enquanto sua esposa e a
tia Deusenira, sentaram-se em cadeiras situadas do lado direito do anfitrião.
Foram mais de
duas horas de conversa ininterrupta. Uma memória fantástica essa do meu tio,
apesar dos seus 88 anos de idade! Narrou com detalhes toda a história da
família Araújo Lima, inclusive dos seus ancestrais paternos e maternos. Falou
da expulsão, sem contemplação, da sua família das terras pertencentes a um famoso
latifundiário de Barras. De como e quando foram morar no Maranhão. Em seguida,
do casamento de Francisco com Jovita, minha mãe; da decisão do irmão Francisco de
não mais morar em terras de terceiros, e da sua vida de camelô, e do triste
assassinato de um amigo daquele, em uma desobriga na cidade de Chapadinha-MA. E
tantos outros fatos nos contou no longo depoimento, deixando-me impressionado com
aquela extraordinária narração.
Por volta das três
horas daquela animada tarde eu e minha gentil acompanhante fomos para a casa da
tia Idalina (mais conhecida como “Nega”) localizada próxima à confluência do Marataoan
com um lago que separa os bairros Boa Vista e Pedrinhas, ambos situados na
margem esquerda do referido rio, e separados por aquele braço de rio. A distância
entre as residências desses dois irmãos não passava de 01 quilômetro.
A hospitalidade
que tivemos na casa da tia Nega não foi muito diferente da de seu irmão
Dominguinhos. A satisfação de reencontrar a irmã Deusenira e o sobrinho foi comovente.
De igual modo, seu esposo Jerônimo nos recebeu com muita gentileza, assim como
sua filha e genro. Na oportunidade, tia Nega nos ofereceu um café preto feito
na hora e ainda bem quentinho, com beiju que acabara de fazer. Depois desse
gostoso lanche, fomos conversar na sala de estar que ficava na entrada da
residência.
A conversa
transcorreu de forma muito animada, predominando o diálogo entre as minhas duas
tias. Lembraram o tempo em que seus pais residiam na zona rural de Barras. Nesse
instante, a visitante perguntou à irmã: - lembras quando a gente morava lá no
Balaio? Ora se me lembro! Tempos difíceis aquele, respondeu tia Nega. Ainda hoje
tenho uma cicatriz de um corte que levei no dedo da mão quando eu quebrava coco
babaçu no machado, complementou.
E por aí as
duas irmãs enveredaram no túnel do tempo. Recordaram até do período em que a
família foi expulsa da casa onde morava por conta de desentendimentos entre seu
pai e o proprietário daquelas imensas terras férteis. Naquele momento, preferi apenas
ouvi as interlocutoras, por achar suas recordações engraçadas e muito
interessantes.
Senti um pouco
de calor no recinto. Fui para o terreiro da casa, após um pedido de licença às
minhas tias. Senti no rosto uma tênue brisa que vinha do Marataoan, que passa ali
bem próximo. Decidi ir até ao querido caudal, onde o mesmo faz confluência com
um lago (braço de rio). Segundo Wilson Gonçalves, em seu Dicionário
Enciclopédico Piauiense Ilustrado, o topônimo Maratoã, como era antigamente
grafado, é de origem indígena que significa “riacho da Pedra Grande”.
A paisagem daquele
lugar é espetacular. Digna para uma tela de Vicent van Gogh. As mansas águas do
exuberante rio refletiam naquele momento os últimos raios solares daquele belo entardecer.
O rio, a montante, parecia um sinuoso e cumprido espelho, cujas bordas tinham
um melancólico sombreamento das majestosas árvores com suas frondes descaídas
sobre suas águas. Dezenas de garças brancas,
além de outras aves menores, pousavam nas copas daquela mata ribeirinha. Ao
mesmo tempo, mais elegantes pássaros sobrevoavam aquela lâmina como se estivessem
a admirar suas imagens, em voos de puro divertimento.
Mas a
topografia da região agora estava muito diferente em comparação com o tempo em
que nossa família ainda residia em Barras. Ali próximo, a jusante do rio, foi
construída uma barragem de concreto que muito mudou a paisagem do lugar. Com o
represamento das águas, aquela área do Marataoan tornou-se mais larga, embora pouco
profunda. E por consequência, no lago que outrora não era perene, hoje seu
leito acumula água em abundância, o ano inteiro. É possível que, por conta
daquela obra, houvesse também a necessidade de se construir uma pequena
barragem de “passagem molhada” para servir de ponte entre os bairros da Boa
Vista e de Pedrinhas, bem como outros povoados adjacentes. Antes, recordo-me,
que os alagamentos desse braço de rio só ocorriam nos tempos de rigorosos
invernos, obrigando os moradores da região a atravessarem o lago em uma pequena
canoa.
Recordo que em uma certa noite de um inverno, por
volta das sete horas, ouvimos alguém gritando lá do outro lado do lago pedindo que
levassem de volta a canoa que estava na margem do lado em que ficava a nossa
casa, no alto da ribanceira, nas proximidades da já citada confluência. Aquele
chamado parecia ecoar nos meus ouvidos outra vez. Nos períodos de festejos de
Nossa Senhora da Conceição o tráfego de pessoas naquela travessia era maior. Certamente,
um dos moradores havia atravessado o lago mais cedo, privando os demais de se locomoverem
para o centro da cidade.
Ouvindo aquele
chamado, minha mãe foi para o terreiro para informar, em voz alta, que em casa não
havia ninguém que pudesse levar a canoa para o outro lado. Eu intervi
prontamente: “Mamãe, a senhora me deixa levar a canoa? Eu sei remar muito bem”,
enfatizei. – “De jeito nenhum, replicou ela. Você é muito criança, só tem sete
anos. Ora essa! Onde se viu uma coisa dessa? Além do mais já estar turvo!”.
Enquanto isso,
no outro lado, a gritaria ecoava aos quatro cantos: - “Queremos ir ao festejo e
o tempo está passando”, alardeou alguém -. Nesse momento, outra pessoa gritou: -
“Jovita, deixa o Carlinhos levar a canoa pra cá, pois ele sabe remar muito bem”!
Fiquei todo orgulhoso. Reconheci aquela voz. Era do Timóteo, um conhecido
parente do meu pai.
Depois de
ouvir aquelas insistentes súplicas, minha saudosa mãe resolveu, com a mão no
coração, me deixar levar o mui requisitado transporte. Não sem antes avisar-me:
“Olhe! rapazinho – muito cuidado!”. Ela me acompanhou até a beira do lago e ficou
a me observar ternamente, ao mesmo tempo que olhava para outra margem. Senti
que ela estava um pouco trêmula. Salvo engano, acredito que a distância entre
as margens era cerca de cinquenta metros, mas o curso d’água no local era um pouco
profundo, daí a razão do seu temor. Quando eu estava me preparando para zarpar
e cumprir aquela honrosa missão, minha mãe me chamou. “Espere que também vou com
você!”.
Cabe aqui um
adendo. Minha mãe não sabia nadar. Isso ela dizia quando ia para o rio lavar
roupas. E quando me via nadando, dizia, orgulhosa: “esse meu menino é uma “piaba”!
A missão foi cumprida.
Fomos festejados como extraordinários heróis. Depois, o nosso parente acima
citado nos levou de volta para outra margem, que de imediato retornou para pegar
os outros companheiros.
Feitas essas
recordações, voltemos ao ponto em que eu estava a descrever a topografia da
beira do rio Marataoan.
Após reconhecer
e contemplar aquele belo lugar, lembrei-me que a nossa antiga residência se
localizava a pouco metros, ao meu lado direito. A casa foi construída toda em
alvenaria em um terreno de frente para os dois cursos d’água, o que proporcionava
aos seus habitantes uma visão fantástica da região. Na época, lá residiam meus pais, eu, meu irmão
e duas irmãs pequenas. Eu, com completados seis anos de idade, era o mais velho
dos irmãos. Fazia parte também da família, minha companheira de viagem, a tia Deusenira,
que muito ajudava meu pai no seu comércio localizado aqui na Boa Vista. Para
mim, a tia era como se fosse uma irmã mais velha. Depois que fomos embora para
Teresina, meus avós paternos ficaram morando na nossa casa. Anos depois minha
avó faleceu. Meu avô, apesar da idade, constituiu outra família. E a casa foi
abandonada. Meu pai nunca teve aptidão para acumular bens materiais, em que pese
ter ganho algum dinheiro em seus negócios. O nosso terreno aos poucos foi sendo
ocupado por dezenas de outras famílias. Lembro que até o final dos anos 50 e 60,
naquela região fronteiriça com o Marataoan e o lago, o número de residências (com
extensos quintais) não passava de 6 ou 7.
À
medida que eu caminhava rumo ao terreno onde situava nossa antiga vivenda, uma
emoção indescritível foi tomando conta de mim. Fui andando entre a ribanceira da
margem do lago e as cercas de madeiras que protegiam os pequenos quintais das
modestas casas. Percebi que essas moradias foram construídas no terreno pertencente
a nossa família. Segundo uma antiga vizinha e amiga contemporânea, o referido imóvel
tinha uma área de aproximadamente 01 hectares. Não sei se procede essa informação.
Apenas lembro que o terreno se estendia por cerca de uns 100 metros, margeando o
lago. Quanto as casas, não cheguei a contá-las. Acho que eram para mais de uma
dezena. Com alguma dificuldade, devido aos cercados das residências, consegui chegar
até ao local onde eu imaginava ser o da nossa antiga casa de morada.
Confesso que fiquei
decepcionado com aquela realidade. Uma profunda tristeza me abateu, apesar ser
do meu conhecimento que a casa tinha sido desmoronada completamente por conta
de várias enchentes que aconteceram nesse local. De longe observei uma pequena casa
com paredes de reboco e telhado de cerâmica. No quintal existiam algumas
espécies de fruteiras. No momento, desejei imensamente que aquelas árvores
fossem remanescentes do nosso antigo quintal. Nesse, recordo-me, existiam pés
de guabiraba, coroa-de-frade e Creoli, além de uma mangueira, um cajueiro e uma
goiabeira. Mas faz tanto tempo, quase 60 anos! Desistir dessa ideia, pois
conclui que o terreno da nossa casa e do quintal já não nos pertencia, havia sido
desmembrado para construção de outros casebres.
Pesaroso, sai dali
o mais depressa que pude. Mas as mais belas imagens que tenho daquele lugar, quando
ainda criança, não me fogem das lembranças. Essas estão mais vivas em mim do
que nunca.
Com o sentimento
de uma grande perda sentimental, retornei para casa da tia Nega, mas arrisquei
um olhar para trás mais uma vez. E por
alguns minutos, contemplei aquele belíssimo cartão postal que o Marataoan, ao
por do sol, generosamente me presenteava com sua magnifica paisagem multicolor.
Na manhã do
dia seguinte, após o café, eu e minha tia Deusenira estávamos de volta para Teresina.
Ficamos felizes em rever os parentes. Durante o trajeto elaborei uma trova:
A casa
que eu em criança
morei,
as inundações
não
turvarão a lembrança
das
minhas recordações.
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