segunda-feira, 29 de março de 2021

O Mártir do Gólgota e eu


 

Elmar Carvalho é poeta, cronista e romancista, além de membro da APL.

Dos nove para os dez anos de idade fui inoculado pelo vício da leitura. Como já relatei alhures, nessa idade fui morar na zona rural de Campo Maior. À falta da movimentação, dos barulhos, das luzes elétricas e das brincadeiras da cidade, me voltei para os livros da pequena biblioteca de meu pai. Logo, os li todos. De forma que, a cada sete ou quinze dias, quando meu pai ia à cidade, de lá voltava me trazendo vários volumes, tomados por empréstimo das bibliotecas de minha madrinha Mirozinha, prima de minha mãe, e da do Grupo Escolar Valdivino Tito, onde ela lecionava.

Entre os poucos livros de meu pai, havia algumas antologias didáticas e um livro sobre a história da Literatura Brasileira, este contendo comentários críticos, pequenos trechos literários exemplificativos do comentário e a síntese biográfica dos autores. Foram escritos ou organizados por, entre outros, Aída Costa e José de Sá Nunes. Eu os li e reli várias vezes, e procurei lhes assimilar as lições, os exemplos e o que eu achava mais bonito e emocionante. Daí me veio a vontade de ser escritor. Assim, li os principais livros da literatura infantojuvenil, e mais tarde vários clássicos da literatura brasileira e mundial, sobretudo romances e livros de contos e poemas.

Do acervo de meu pai, li partes do romance O Mártir do Gólgota, de Henrique Pérez Escrich. Li apenas partes, porque a obra se encontrava dilacerada e esquartejada. Muitos anos depois, ao indagar sobre a causa de sua mutilação, meu pai me revelou que eu próprio o dilacerara, quando ainda infante. Contou-me que sua mãe, Joana Lina, ao brincar comigo, e, não desejando me contrariar, deixava que eu rasgasse muitas páginas literárias.

Quem diria que, alguns anos depois, em lugar de verdugo, eu fosse me tornar um amante inveterado de obras literárias. Tendo minha avó falecido em 30/03/1963, eu forçosamente teria que ter menos de sete anos. Em virtude de não ter nenhuma lembrança desse meu vandalismo literário, creio devesse ter 3 ou 4 anos. Como me causava desgosto eu não poder acompanhar a sequência de todas os relatos desfiados ao longo do volumoso livro, em que era romanceada a vida de Jesus Cristo.

Em Parnaíba, no início de minha juventude, me veio uma enorme vontade de ler e/ou reler esse romance, que pelos motivos ditos acima não o lera de forma completa. Além do mais, já lá se iam mais de década em que eu lera várias de suas páginas. Porém, não o encontrei à venda através do sistema de reembolso postal, muito menos em livraria. Também não o encontrei em biblioteca pública ou particular a que tivesse acesso. Meu pai ainda consultou alguns amigos que poderiam tê-lo, mas não teve sucesso nessa busca. Nem mesmo o Monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio, que fora meu professor no curso de Administração de Empresas na UFPI, o tinha. Fiquei frustrado com essa leitura incompleta.

Contudo, certo dia, mais ou menos em 1988, já morando em Teresina, conversei com um poeta sobre essa minha busca inglória. O vate vendia livros de sua propriedade e autoria, e alguns de outros autores, e, quiçá, de propriedade, digamos, indefinida. Conhecendo o meu forte desejo de reler O Mártir do Gólgota, me disse que o conseguiria para mim. De fato, poucos dias depois ele me retornou à SUNAB, que então já funcionava no prédio da Delegacia do Ministério da Fazenda no Piauí.

O poeta notando nos meus olhos e na minha fala certa ânsia e sofreguidão, foi implacável; me cobrou um bom preço, e ainda alguns livros “de volta”, ou seja, como parte do pagamento. Mesmo assim não me chateei e fiz o negócio de bom-grado. Entre os livros que me exigiu, me lembro bem que um era Os Sertões, de Euclides da Cunha, em bonita edição do Círculo do Livro, que eu adquirira pelo serviço de reembolso postal, hoje em desuso.

Achei que não lhe fosse degustar a leitura com o mesmo prazer que sentira, quando, garoto de dez ou onze anos, o fiz pela primeira vez. Mas o fiz com a mesma volúpia intelectual de outrora, quando tudo me era novidade e motivo de encantamento. O volume, de aspecto bem antigo, no formato 18cm por 14cm, com 757 páginas, não tem apresentação nem prefácio, e sequer o nome da editora e data da publicação.

Nesta terça-feira, dia 23, recebi, pelos Correios, uma nova edição desse romance, que comprei através da Amazon. Tem o subtítulo, que não aparece em meu volume antigo, de “tradições do oriente”. Foi publicado pela Sirius Editorial em abril de 2019. Nas informações técnicas consta que a capa é do pintor holandês Pieter Lastman (séc. XVII), que reproduz sua tela A Crucificação. Traz várias gravuras de Gustave Doré e ilustrações desentranhadas da 2ª edição espanhola (1866), realizada por L. Lopez Y A. Gulon, Editores.

Tem ainda orelha, apresentação, nota biográfica e uma introdução, esta do próprio autor, contida em meu velho alfarrábio. Pinço da orelha o seguinte trecho: “Combinando História e ficção, Pérez Escrich consegue em O Mártir do Gólgota respeitar a veracidade substancial da figura de Cristo sem sacrificar sua imaginação de romancista. // O cenário político da Judeia na época do nascimento de Cristo, o mundo decadente da Roma imperial, a sequência histórica da vida de Cristo à luz do Evangelho, a perseguição dos cristãos pelo paganismo romano, são mostrados nesta obra com fidelidade à essência da sua doutrina.”

Na Nota Biográfica nos é dada a informação de que o romancista nasceu em Valência em 1829. E que, aos 19 anos, ante a morte repentina dos pais de sua jovem namorada, se sentiu compelido a se casar com ela e a assumir a criação de seus quatro irmãos. Em determinada etapa de sua vida, chegou a ser um homem rico, graças à popularidade de suas obras. Houve época em que faturava cerca de 50.000 pesetas por ano.

Ajudou amigos e escritores iniciantes. Para melhor recebê-los, passou a viver como um príncipe, em hotel de luxo. Contudo, sempre se manteve como um perfeito cavalheiro, homem cristão e bom que era. No melancólico crepúsculo de sua vida, velho e esquecido, passadas as pompas de seu tempo de glória, precisou ocupar cargo de pequena remuneração. Diz a nota biográfica: “Homem muito gentil, cavalheiro exemplar de excepcional simpatia, morreu aos 68 anos em 1897.”

O romance, em estilo folhetinesco, como era moda na Europa, na época, foi publicado pela primeira vez em 1863 e 1864, em cinco volumes. Misturando história e ficção, o autor colheu os elementos do conteúdo de sua obra magna em livros de História e na Bíblia, e sem dúvida na tradição oriental, como sugere o subtítulo e, talvez, em Evangelhos apócrifos, a que possa ter tido acesso.

Bira Câmara, autor da apresentação e do projeto gráfico, entende que nele predomina a fantasia, e afirma que “se o romance histórico já representa um problema, o romance histórico-religioso levanta muito mais”. Acrescenta que “ao contrário do juízo do público leitor que consagrou esta obra através do tempo, os críticos em geral fazem restrições a ela, que está longe de ser uma obra-prima”; todavia considera que ela teria passado pelo teste do tempo e caído no gosto popular, conforme o comprova “o grande número de edições e de leitores”, que a teriam elegido como “um dos mais belos romances do gênero folhetinesco”.

Entretanto, não informa que restrições os críticos lhe teriam feito ao longo de mais de século e meio de sua primeira edição. Tampouco esclarece porque não poderia ser uma obra-prima. Talvez lhe falte a esmerada técnica da romancística de um Flaubert, sobretudo em Madame Bovary. Pode ser que haja algum derramamento emocional, um ou outro exagero descritivo, e talvez um grande número de relatos permeando o que deveria ser a história principal. Todavia, no relato de muitas aventuras e na dissertação sobre alguns fatos fica claro que ele soube pintar o cenário de forma atraente e soube dar vida a seus personagens, quase nos causando a sensação de estarmos assistindo a um filme.

Não se pode negar, Pérez Escrich era um grande contador de histórias. Sabia emocionar e mesmo comover o leitor. As várias histórias que se sucedem ao longo dos sucessivos livros, enfeixados nas duas partes do volumoso romance, nos atraem e nos atiçam o imaginário, e os trechos verídicos, elaborados à luz da História e dos Evangelhos, servem para aprimorar e reavivar os nossos conhecimentos sobre Jesus Cristo e sobre outras figuras bíblicas. É um livro que, pela terceira vez, estou lendo com prazer.

“Sem faltar ao dogma, muitas vezes havemos adotado o estilo poético, que não fica mal a um livro desta índole”, disse o autor em sua introdução. De fato, em certos momentos, o ritmo de sua prosa se reveste de bela e comovente poesia. E então não nos podemos esquecer da poesia que flui em muitas passagens do Velho e do Novo Testamento, como nos Salmos, nos Cantares de Salomão e nas parábolas e discursos de Jesus.

Suas descrições, em alguns trechos, sobretudo quando exaltam o céu da Galileia e as cambiantes cores do crepúsculo, quando parecem aspirar o aroma balsâmico das faldas do Carmelo, quando evocam os imponentes e odoríferos cedros das cordilheiras do Líbano, adquirem o ritmo e a fluência de exuberante prosa poética.      

 

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