quinta-feira, 8 de abril de 2021

É TEMPO DE IR PARA A ESCOLA, MENINO!


 

Antiga Carta de ABC   


José Pedro Araújo

Estava aí por volta dos cinco anos de idade, aprontando todas as desobediências possíveis e imagináveis que as crianças dessa idade executam do nascer do sol até a hora de dormir, quando minha mãe, já cansada dos meus excessos, falou para o meu pai: “Arruma uma escola pra esse menino. Já está passando da hora dele ir pro colégio!”. Meu pai não concordou de imediato, ainda tentou contemporizar, dizendo que eu estava muito novo para frequentar uma sala de aula, que no grupo escolar não aceitavam crianças com aquela idade, mas foi vencido pelas circunstâncias, não teve jeito. Mas postergou, ainda demorou para que aquilo se consumasse. Enquanto papai pode, foi empurrando com a barriga até que não deu mais pra aguentar a pressão.

Por esse tempo, uma cunhada do meu tio Zeca Barros, professora Nadir Oliveira, havia instalado uma escola particular em uma sala da casa dele, três casas depois da nossa. A mestra recebia meninos de todas as idades e tamanhos, e foi para lá que eu fui encaminhado. Nunca havia posto os pés em uma sala de aula, mas já conhecia um pouco o alfabeto. Não esbocei reação porquanto na dita escola já estudava um primo meu, Diolindo, cerca de três anos mais velho que eu, mas, mesmo assim, meu colega de travessuras durante o dia inteiro. Filho do dono da casa – portanto, sobrinho da professora – já estava um pouco adiantado nos estudos, cursava a Cartilha, e se sentia muito confortável no colégio instalado na sua própria moradia. Pelo menos é o que eu deduzo. Eu não esbocei resistência para entrar na escola por uma razão muito simples: estava incomodado pelo fato de meu primo não poder mais brincar comigo à tarde por conta de ter ingressado naquela pequena escola. E, já que não era possível contar com ele fora, entraria eu para lá estudar também e ficar perto dele.

Assim pois, pouco tempo depois do almoço de um certo dia de verão, lá pelos idos de 1959, lá vou eu para a escola. Era o meu primeiro dia de aula, apesar da escolinha já ter começado suas atividades dias antes. Meus pais compraram uma carta de ABC na mercearia mais próxima, vestiram-me com a minha melhor roupa e lá fui eu meio ressabiado, qual um passarinho que, faminto, via-se obrigado a debicar alguns grãos lançados em uma calçada estranha, propositalmente para atraí-lo. Cabelos penteados, carta de ABC sob o sovaco, fui me achegando desconfiado e parei no umbral da porta. A minha mãe, que me conduzia, empurrou-me carinhosa, mas resolutamente, e me fez penetrar no recinto onde algumas crianças já estavam em aula e a professora, de costas, escrevia algo no quadro-negro. Mamãe chamou pela professora, e ela, virando-se para atender ao chamado, deu de cara com o novo aluno e me mandou sentar em um tamborete encostado na parede lateral da saleta.

Feito isso, voltou a se desincumbir da tarefa de escrever no quadro negro, enquanto a minha mãe retornou para casa. Acredito hoje que ela deve ter voltado para casa muito satisfeita, feliz até. Afinal, seu filho mais velho se iniciava nos estudos, e ela, ao mesmo tempo, teria uma tarde de sossego para cuidar dos outros filhos mais novos.

Quanto a mim, fiquei lá, quieto, sem saber o que fazer, enquanto algumas crianças mais adiantadas tentavam a custo passar para o caderno as poucas palavras que a professora havia escrito no quadro pregado à parede. Desconfiado, olhei para o meu primo, e vi que ele estava compenetrado e absorto em decifrar as silabas da sua cartilha. O barulho era grande no recinto. Várias crianças soletravam as silabas ao mesmo tempo, e o que se ouvia era um emaranhado de vozes ecoando pelo recinto. Enquanto uns ainda estavam no Ba, be, bi, bo, bu, outros já iam bem na frente entoando o Ca, ce, ci, co, çu, enquanto que outros mais adiantados ainda, já estavam no Da, de, di, do, du. Atônito, não estava entendendo o que se passava em meio àquele autêntico vespeiro e quedei sentado. Já estava arrependido de ter ido parar ali. Poderia está correndo atrás de uma bola, por exemplo, ou subindo em uma goiabeira para colher um fruto maduro, mas, em vez disto, estava ali sentado em meio àquele tumulto de vozes desencontradas.

Não tive tempo para pensar muito nisso, no entanto. A professora Nadir se aproximou de mim e me perguntou o que eu sabia ler naquela minha carta de ABC. E eu, amedrontado, mas orgulhoso, respondi que sabia de cor todas letras do alfabeto. Na verdade, até havia folheado a dita cuja, mas não vi nada que agradasse nela. E abandonei a minha pesquisa ao não encontrar nenhuma gravura para me encantar, como as que havia na Cartilha do meu primo, por exemplo. Encontrei somente umas letras, ora isoladas, ora juntas, que eu não sabia decifrar.

Simpática, a professora, vendo o meu acanhamento, disse-me brandamente que eu já estava bem adiantado, que agora era só aprender a juntar as letras e logo estaria lendo desembaraçadamente. Foi a minha primeira alegria naquela tarde. Não achei nada fácil, porém, soletrar os monossílabos lá mais para o meio da página da Carta. Ha, he, hi... me embananei e fiquei para trás. Os colegas foram saindo à medida que a professora dava como completada a missão deles naquele dia. E eu fui ficando. Meu primo acabou a lição e se aproximou de mim para informar que ia lá para o sítio do tio Bazu. Que me esperaria lá. O sítio do nosso tio ficava na rua de trás, a umas duas ou três centenas de metros. Era lá que nós passávamos os dias em intermináveis brincadeiras. Quintal cheio de fruteiras, muitos pássaros, e uma cacimba cuja água aflorava do solo e escorria fresca e cristalina para entrar em um brejo logo abaixo. Era o nosso Shangri-lá, o lugar mais aconchegante do mundo para nós. Eu fiquei desesperado para encerrar a minha tarefa daquele dia, mas terminei por ficar por último. O nervosismo e a vontade de estar naquele momento em outro lugar embotou a minha mente, bloqueou-a e eu tive dificuldades para aprender a lição. Pra que que eu fui dizer que conhecia já as letras do alfabeto?

Entretanto, foi ali que tudo começou.  Naquela salinha simples, em um ambiente que eu conhecia muito, pois não havia um só dia que eu não entrasse naquela casa amiga, e que eu considerava como um prolongamento da dos meus pais, comecei a aprender o ofício de ler. Tão importante para mim como o ato de aprender a caminhar. Hoje sei disso. Não sei quanto tempo durou. Acho até que não foi muito, pois, não lembro mais nada das aulas seguintes.

Certa vez, adquiri um livrinho do espanhol Blasco Ibánez(La Barraca), um romance que contava a história dos irrigantes de um vale nas proximidades de Valência, no seu país. Trata-se de um livrinho fantástico, uma edição portuguesa de bolso, publicada em 1977, e que ainda hoje guardo comigo por considerá-lo um dos ótimos romances que li em toda a minha vida. Na história, o viramundo D. Joaquín, desempenhando ali a função de mestre escola – ele que já havia trabalhado em quase todos os ofícios pelo mundo que conheceu, desde guarda-livros até a profissão de marinheiro, ele já ocupara – agora tentava fazer com que um grupo de crianças totalmente ignorantes aprendesse alguma coisa de útil naquela humilde e improvisada sala de aula. A escolinha funcionava na sua própria cabana, e alguém que passasse na frente daquele casebre ouviria sair lá de dentro “um rumor de vespeiro, um sussurro de colmeia”, como enunciava o autor, tal o barulho que a garotada fazia e que escapava lá de dentro pela única porta de saída. Ibánez ainda afirma que haviam apenas três Cartilhas na escola que eram utilizadas por todos.

Quando li esta passagem do texto recordei a minha primeira escola formal. Haviam muitas similaridades entre os dois ambientes de estudo.

Muitos anos depois, agora já no século XXI, estava eu realizando um trabalho de campo em um assentamento do INCRA existente em uma cidade próxima a Teresina, denominada José de Freitas, quando passei em frente a uma escola rural que funcionava dentro do próprio assentamento. A escola recebia as crianças filhas dos assentados, além de outras mais das redondezas. A cidade ao qual me refiro fica a pouco mais de cinquenta quilômetros da capital. Naquele dia, já concluído o meu trabalho, passei em frente àquele colégio simples e que ficava ao lado da casa de farinha, só com uma sala de aula, e vi que o trabalho daquela tarde ainda não havia se encerrado.

Pedi ao motorista que parasse o carro e desci para verificar o que acontecia. Olhei para dentro da sala de aula e notei que havia crianças misturadas com adolescentes, gente de todas as idades iniciais e de todos os tamanhos. Contudo, dentro da sala, os alunos estavam divididos em quatro grupos distintos, com um espaço razoável entre eles. Observei também que a professora fica se deslocando de um grupo para o outro e conferia o que cada um dos alunos fazia. O quadro negro (esse era verde, de cimento, e estava incrustado na parede; era também bem grande, medindo dois metros e meio de comprimento, por cerca de noventa centímetros de altura), fora dividido com alguns traços verticais de giz e, em cada espaço delimitado haviam escritos variados. Enquanto um mostrava as letras do alfabeto e muitos monossílabos, outro trazia a descrição do que era um artigo, um substantivo e um adjetivo. Tratava-se de uma classe multisseriada, como são conhecidas as classes com alunos de várias séries distintas em um mesmo espaço.

Recordei naquele momento a minha escolinha simples lá do Curador. Achava, contudo, que não existiam mais salas de aula com esse tipo de formatação. Esperei que a professora acabasse a aula, o que não demorou muito, e me dirigi a ela para perguntar se era aquilo mesmo que eu estava pensando. E ela me respondeu afirmativamente. Disse-lhe não acreditar que aquilo ainda acontecesse no país, e tão perto da capital do estado. Ela então me respondeu que, infelizmente, essa ainda era uma realidade por ali. E que devia ocorrer do mesmo modo em todos os municípios do estado.

Perguntada como ela administrava aquilo, respondeu-me que com muita dificuldade e uma dose enorme de frustração, pois a maioria dos alunos pouco ou nada aprendiam naquele sistema arcaico de ensino. Afirmou, por fim, que haviam crianças cursando a terceira e a quarta séries que praticamente não sabiam ler. Mas que ela não podia reprovar ninguém. Que havia uma fiscalização constante do município no sentido de não se reprovar ninguém, pois os recursos advindos do programa de ensino do governo federal, eram transferidos aos municípios por cabeça, por aluno. E ninguém poderia repetir o ano.

Sai de lá triste com a realidade do ensino no meu país. Sobretudo para as camadas mais pobres da população. Livros, contudo, haviam muitos, e variados. Uma mesa de canto estava abarrotada deles, e cada aluno possuía muitos também. Os municípios gostavam de investir na compra de material escolar. E na contratação de ônibus para realizar o transporte dos estudantes das outras comunidades.  Sabemos porque.

 

 

 

5 comentários:

  1. Excelente artigo, que os alunos não sigam o exemplo dos gestores!

    ResponderExcluir
  2. Um lapso de tempo imenso entre a tua iniciação nas letras e tua constatação de que aquele antigo método ainda é prática atual. Lamentável. Também tive a experiência de frequentar uma sala multisseriada,o rendimento, óbvio, é péssimo.
    Muito boa a tua crônica.

    ResponderExcluir
  3. Realmente, essa era nossa realidade naquela época! Excelente relato. Triste constatar que a pesar dos grandes avanços tecnológicos, ainda exista este tipo de ensino... que Deus tenha misericórdia do nosso país e dê uma consciência altruísta aos nosso gestores. Que não permita que seus interesses (gestores públicos) pessoais se sobreponham ao interesse do todo(social) . Deus salve o Brasil! Texto muito bom!!!👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

    ResponderExcluir
  4. Bom dia, meu amigo Dr. José Pedro Araújo Filho!
    Li, em rápido fôlego, o seu brilhante texto.
    Vi em cada passagem relatos sedimentados em experiências do seu mundo infantil, que por sinal, são experiências vividas também por nossas gerações, observada a pouca diferença de idade que temos. Nasci em 1960.
    Minha primeira experiência em sala de aula demorou um pouco. Eu já estava com 11 anos de idade, em 1971, quando fui matriculado no Grupo Escolar Marechal Ribas Júnior, aqui em Axixá do Tocantins. À época a única escola do município.
    Fui alfabetizado pela professora Creusa Torres Lima, uma humilde senhora que veio de Nova Russas - CE.
    Com a graça concedida pelo Criador ela continua morando aqui e possui memória excelente. Já produzi farto documentário sobre ela para meus arquivos de memorialista e de historiador.
    Voltando ao texto. É lamentável que depois de tantos sóis passados o nosso país ainda ostente a triste realidade de salas multisseriadas. Continuamos com ensino fundamental de baixa qualidade, pois boa parte dos professores são contratados, sem concursos públicos, apenas pelo indicativo político e muitos não possuem formação adequada para o exercício do magistério.
    Tem mais: a escola não pode reprovar, pois isso repercute no orçamento do município e nos programas sociais do governo.
    A frequência às aulas garantem aos pais e responsáveis o bolsa família. Isso para muitos é mais importante do que o nível de aprendizado obtido na escola.
    A escola cumpre o seu papel, com a simples averiguação da presença do aluno e ainda recebe a chancela do Conselho Tutelar, pois a criança ou adolescente não está perambulando pelas ruas. É um tipo de internação forçada pelo sistema atual.
    Os alunos avançam de série e seguem praticamente analfabetos, pois não possuem a capacidade de aprender, desaprender e aprender novamente.
    Meu amigo, sigo o meu rosário de críticas e trago a lume outra triste página encontrada na atualidade. Pasmem! Vejo aqui em minha pequena cidade uma briga desenfreada do poder público municipal com o Estado. Há uma disputa feia pelos alunos, haja vista que cada aluno tem um valor econômico, o que já foi objeto de sua alentada análise, e uma importância política para quem consegue conquistá-los. Carros de som circulam pelas ruas oferecendo brindes para quem matricular seus filhos nesta ou naquela escola. Quem tem contrato com a prefeitura se matricular os filhos na escola estadual corre o perigo de perder o emprego. É uma ameaça constante.
    Não há harmonia na gestão da educação. Quebra-se, assim, um dos princípios previstos para a educação na Carta Magna.
    Fico por aqui!
    Mais uma vez, parabéns pelo seu texto que vai agradar a todos, principalmente, aos integrantes da nossa geração!
    Axixá do Tocantins, 10.4.2021
    Remy Soares

    ResponderExcluir
  5. Ensino Multisseriado - Um Obsoleto Alfarrábio.

    Meu amigo, você abordou no seu texto acima um assunto sobre o qual eu já havia discutido com alguns especialistas do ramo educacional aqui em Brasília que têm a mesma perspicácia que você, eu e muitos outros na busca de um entendimento plausível que explique a razão pela qual até hoje ainda temos no Brasil o ensino multisseriado.

    A educação pública brasileira percorreu uma trajetória histórica de contradições em relação às concepções e aos modelos educacionais que visam à eficácia do ensino. A modalidade multisseriada se constitui em uma forma predominante de oferta do ensino fundamental no meio rural da Região Amazônica e de seu entorno. No entanto, as classes multisseriadas parecem relegadas a um patamar inferior ou quase inexistente nas discussões das políticas públicas sobre a prática pedagógica e na formação dos docentes que atuam nesse tipo de ensino. Esse fato é comprovado pela escassez de publicações sobre o assunto e pelas estatísticas que compõem o censo escolar oficial. Apesar do grande contingente de escolas e professores que atuam nos territórios longínquos da Região Norte e Nordeste do Brasil, os dados apontam que, somente no Estado do Acre, mais de 70% das escolas, entre estaduais e municipais, são multisseriadas.

    Como parte integrante do sistema social vigente, a estrutura escolar brasileira passa por um processo de desgaste que abala toda a conjuntura do ensino no País, independentemente de sua modalidade ou gestão. Um dos problemas existentes nas escolas rurais do Brasil é a oferta do ensino multisseriado e sua eficácia no processo de ensino-aprendizagem dos educandos.

    Será que essa modalidade pedagógica ainda predomina no interior do País, porque os governadores e prefeitos sorrateiramente continuam levando como no passado o quinhão maior da contratação de cinco professores por apenas uma para adoção dessa modalidade aniquilante do ensino básico brasileiro, uma vez que o dinheiro que é repassado pela União aos estados e municípios é pouco e dessa mixaria eles ainda retiram aquela parte que vai direto para o bolso do governador e prefeito, bem como a outra, cujo repasse é feito ao familiar o qual é dono de uma livraria, que, por sua vez, divide essa fatia do dinheiro público com o correligionário do chefe do executivo estadual e municipal, empurrando para o programa de ensino fundamental um arsenal de cultura inútil que só existe em sua livraria, que não tem nada a ver com o currículo escolar e por estar ali paralisado, porque ninguém compra, ele, cabo eleitoral, vende ao estado ou município os seus alfarrábios para escola pública simplesmente para desencalhar aquilo que nem doado nenhum ser humano bem intencionado quer e assim todo mundo lucra, exceto os alunos que não aprendem quase nada e os mestres que ficam sem saber qual é a medotologia mais adequada para tal modelo de ensino que não encontra sequer um paralelo na pedagogia moderna.

    Por conseguinte, o ensino brasileiro transformou-se na seguinte modalidade pedagógica: a União faz de conta que custeia o ensino, os estados e municípios seguem a mesma lógica de repasse, os professores fazem de conta que ensinam e os alunos, por sua vez, fazem de conta que aprendem.

    José Alcenor Vieira de Araújo é Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade do Distrito Federal, Bacharel em Ciências Farmacêuticas pela Universidade Anhanguera do Distrito Federal, antiga Faculdade Juscelino Kubitschek, Servidor Público da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal aposentado, músico, poeta e cronista.

    ResponderExcluir