quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Jean Carvalho e eu, em um certo Sete de Setembro.

Jean, Wagner Moura e eu - foto desfocada de 1970

José Pedro Araújo(*)

 

Corria o ano de 1969 e a cidade preparando um grande desfile cívico de comemoração ao Sete de Setembro que se avizinhava. Pelas ruas estreitas e empoeiradas da cidade, os estudantes dos vários colégios levantavam o ânimo da população e despertava o seu mais alto sentimento cívico de amor à pátria. Emocionava ver a população em peso instalada nas calçadas da rua Grande para admirar aqueles jovens desfilando em formação unida, orgulho estampado na fronte erguida e olhar fixo sempre para a frente como se olhassem para o futuro. E, de fato, um grupo de concluíntes do quarto ano do ginasial procurava mirar o por vir em busca de respostas para um futuro que não atinavam aonde iria dar. E entre estes, Jean e eu.

No ano seguinte, Teresina seria o meu destino, em contraponto à maioria dos nossos colegas que buscariam a capital do estado, São Luís. Enquanto isto, Jean Carvalho permanecia em Presidente Dutra, e somente um ano depois seguiria o mesmo caminho que eu e foi em busca da mesma república. A partir de então, a amizade que foi se formado desde as salas de aula no nosso inesquecível Murilo Braga, onde alisávamos as mesmas carteiras escolares, firmou-se e consolidou-se até a sua partida prematura.

 Voltando ao início desta crônica, quero falar da surpresa de que fomos tomados quando a direção do ginásio escolheu a ambos para representar a área de saúde no desfile de Sete de Setembro que aconteceria dali há alguns dias. As várias profissões, como engenharia, agronomia, direito, enfermagem, pedagogia, entre tantas outras, estariam representadas pelos estudantes que estavam vestidos à caráter e carregavam consigo alguma coisa que pudesse representar a profissão que ele representava. Nós dois, como já disse, vestíamos batas brancas e uma espécie boina(um bibico), também branca para identificar a classe médica. Ou seria veterinária? Tantos anos passados e eu já não me recordo muito bem. A minha dúvida vem do fato de conduzirmos dois carneiros pelos cabrestos. Jean levava um maior, mais robusto, e eu um pequeno, o único que consegui encontrar, meio magricela e com a lã não muito limpa. E que esse carneirinho me traria alguns dissabores, isso me recordo muito bem. Contudo, minhas ralas lembranças se encaminham para a primeira hipótese, acho que representávamos a classe médica. Agora, o porquê de levarmos os dois carneiros, até hoje não sei nada sobre isto.

Consegui esse animalzinho na casa de um tio, Zeca Barros. Ele tinha acabado de ser adquirido para entretenimento dos meus primos. Estava magro e com a lã muito suja ainda, razão pelas quais tive de levá-lo antes para tomar um bom banho. E quando ele, todo molhado, estava com a lã aderida ao seu corpo, apareceram-lhes todas as costelas e vi que possuía pernas muito finas e arqueadas também. E não bastasse isto, a sujeira impregnada se negava a sair da sua lã. E era uma sujeira tão espessa, que até mesmo pequenas esferas de cocô continuavam pregadas na sua parte traseira. Tive que recorrer a uma tesoura e sai aparando os pelos mais sujos. O resultado ficou muito ruim, pois buracos irregulares se formaram em toda parte tornando o que já era ruim em algo muito pior, como se isso fosse possível. Mas então, como só tem tu, vai tu mesmo! Jean quase morreu de rir quando cheguei ao local da formação para o desfile, a praça São Sebastião. Meu animalzinho, quando confrontado com o que ele conduzia, parecia um bicho mais feio ainda.

Encurtando a história: tive dificuldades para fazer o meu carneiro seguir a marcha quando a banda de música soltou no ar o som que dava inicio ao desfile. O Som alto e forte dos tambores, o tinindo ensurdecedor dos pratos de metal, e grito dos instrumentos de sopro fizeram o bicho espernear e dar para trás, tentando, às vezes, sair para os lados, o único caminho que não queria tomar, era o que estava definido para seguirmos. Com muito custo ele foi se acostumando e, mesmo desajeitado, seguiu o roteiro traçado e descemos rua Grande abaixo. Entretanto, quando contornamos o posto de gasolina em frente ao Othon Hotel, notei que o bichinho já estava com forças muito reduzidas e claudicava um pouco. Começava ali um problema diferente para mim, o animal precisava ser arrastado rua acima pelo cabresto. Temia ter que carregá-lo nos braços, pois, apesar de magro, ele não era tão leve assim. Esse receio passou a habitar a minha cabeça a me tirar o foco do desfile. Isso, contudo, não se confirmou, e eu segui o resto da parada arrastando-o. Quem já não tinha mais forças agora era eu.

Finalmente o desfile terminou no mesmo lugar onde havia começado, e quando paramos, o meu carneiro desabou de vez, caiu aos meus pés, desfalecido. Perdi toda a emoção da nossa festa cívica, não pude observar a alegria dos meus conterrâneos que vibravam a cada acorde da bandinha e os passos ritmados dos alunos, enquanto que eu só tinha olhos e pensamentos para o carneirinho claudicante.

Desfile organizado na mesma Praça em 2022 - foto TV Malagueta.

Enfim, estava encerrado o desfile, os raios do sol já nos cozinhava naquela hora, e eu só aguardava a palavra de ordem de dispersar para juntar o meu animal, correr para casa e fazer a entrega dele. Só esperava que ainda estivesse vivo, pois o bicho continuava desmaiado e com os olhos fechados.

Felizmente, ele só estava dormindo um pouco e ficou muito feliz quando fiz ver a ele que o desfile já tinha terminado. Seguiu comigo rua abaixo bem disposto até a casa do meu tio e se atirou sobre uma vasilha com água que havia à sua frente quando lá chegamos. Eu só não tomei decisão igual porque ele ingeriu toda água que havia no pequeno recipiente.  

Todos, contudo, foram unânimes em dizer que aquele havia sido um dos melhores desfiles que a cidade já havia presenciado. Contudo, ainda lembrei durante muitos anos depois os perrengues que passei como o meu carneirinho. Jean não me deixava esquecer. Sempre dava um jeito de contar a história para alguém, e nessas horas soltava gostosas gargalhadas. Dizem que a nossa memória age como uma esponja que, com o tempo, vai apagando as partes ruins das nossas vivências e vai deixando só a parte boa no seu roteiro. Acho que essa premissa é verdadeira, pois eu já passei a achar engraçado tudo aquilo, e até tenho saudades do último desfile cívico que fiz na minha cidade, ou em qualquer canto. E você, meu amigo Jean Carvalho, faz parte dessa saudade, aliás, de muitas, das passagens que trilhamos juntos no começo da nossa história!

Foto: Goreth Santos


PS. Após a publicação do presente texto, fui surpreendido pelo envio de uma bela fotografia na qual a "Escola Municipal Monteiro Lobato" presta insigne homenagem ao nosso livro "Viajando do Curador a Presidente Dutra - história, personalidades e fatos", no desfile deste ano da graça de 2022. Envaidecido com a cortesia, agradeço de todo o coração a Professora e Diretora Goreth Santos, bem como à senhorita que conduz a presente honraria que me encheu o coração de contentamento.  

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.


 

3 comentários:

  1. Uma bela e merecida homenagem ao filho que cultua a sua cidade. Esse livro, Viajando de Curador à Presidente Dutra, é um livro que deveria ser incluído no currículo das escolas de P. Dutra. Tive a honra de merecer um exemplar do autor.
    Obrigado, meu colega José Pedro.
    Continue nos deleitando com a leitura dos seus escritos.

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  2. O escritor José Pedro de Araújo Filho inspira uma nova geração de escritores, que absorvem dos seus belos escritos, a pureza e a leveza de sua alma altruísta. És Pedro, um escritor genial que me inspira a ser um contador de histórias e me impulsiona a viver esta caminhada literária de bons aprendizados! (Orfileno Gomes).

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    1. Obrigado, poeta amigo. Estamos juntos nessa Seara que o uso das letras.

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