sábado, 15 de janeiro de 2022

REMINISCÊNCIAS DA CHUVA


 

José Pedro Araújo

Nesta noite a chuva caiu forte sobre a cidade. Aguaceiro, daqueles volumosos e sem trégua. Pela manhã, ao acordar, e ainda agora quando digito estas linhas, a chuva não interrompeu o seu movimento permanente entre as nuvens e o solo já encharcado. Gosto quando ela vem assim, mansa e contínua, sem o alarido dos relâmpagos e trovões ribombantes. Aí me vêm as lembranças de outras chuvas, e uma chegou de tão longe, de uma época da minha distante meninice, como, aliás, ocorre-me amiúde, quando estou apreciando o belo espetáculo da chuva a cair.  Vou descrevê-lo para ver se me deixa em paz já que me ocorre com tanta frequência.  

Eu deveria ter uns oito anos de idade, quando minha mãe precisou viajar para outra cidade para se submeter a uma cirurgia para retira o seu apêndice. Viajara na companhia do meu pai, e eu fiquei hospedado com o meu tio Zeca Barros, em uma casa que ficava muito próxima à nossa. Fiquei lá porque havia um numeroso grupo de crianças com quem brincar, a começar pelo meu principal parceiro de traquinagens, meu primo Dió.

Aquele era um ano de inverno pesado, como de resto acontecia naqueles anos passados lá no Curador. Naquela manhã ao qual a história se deu, a chuva caia forte e sonora, e havia caído sem trégua durante toda a noite. Já era manhã avançada e ela ainda permanecia tamborilando forte e sem descanso no telhado.

Já havíamos tomado café há muito tempo, e ela a cair indomável. Café, diga-se, acompanhado dos tradicionais bolinhos de arroz preparados pela minha tia Lourdes, iguaria divina conhecida por lá como Chapéu-de-Couro, um pequeno disco avermelhado parecido com aquele icônico chapéu de vaqueiro nordestino. Esse bolinho de massa de arroz, era frito em óleo de coco babaçu, e pra mim é a delícia das delícias. Enquanto nós permanecíamos aguardando o término do aguaceiro para poder sair pelo quintal, iniciando uma brincadeira qualquer, a paciência começava a ficar muito reduzida, e logo comecei uma rápida altercação com a minha prima Rute. Como o caso ameaçava se encaminhar para um desforço, meu tio Zeca ralhou de lá e mandou que parássemos com aquilo. Não demorou e logo retomamos a porfia. Outro ralho. E depois de rápida interrupção, voltamos à discursão desatinada.

Quando dei por mim, já foi o meu tio com um cinto nas mãos e vindo na nossa direção. No seu trajeto eu me encontrava, ele chegou primeiro à minha prima, e presenteou-a com algumas boas lapadas. Não tive dúvidas: parti em desabalada carreira em direção à porta da rua e mergulhei no aguaceiro que caia lá fora. A rua, naquele tempo sem calçamento, estava inundada e formava uma corrente forte tal qual um pequeno riacho. Ainda pude ouvir a minha tia gritando por mim e me admoestando que eu acabara de tomar café quente. Não dei ouvidos a ela pois queria apenas escapar da mão pesada do meu tio e do seu cinturão de couro grosso e rígido.

Tomei a direção da casa da minha avó, que não ficava distante. No trajeto, quando ia passando em frente à minha casa, notei que a luz estava acesa e a porta aberta. Não tive dúvidas, mudei a direção da minha corrida e adentrei a minha casa com a velocidade de um corredor de cem metros rasos. Com enorme alegria vi que meus pais haviam retornado da viagem. Estava ali a minha salvação. Daquela vez escapei, mas, não sei porque cargas d’água, essa lembrança sempre volta a minha mente.

Outra lembrança que vem forte é a do riacho Firmino que passava a pouca distância da minha casa paterna. A primeira pergunta que me vinha em momentos de chuva incessante, era se ele estava cheio e com possibilidades para uma boa pescaria e um banho cheio de riscos, uma vez que lá praticávamos os nossos saltos ornamentais sem o menor cuidado. Nunca imaginei que aquela aventura que tanta importância tinha para mim, a ponto de se transformar na brincadeira mais agradável entre tantas outras, um dia fosse desaparecer da minha vida. Nessa altura da minha caminhada por este vale de lágrimas e boas lembranças, já faz mais de uma metade de século que eu não mergulho naquelas águas de tanto encantamento e que me custou umas boas surras também. Quando ninguém mais me impedia de mergulhar naquele manancial, eu me afastei definitivamente do riacho Firmino. Vá entender a vida.

As chuvas que são tão esperadas pelos agricultores, às vezes são também amaldiçoadas pelos mesmos, quando caem em volume maior do que o necessário. O espetáculo de um rio cheio e a se derramar sobre as suas margens, é bonito para quem reside longe do seu curso, mas é uma imagem apavorante para quem mora nas suas imediações ou precisa transitar para a sua outra margem. No começo da minha vida profissional, residi em uma pequena cidade do estado do Tocantins, Araguatins, às margens do belo rio Araguaia. De caudal portentoso, aquele tributário do Tocantins leva dias, quase mês, para chegar à altura da sua margem naquele estado, mas também outro tanto de dias para apear dela. E na entrada da cidade, um pequeno afluente seu fica durante todo este tempo represado e a cobrir a sua pequena ponte, cortando o acesso dos veículos que chegavam ou saiam da cidade. No primeiro ano em que deparei com esse fato, fiquei vários meses sem poder deixar a pequena cidade por conta desse fato. E isso me aborreceu enormemente, senti-me um prisioneiro naquele lugar. E naqueles dias, recordei muito da carreira que havia tomado para fugir de uma surra. E olha que nem cheguei a apanhar. E também não guardo qualquer mágoa daquele acontecimento. Ao contrário, tio Zeca era um dos tios mais queridos e que me deixou muitas saudades quando partiu para eternidade. Como explicar isso, então?

São quase dez da manhã e a minha mulher acaba de me informar que a chuva está passando. Não me alegrei nem um pouco. Afinal, não tenho nada para fazer na rua nesta manhã de sábado. Aqui em Teresina nem tem praia, a as que tem, nos rios Parnaíba ou Poti, há anos não desfruto delas. Também não vou sair para brincar ou para praticar qualquer coisa assim.

Então, pode continuar a cair assim, mansamente e sem o ribombar dos trovões, chuvinha amiga. E que me perdoem aqueles que estão a esperar pelo seu término para cuidar dos seus afazeres. É que eu acho a chuva um dos espetáculos mais belos de tantos quantos Deus nos proporciona. Mesmo sem estar aflito e a querer notícias se ela está caindo farta sobre as cabeceiras do riacho da minha infância, aprecio olhar da varanda da minha casa a chuva tamborilar no telhado e cair estrepitosa no chão, lançando borrifos frios nos meus pés.

Tenho outras lembranças comigo de outros invernos ditos tenebrosos, mas estes ficam para outro momento, pois o texto já está ficando longo demais, e isso pode desagradar aos meus poucos leitores.    

3 comentários:

  1. Que maravilha de texto, meu amigo. Sempre é um deleite lê teus escritos. Vou postar no Grupo PFA

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  2. Dr. Araújo, parabéns por esse belo texto memorialístico. A chuva mansa, sem relâmpago e trovões, sempre é um espetáculo. Recordo das minhas chuvas quando eu morava nas beiras do rio Marataoã. Sobre esse tema, escrevi um singelo poema que dei o título "Na madrugada de um certo inverno". Aliás, por razões sentimentais, fiz constar esse poema no nosso livro "O MENINO, O RIO E A CIDADE" (pg. 315).

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  3. Meu amigo, eu sou um apreciador do ritmo dos pingos ao cair no chão, eles não só relaxam a minha alma como acalmam o meu coração.
    Você descreveu com muita propriedade as boas lembranças que as chuvas mansas da nossa terra nos trazem, deixando por onde suas águas passam o húmus fértil que aduba as plantações de arroz que neste mês de janeiro verdejam sobre o solo das vazantes do Charcão.

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