segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

AS CINZAS DO CARNAVAL




José Pedro Araújo

Antes de entrar no centro cirúrgico, Dr. Pedro Martins deu uma espiada pela janela do corredor e observou o vai-e-vem dos foliões lá embaixo. Eram os últimos que insistiam em transgredir a norma cristã de continuar com o carnaval na quarta de cinzas. Naquele instante as lembranças voaram de encontro a um passado ainda não tão distante. O som do batuque penetrou pela janela e aumentou o ritmo das batidas do seu coração.

Baixou a máscara cirúrgica e respirou intensamente o ar que penetrava pela janela e entrou no recinto asséptico, onde já lhe esperavam para mais uma intervenção médica. Enquanto recebia as luvas, outra instrumentista amarrava os cordéis da bata azul. Mas a sua mente estava longe, e as lembranças fluíam como nunca na sua memória: Salvador fervia ao som dos trios elétricos que arrastavam multidões pelas avenidas do circuito Barra-Ondina. E ele, vivendo os últimos meses da sua carreira acadêmica, misturava-se à multidão de sambistas, sozinho, vez que se perdera dos colegas logo no início do desfile.

De repente, no ruge-ruge daquela tarde que já se encaminhava para o fim, viu-se envolvido por um grupo de alegres passistas. Com elas chegou também um nível de alegria muito superior ao que já era grandioso. E como estavam todas vestidas com o mesmo tipo de fantasia, diferente da maré humana que trajava um tipo diferente de abadá, logo Pedro identificou um grupo de amigas que havia saído para se divertir sem ligação alguma com algum trio. Lindas, corpos esculturais, sambavam desinibidas, sorriso largo nos rostos inundados de alegria.

Eram seis. Meia dúzia de beldades destacadas nesse mar apinhado de mulheres estonteantes. E ele, laçado pelo grupo feliz, qual criança dentro de uma roda de ciranda, viu-se encantado e começou a girar para observar melhor aqueles rostos de fada. Rápido giro, parou o olhar em uma e logo conseguiu o que perecia impossível: fixou-se na que lhe pareceu mais bela, mais simpática, mais alegre. Pronto. Estava lá aquela que lhe ocuparia o coração por todo o restante do carnaval, até a quarta-feira de cinzas chegar.  

Dez anos passados, ali estava ele a rememorar, mais uma vez, aquele sorriso maroto, cintilante como as estrelas do céu em noite sem nuvens. Mais uma vez, o batuque que ainda se ouviam advindo de um ponto ou outro da cidade, trazia para junto de si aquela gargalhada galhofeira, aquele lábios doces e sensuais que beijou por todo o restante do carnaval.  E foi só. Passada a quarta feira de cinzas, procurou-a no hotel em que se hospedava e lhe veio a triste notícia: havia partido logo na madrugada.

Passaram-se muitos carnavais, mas não passou aquela lembrança que lhe ficaria para o resto dos seus dias. O coração ritmado pelo som dos tantãs era comandado agora pelo som melífluo do sorriso que tinia qual cristais em contato. Era a música que fazia o seu ser se mexer e, inescapavelmente, levava-o àquele estado de melancolia ao relembrar aqueles três dias de intensa paixão. E agia tão forte sobre ele, que nunca mais se abriu para outra emoção amorosa, outra paixão, mesmo que carnavalesca. Não que não houvesse mais voltado às ruas de Salvador para procurá-la durante os carnavais que se seguiram. Voltou sim. Por três anos, consecutivamente. E nada de Helena, nem um fiapo de sorriso que ao menos se assemelhasse a sua alegria de sol rompendo nuvens condensadas de água. Depois não foi mais a sua procura. A dor de não encontrá-la era maior do que a que lhe magoava o coração com suas lembranças. Não voltou mais às ruas de Salvador, também. Nunca mais, durante os muitos dias de carnaval que inundavam e espalhava a alegria pela cidade.

Certa vez, de um amigo obtivera uma boa ideia: “procura pelas redes sociais, dissera ele. Se ainda estiver viva, com certeza aparecerá em uma delas”. Não teve coragem de tentar. E se ela estivesse casada, fosse já mãe. Não! Preferia ficar com aquela esperança ainda que meio impossível, inalcançável. E assim passaram-se os anos, e o sentimento foi se transformando em dor de perda, e o seu coração foi se fechando mais e mais para outras emoções.

Até aquele dia em que, resoluto, ao sair da sala de cirurgia, decidiu que já era tempo de tentar algo, fazer alguma coisa diferente. Nem que fosse para sofrer uma brutal decepção. Então, foi direto para a sua sala e ligou o computador para acessar o Facebook. Ali, diziam, encontraram muita gente de quem nem mais se recordavam. O coração estava irrequieto, não podia negar, pulsante como nunca.

Ligou o computador e, no espaço destinado à pesquisa, digitou as letras amadas: H,e,l,e, outra vez, n,a. Apareceram uma infinidade de helenas. Precisaria digitar um sobrenome para iniciar a filtragem. Não sabia. Nunca lhe ocorrera perguntar. Mas também, amor de carnaval era assim: bastava um nome, e pronto. Às vezes, nem isso. Mas como lhe fazia falta!

Decidiu-se. Começara pela profissão. Também não sabia. Estado natal. Também não. Cidade de origem. Pior. Quedou desanimado. E então começou a rolar lentamente na tela a infinidade de helenas que o face lhe disponibilizara. Olhava o rosto e passava adiante. Não era aquela. Helena disso, Helena daquilo, o rosto lhe dizia que não. Mesmo que estivesse diferente agora, o sorriso jamais mudaria. Reconheceria de imediato. Era certo que ela, caso estivesse ali, estivesse sorrindo. Tempos depois, já desanimado e decidido a parar com aquilo, passou displicentemente por uma Helena que lhe fez voltar atrás, alarmado e com o coração ao pulos: estava ali. Era ela!

Seus olhos encheram-se de lágrimas e os dedos, tremendo, dificultavam atender ao comando do cérebro. A muito custo, foi em busca de mais informações. Pouquíssimas fotografias, nenhuma informação sobre aquela Helena, a sua profissão, a cidade onde morava, nada! Ficou abatido, era daquelas que pouco usava a rede, assim como ele próprio. Desesperou-se.

Resolveu tentar, assim mesmo, um contato. Quem sabe se dessa vez a sorte lhe sorriria! Digitou o nome amado: “Helena?”.  Não esperava resposta imediata, estava claro. Apenas uma tentativa, pensou desanimado. E tomou um susto quando viu aparecer uma mensagem na tela: “Quem é?”. Os dedos desobedeceram de vez ao comando. E mesmo assim, dizer o que? Parou emocionado. E quase perde o "time". Ainda pensou em levantar e ir embora. Mas resolveu colocar aquilo em dia. Desse no que desse. E então respondeu: “Pedro”.

Quando a resposta lhe veio, após passados alguns minutos, parecia ver como se as letras na tela estivessem tremidas: “Não sei quem é”, foi a resposta. Ao invés das letras trêmulas, julgou agora vê-las decepcionadas. Ele insistiu: “Pedro Martins, o carnavalesco de Salvador!” O tempo de resposta foi maior. “De que carnaval?”, letrinhas emocionadas agora, mas, reticentes. “2008!”. Nova pausa. Depois: “vi a sua foto, agora te reconheci”. Isso foi o início da troca de mensagens, porque, depois, o diálogo fluiu e vieram somente notícias boas, alvíssaras. “Estás casada?”. “Não! Não, divorciada!?” “Também não! Solteira mesmo. Nunca encontrei o meu folião amado!”

Lágrimas de emoção começaram a cair sobre o teclado, e os dedos, agora cúmplices, corriam ligeiro em busca de mais e mais informações. “Não vou perder o "time" agora: nome completo e endereço?” Residiam em cidades próximas, foi a surpresa seguinte.

Dia seguinte, quinta-feira comum, sem nome, uma vez que somente a quarta-feira de cinzas recebeu um nome de batismo, estava ele desembarcando no Aeroporto de Recife para o reencontro esperado por longos dez anos. E ao penetrar no salão de desembarque, lá estava o rosto amado a sorrir feliz. Mas, os últimos vinte metros que lhe separavam da mulher amada foram os mais extenso da sua vida, e alargou demais o tempo até tê-la em seus braços outra vez. Refletiu muito e rápido durante o trajeto, como se estivesse recebendo as cinzas da conversão sobre a sua testa, e aduziu: a vida teria um recomeço!

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