sábado, 21 de setembro de 2024

O SURPREENDENTE NESCAU, UM CÃOZINHO PERFORMÁTICO

Imagem do Google

 

José Pedro Araújo (*)

Acossados pelo calor exorbitante que nos aflige nesses dias correntes, resolvemos descer para o belíssimo e aconchegante litoral piauiense para combater à altura o desconforto sentido aqui na capital. Além do prazer de estarmos desfrutando daquele belíssimo cenário, aproveitamos prazerosamente a hospitalidade de minha irmã e do seu marido, instando-nos na sua bela e aconchegante residência litorânea. Foram dias muito agradáveis que nos aconselhavam a alongá-los o mais que pudéssemos, mas a lembrança do provérbio italiano nos dizia que já era hora de voltarmos para casa. (“visita, é igual aos peixes, começa a cheirar mal após o terceiro dia”). E assim, a contragosto, achamos que não era producente abusar da hospitalidade de casal, apesar de sentirmos que o momento ainda nos era favorável, tal era a alegria com que os anfitriões nos saudava sempre que um novo dia começava.

Em um dos dias passados ali, o escritor Raimundo Lima, meu cunhado, convidou-nos para ir à sua praia favorita naquela manhã. Apesar de ficar um pouco afastada, e talvez por isto, trata-se de um lugar esplêndido que encanta tanto pela beleza do ambiente, quanto pela sua simplicidade, além de se constituir em um ótimo destino para quem gosta de realizar alguns mergulhos em águas calmas e de um verde já tendendo para o azul. Contudo, desconfio que o meu anfitrião gosta mesmo daquele local por duas razões: em primeiro lugar, uma razão que é comum a todos os escritores, a ausência de burburinho e de grande movimentação de pessoas. Mas é a segunda razão que considero a sua favorita: o tratamento familiar e camarada que recebe do empresário Bujão, o dono da barraca da sua predileção. Mas, o fato, é que poucos lugares, nesse pedaço encantador de litoral, podem se assemelhar à bela e paradisíaca praia de Maramar. E para mim é o motivo principal para gostar demais daquele local também. Tanto, que no dia seguinte, resolvemos repetir a dose de prazer e alegria naquele oásis de paz e beleza. Mas aí, por conta do feriado do Sete de Setembro, o nosso paraíso já estava convulsionado de pessoas que tornaram o ambiente aconchegante em um burburinho sem igual. Gente barulhenta e que, por achar que a zoada que eles fazem ainda precisa de acréscimo, carregam consigo umas caixas de som horrorosas e que avultam a algazarra que já fazem com os seus horríveis pancadões, entrecruzando os altos sons que chegam de todas as direções, e transformando-os em algo pouco inteligível e de mal gosto.

Confesso que fiquei um pouco enciumado com a invasão do nosso esplêndido paraíso perdido. Mas, fazer o quê? Mesmo com toda aquela invasão de alienígenas, o lugar ainda é o melhor para se curtir e apreciar com prazer entre tantos os que por lá existem.

O fato que mais me chamou a atenção, contudo, aconteceu no primeiro dia. Estávamos em animada conversa, enquanto apreciávamos um gigantesco prato de Manjubinhas fritas e algumas geladas cervejinhas, quando senti que algo ou alguém bateu na minha perna no intuito de chamar a minha atenção. Olhei para o lado e vi, sentado nas suas patas traseiras, um cachorro que olhava diretamente para mim. Achei que havia algum engano de percepção, e voltei a minha atenção para o meu cunhado Pedro, brasiliense que não perde a oportunidade de desfrutar as delícias do seu estado natal sempre que ela lhe aparece, que se achava ali conosco.  Novamente senti aquela pancadinha camarada na minha coxa e vi que o cãozinho continuava aguardando pela minha atenção. Ato contínuo, admirado com a esperteza do animal, peguei algumas manjubinhas e dei para ele, que não perdeu tempo e foi logo mastigando-as com imenso prazer. Voltei a atenção para o meu cunhado, e quase me esqueci do esperto cão. Mas ele, após comer os peixinhos que lhe havia dado, voltou a bater na minha coxa mansamente com a sua patinha. Olhei para ele e vi que o seu gesto não havia sido um mero acaso, mas que ele realmente fazia assim para chamar a minha atenção. Fiquei extasiado com a inteligência daquele Pet que se comportava com a maior calma e elegância, mas que continuava insistindo, dizendo querer mais da iguaria que consumíamos naquele momento.  Depois da terceira vez que o servi, querendo continuar a minha confabulação com o meu interlocutor, passei a mão na sua cabeça com carinho e o empurrei sem muita força, para lhe passar a ideia de que já estava bom. E ele, sem contestação, virou-se para o meu cunhado, levantou a patinha e bateu levemente na sua coxa também. Virou o assunto da mesa naquele momento e ele desfrutou o quanto pode da sua esperteza e da nossa generosidade. Quando ele se foi, perguntei à garota que servia nossa mesa qual o nome daquele elegante animal, e ela nos disse que era Nescau. Nem é preciso dizer que a risada foi geral. Aquele delicioso cãozinho, pelos amarelados com manchas pretas, talvez para evidenciar a sua grande camaradagem, havia sido agraciado com o nome de um dos produtos mais significativos da nossa infância quando a hora do lanche chegava.

A presença daquele animalzinho amigo foi o assunto do restante daquele dia, e também da nossa surpresa quando ele não deu o ar da sua graça no dia seguinte, ocasião em que o calmo oásis de Maramar foi assaltado pela avalanche de turistas que o inundou no dia seguinte. Deixou em nós um certo sentimento de frustração, a sua ausência.

Hoje, parando para analisar a esperteza daquele cachorrinho, volta a me assaltar uma dúvida: será que realmente a inteligência é um dom adstrito somente aos seres humanos? A propósito disto, voltou a minha lembrança a história de um burrinho que o meu tio Zeca Barros possuía nos já longínquos anos da minha infância, chamado Roxinho, em razão da sua pelagem direcionada à cor roxa. Aquele animal surpreendia pela sua inteligência e amizade com o meu tio. Umas das coisas que mais causava a admiração de todos, era que ele, quando em trânsito por alguma estrada, quando sentia a vontade de fazer xixi ou cocô, deixava o leito do caminho, procurava um local na sua margem e dava vazão às suas necessidades. Outra das suas consagradas virtudes, era que não importando em que local e distância ele ia, nem se apenas o frequentava em primeira vez, ele voltava para casa sem ninguém o dirigir. Bastava soltar-lhe o cabresto que ele seguia o caminho correto sozinho. Por último, quando o meu tio ia buscá-lo no pasto, esperava-o na porteira de entrada e só precisava chamar-lhe pelo nome. Ele, mesmo que se achasse em ponto distante, vinha correndo e encostava a cabeça ao peito do meu tio em sinal de alegria.

Nos dias atuais, algumas situações que demonstram um grau elevado de inteligência dos animais, correm pela internet com muita evidência, mostrando alguns fatos que só vêm demonstrar que os seres ditos inumanos são, sim, detentores de uma certa inteligência e sentimentos de maior valor, igualando ou superando o dos humanos. Uma imagem que vi há pouco tempo, e que inundou a internet com admirável voracidade, foi a de um animal, parecido com um veado, interrompendo a passagem de veículos em uma rodovia. E quando o primeiro automóvel parou ao seu lado, o homem que desceu dele também demonstrou toda a sua humanidade e respeito por ele, acariciando a sua cabeça e seguindo-o quando viu que ele o convidava com gestos insistentes. E qual não foi a sua surpresa, quando aquele cervídeo o conduziu para fora da rodovia e o levou até o local onde se encontrava um filhote preso pelas pernas a uma cerca de arame. Impressionado, o homem voltou ao seu veículo em busca de um alicate e correu de volta para soltar o animalzinho preso, que, ao se sentir liberto, fugiu em disparada. Logo depois, já novamente junto ao seu carro, o homem foi surpreendido pela segunda vez, e viu que o animalzinho ajudado por ele havia voltado na companhia da mãe, ou pai, e permitiu ao seu libertador que ele tocasse a sua cabeça com carinho e em agradecimento. A essa altura, a quantidade de carros parados e de espectadores já era monstruosa. Todos, viva e alegremente surpresos com o que acabavam de presenciar. Houve montagem naquelas imagens?  Pode até ser, mas, mesmo assim, não deve ter havido um treinamento antecipado para que aqueles animais apresentassem tão brilhante performance.

Por essas e por outras é que hoje tenho pena de matar até mesmo uma simples formiga de uma das que estão inundando a minha casa. E parece até que elas também usam das suas inteligências para transitarem pela sala de estar quando me encontro sozinho, especialmente à noite.  

(*) José Pedro Araújo, é engenheiro agrônomo, funcionário público federal aposentado, historiador, cronista, romancista, e coordenador do blog Folhas Avulsas.

Um comentário:

  1. Bela crônica. Transitaste por vários assuntos com leveza e classe de um grande escritor.

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