terça-feira, 24 de outubro de 2023

OFÍCIO DE VALENTES

Vaqueiro na captura do boi (Google)


 

Aroucha Filho (*)

A indumentária do vaqueiro nordestino é única e muito rica em técnicas artesanais. É apropriada para protegê-lo nas labutas diárias em suas investidas na caatinga em perseguição a bravos animais, ou no tanger diário do gado. O conjunto dessa vestimenta compõe-se de: gibão, peitoral, perneira, luvas, jaleco e o inconfundível chapéu de couro. O vaqueiro nordestino da Baixada Maranhense, difere do tradicional vaqueiro nordestino sertanejo, no vestir e na prática do manejo do gado. A prática de cuidar do gado contrasta com a do Sertão. O vaqueiro baixadeiro atua em campo aberto, limpo. O gibão não lhe é necessário. Da vestimenta do vaqueiro sertanejo, usa apenas o chapéu de couro como identidade do ofício.

Na prática sertaneja, as atrações maiores da habilidade do vaqueiro é a "quebra das rezes". Consiste em, montados em cavalos treinados, puxar o animal pelo rabo e derrubá-lo. Essa atividade deu origem às festas de vaquejadas, hoje disseminadas em todo o nordeste, inclusive na nossa região da baixada.

O nosso vaqueiro campesino demonstra sua perícia no laço. Montado ou a pé, são hábeis laçadores. Ao lançarem a corda em direção ao animal, os golpes das laçadas não falham jamais.

A nossa pecuária em tempos recuados, era de baixo padrão genético, com os animais criados no regime extensivo. Esse tradicional sistema de criação de gados é feito com os animais soltos em grandes áreas e sem maiores investimentos. O gado vivia solto nos campos em harmonia com a natureza. O manejo resumia-se a manter presas à noite, algumas reses com cria, estas separadas das mães, em rústicos currais. Fazia-se a ordenha matutina de algumas delas, para assegurar o leite à família do vaqueiro. Raramente era comercializado o excedente. O preparo artesanal do queijo era atividade pontual de pouquíssimas fazendas. No restante, os vaqueiros percorriam o rebanho diariamente, para simples observação, e, às vezes, tratar a "bicheira" de algum animal doente.

As mudanças dos rebanhos eram cíclicas. No verão pastavam nos verdejantes campos da região da baixada, apinhados de "capim de marreca". No início das chuvas eram conduzidos para as partes altas dos campos, área de transição de campo e mato.

O ponto culminante desse manejo, o coroamento dessa labuta, chegava com o dia da “ferra”. Era uma grande festa. Reuniam-se fazendeiros e vaqueiros, e, também, fazendeiros e vaqueiros convidados.

A ferra tem por finalidade fazer a marcação das rezes, com o ferro do proprietário, assinalar e conferir os animais. Nesse dia é feita a distribuição das sortes, que é: de cada quatro bezerros assinalados/ferrados, um é destinado ao vaqueiro, a título da remuneração dos seus serviços. A razão 4 por 1, ou outra, depende do combinado previamente.

No final da ferra ocorre a exibição da valentia e perícia dos vaqueiros. Os vaqueiros descem para o curral, onde já foram reservados os garrotes mais bravos, e, portando varas de ferrão - hastes finas e roliças da madeira ameiju assada ao fogo, com uma ponta aguda de ferro na extremidade de maior diâmetro. Essas varas vergam mais não quebram! Os touros são soltos um a um, e cada vaqueiro fica à espera de um. O animal estressado, enfurecido parte com raiva na direção do vaqueiro. A distância é curta, o jogo é rápido, questão de segundos. O touro se aproxima com velocidade, abaixa a cabeça para chifrar o vaqueiro, este com destreza fere o novilho na nunca (próximo ao cupim) com a vara de ferrão. O boi esturra, o vaqueiro sorrir e o animal desiste.

Assisti a um desses espetáculos, ainda adolescente. A fazenda era a São José, com instalação rústica e improvisada. Ficava na Enseada de São José, o proprietário era o senhor José Ribamar Ferreira Araújo - à época Diretor do extinto DER - MA, compadre do meu pai. O vaqueiro encarregado dessa fazenda era o senhor Venâncio. O vaqueiro herói desse episódio foi o ainda jovem Belmiro Teixeira, filho do senhor Manoel Teixeira. Foi um emocionante espetáculo, coisa comparada, guardada as diferenças e devidas proporções, às touradas espanholas.

Tivemos bons e valentes vaqueiros no nosso município e redondezas. De todos, um foi icônico, chamava-se Antônio dos Santos Teixeira.  Foi meu vizinho, em Matinha, na Major Heráclito, morava a uns duzentos metros da nossa casa.

Era alto, esguio, elegante. Trajava-se com camisa de mangas compridas, usava chapéu de couro. A corda, também de couro, trazia em voltas, braço enfiado nas voltas que repousavam em seu ombro. Na mão esquerda a argola de ferro que formava e guiava o laço. Essa é a imagem que tenho do valente e destemido vaqueiro CARRAPICHO.

Não o conheci com patrão, se teve, não sei. Sempre requisitado para as missões mais difíceis da lida com o gado. De todos os animais destinados para o abate, em sua grande maioria, quase 100%, na minha época, morando aí em Matinha, eram aprisionados e conduzidos por ele para o matadouro. Com ele não tinha boi arisco que não fosse preso. Não errava um laço, era o que comentavam. Possuía cachorros fiéis e bom de gado. Era o animal entrar no mato e os cachorros tangerem o boi para o descampado e, Carrapicho com o seu certeiro laço prender o animal. Tinha intimidade e admirava-o, sempre o tratei com respeito e ele foi sempre muito atencioso comigo. É um dos heróis da minha infância.

O ofício de vaqueiro é para quem tem destemor, habilidade, força e muita energia e disposição.

 

(*) Aroucha Filho é Engenheiro Agrônomo, funcionário público federal aposentado, compositor e cronista.

3 comentários:

  1. É extremamente rica e cheia de bravura esta bela e nostálgica crônica, evidenciando as peripécias dos vaqueiros do nosso rico sertão maranhense! Bravo, meu nobre engenheiro e grande cronista!

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  2. Parabéns conterrâneo por seu trato com nossa cultura. Que.a deixa mais ricamente.

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  3. Obrigado, pela atenção.

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