sábado, 4 de novembro de 2023

A REVANCHE DOS PÁSSAROS


 

Raimundo de S. Lima(*)

Vou contar-lhes uma história difícil de acreditar. É sobre o comportamento dos pássaros que, na minha opinião, nunca poderia ser semelhante à conduta humana, permeada de sentimentos hostis, como raiva, revolta, vingança e tantos outros. Reconheço, todavia, que eu estava equivocado, pois tenho presenciado e ouvido muitos relatos sobre pássaros revoltados, e até mesmo vingativos.

Pensando bem, quando ocorreu a queda do homem, devido ao pecado de Adão e Eva, as consequências de tal transgressão recaíram sobre toda a criação.

Alguém pode se insurgir contra essa verdade, mas quem é o homem para julgar a Deus? Quem é a criatura para duvidar do Criador? O que nos conforta é o fato de sabermos que um dia Deus cumprirá a sua promessa e restaurará a terra, momento em que nos concederá uma nova terra e um novo céu, ou seja, retornaremos ao estado de inocência, que imperava antes do surgimento do pecado.

Não há, entretanto, como se falar sobre os problemas que envolvem essas criaturas de Deus sem se adentrar no estudo das soluções apresentadas pelo próprio Deus, em sua Santa Palavra, mas isso é tema para outra narrativa.

Voltemo-nos, portanto, para o assunto que nos propomos a tratar. Contaremos, em primeiro lugar, a história de

O TUCANO

Todos nós sabemos que o Tucano é um dos pássaros mais bonitos da fauna brasileira. Ele é majestoso e possui bico longo e cores fortes, o que chama a atenção de todos. O Tucano de nossa história, além de preencher todos esses predicados, também se poderia dizer que tinha outro encanto, ou seja, uma personalidade mansa e irresistível, que cativava todos que o conheciam. O seu tutor, um amigo nosso, tratava-o como a um hóspede merecedor de toda atenção. O seu viveiro era espaçoso e havia sido construído pelas mãos de um mestre carpinteiro, o que lhe emprestava um ar de austera beleza. Sempre que alguém se aproximava dele, encontrava-o repousando em seu poleiro, com ar solene, que transmitia uma certa paz. E assim, passavam-se os anos sem que o nosso personagem apresentasse qualquer mudança de comportamento. Mas, num certo dia, ele percebeu a presença de um bando de pardais que, como quem nada quer, circulava pela varanda da casa onde fora construído o viveiro, porém sem se aproximar muito do grande pássaro. No dia seguinte, o tucano recebeu nova visita, mas não demonstrava ter percebido a aproximação dos intrusos, permanecendo acomodado em seu trono, e aparentando estar totalmente desinteressado sobre o que ocorria nas proximidades de seu “lar doce lar”. Os pardais, a cada investida que faziam, aproximavam-se mais e mais do viveiro, até que começaram a se alimentar das migalhas da ração que escapavam do comedouro do tucano, o que o deixara em estado de alerta, sem que, no entanto, tenha demonstrado qualquer reação. Face à aparente inércia do tucano, os pardais continuaram vasculhando tudo em redor do viveiro até que encontraram uma brecha na tela e adentraram no local proibido, mantendo, por cautela, uma certa distância do dono da casa, que permanecia contemplativo como um monge tibetano. Diante desse quadro, os pardais perderam totalmente o medo e, com a barulheira que lhes é peculiar, resolveram apoderar-se do comedouro do Tucano que, inesperadamente, reagiu de forma truculenta, batendo violentamente com as asas sobre o poleiro, o que deixou os pardais totalmente atordoados, momento em que tocou o alarme “salve-se quem puder”. No desespero, a maioria dos pardais não conseguia encontrar o lugar da saída. O Tucano permaneceu pousado no lugar de costume e, sempre que um dos pardais passava próximo, ele abria e logo fechava o grande bico, estraçalhando a pequena ave, em questão de segundos. Os poucos pardais que conseguiram escapar do viveiro, fugiram dali para nunca mais voltar. Por sua vez, o tutor do Tucano, que não tinha conhecimento desse seu lado obscuro de predador de pequenos animais, dali em diante passou a vê-lo com outro olhar, em face da quebra de confiança!

O segundo episódio de nossa história se deu entre

BEM-TE-VIS X CORRUPIÕES

Pouco tempo depois da crise de selvageria sofrida pelo nosso protagonista maior, o belo tucano, proibiu-se, em todo o território nacional, a criação de pássaros silvestres em gaiolas ou outras prisões, salvo raríssimas exceções, e mediante a competente autorização dos órgãos ambientais. Porém, mesmo vivendo em liberdade, em seu habitat natural, os pássaros não estão livres de apresentarem comportamentos reprováveis, prova disso foi o que aconteceu com os nossos novos personagens. A história se deu em um lindo sítio situado no litoral piauiense que, por coincidência, pertence ao antigo tutor do tucano. Em um belo dia, o referido senhor percebeu um comportamento atípico do casal de bem-te-vis que vivia em torno de sua casa, e logo descobriu que ambos estavam empenhados em frenético trabalho de construção de um ninho. Quando um chegava com um garrancho no bico, o outro partia em direção ao bosque à procura de novos materiais, como capim seco, crina de cavalo e até mesmo penas de galinha. Qualquer objeto era bem-vindo para a construção do novo lar, onde depositariam seus ovos e os chocariam até que eclodissem, anunciando a chegada de seus lindos filhotes. Tudo transcorreu bem até o término da construção. A beleza do ninho saltava aos olhos dos visitantes do sítio, mas o sonho durou pouco, pois antes que os bem-te-vis pusessem os ovos, receberam a indesejável visita de um casal de Corrupiões que, sem qualquer aviso, partiram para cima deles com ferozes bicadas e unhadas, até que lhes tomaram o ninho. Derrotados, os infelizes pássaros se afastaram para longe da vista de todos, mantendo-se escondidos por algum tempo. Nesse ínterim, os Corrupiões se regozijaram pela aquisição da casa, que nada lhes custara. Após a invasão da propriedade alheia, eles sentiram a necessidade de fazer um passeio pelo sítio à procura de uma saborosa fruta para matar a fome. Os bem-te-vis, que estavam à espreita, não perderam nenhum segundo, e lançaram-se em direção ao ninho, destruindo-o totalmente, graveto por graveto, em um trabalho inverso ao realizado quando de sua construção. Grande foi a decepção dos Corrupiões ao retornarem e não encontrarem mais o ninho, pois os bem-te-vis deixaram o local totalmente limpo. O proprietário do sítio assistiu, perplexo, ao desenrolar dos acontecimentos, perguntando de si para si como pudera se surpreender, mais uma vez, com o comportamento dos pássaros.

Por último, vamos relatar o acontecimento relacionado aos

ANUS-BRANCOS

O Anu-branco, também conhecido no Piauí como Pipiriguá, é uma ave bonita e sociável, geralmente encontrada em bandos familiares. Os Anus possuem voz forte e estridente e estão sempre cantando, quando pousados, e gritando, quando em pleno voo. Então, é quase impossível se contar a história de um único Anu-branco, visto que eles agem sempre em grupo. Feitas estas considerações, vou narrar o que uma família de Anus-brancos aprontou em nossa casa de praia. Devo esclarecer que o nosso relacionamento com os Pipiriguás já vem de longa data, pois sempre que viajamos, e isso fazemos com frequência, eles se encarregam de fazer a limpeza externa da casa, alimentando-se de ratos, rãs, pequenas cobras, baratas e outros insetos, uma vez que são excelentes predadores. Porém, de algum tempo para cá, eles vinham dando sinais de que queriam cobrar a conta, uma vez que passaram a dormir sobre o sofá que fica num dos terraços do segundo pavimento de nossa residência. Teríamos concordado com eles, não fosse a grande bagunça que faziam e a sujeira que deixavam para limparmos no dia seguinte. Exigimos, então, que eles não mais usassem o referido terraço, mas continuamos a permitir que desfrutassem das lindas carnaubeiras que temos na frente de nossa casa. Tudo parecia bem até que, quando retornamos da última viagem, encontramos entre as palhas de uma de nossas árvores um ninho, relativamente grande, onde já haviam colocado um lindo ovo. Ao perceberem a nossa presença, eles logo voaram, com grande algazarra. Diante de tal quadro, dirigimo-nos ao terraço de baixo e discutimos sobre a dificuldade de continuarmos a convivência amigável com os nossos novos vizinhos, e deliberamos que seria melhor pedirmos que eles se retirassem dali.  Assim, subimos novamente para comunicar-lhes a decisão e, para nossa surpresa, percebemos que não havia mais nenhum Pipiriguá ali. O ovo também tinha desaparecido, e o ninho encontrava-se parcialmente destruído. Até o presente momento, não sabemos o que fazer para reatarmos a amizade com os nossos antigos visitantes. Mas há uma esperança, pois hoje de manhã percebemos que eles pousaram e ficaram por um curto período sobre as palhas de nossas carnaubeiras. Compreendemos, contudo, que desta vez precisaremos ser bem claros com os Pipiriguás, delimitando as áreas de nossa casa e o uso que eles podem fazer delas, prevenindo-se, desta forma, futuros desentendimentos. Assim, não obstante sua aparente inocência, não há como negar que, como habitantes da terra, os pássaros também tenham sido afetados pelo fogo do pecado original, o que os leva a agir, em determinados momentos, impulsionados por uma certa dose de maldade. Como descendente de Adão, aproveito a oportunidade para pedir perdão a todos os seres vivos por terem sido atingidos pelo castigo resultante de nossa falta de obediência a Deus!

(*) Raimundo de Sousa Lima é Juiz de Direito aposentado, contista e ficcionista.

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