Foto ilustrativa |
José Pedro
Araújo
Pindorama atravessava um inverno
rigoroso, com chuvas torrenciais como só se viu naquele tempo. Era mal começar
a tarde para grossas nuvens de chuva começar a se formar para o leste, caindo
mais tarde estrepitosamente sobre a cidade. Rios, igarapés e lagoas já não aguentavam mais tanta água e começavam a vazar o excesso pelos baixios,
alagando caminhos e destruindo estradas. As rodovias de acesso à cidade estavam
também em lastimável estado de conservação, proporcionando atoleiros
descomunais a quem se aventurava tentar chegar à cidade naqueles dias úmidos.
Nem mesmo as rodovias de acesso a capital, a leste, e para o Tocantins, a oeste,
ficaram imunes a tão pesada chuvarada.
Mas,
como afirma o dito popular, depois da tempestade vem a bonança, e naquela tarde
o sol saiu luminoso, tão belo como somente consegue se apresentar nos dias
subsequentes aos piores temporais. Estávamos, eu e meu pai, no comércio que
possuíamos ligado à nossa casa, quando parou um veículo na porta e dele desceu
um homem de estatura mediana, barriga um pouco proeminente, como a minha
memória consegue visualizar hoje, e logo soltando a sua voz trovejante:
- Pinheiro, a região está se dissolvendo
feito Sonrisal. É tanta água que não cabe mais em lugar nenhum – falou com
gestos largos, como lhe era peculiar.
Entrou no salão comercial e foi logo
dando um abraço apertado no seu interlocutor e depois passou a cumprimentar
efusivamente as poucas pessoas que se faziam presente naquele instante.
- Rapaz, quase não consigo chegar
até aqui na noite passada. Era tanta água, mais tanta água por esses caminhos
que a minha velha fubica teve
dificuldades de me trazer de volta para casa.
- Inverno rigoroso esse, Deputado Orlando
– esse era o nome do homem que transbordava alegria por todos os poros, mesmo
ao falar de dificuldades – tão rigoroso que os acessos à cidade estão quase
todos cortados.
- É verdade. Soube agora que a ponte
sobre o Preguiçoso foi carregada pela enchente, aqui na saída para o oeste, e
que um bueiro se rompeu na estrada para a capital, deixando a cidade quase
ilhada. Vamos lá ver como está a situação?
Convite aceito, embarcamos os três,
eu, meu pai e o recém-chegado, em sua velha Kombi, que arrancou em uma
velocidade infinitamente menor ao que atestava o barulho do motor quase a pular
fora do chassi do veículo. Dentro do carro, no banco de trás, eu tinha dificuldades
de ouvir o que os dois homens conversavam alegremente no banco da frente, tal a
barulheira que as portas laterais faziam, já ameaçando saltar fora das
dobradiças.
Era um tempo de políticos pobres,
que suplantavam seus adversários nos embates eleitorais com a força dos seus
discursos, a assistência que prestavam às suas bases e a credibilidade de suas
propostas. Muito diferente dos deputados
que trafegam hoje em potentes camionetas importadas, com ar refrigerado,
adquiridas com recursos obtidos de forma nem sempre lícitas, e que só retornam
para junto de seus eleitores quando precisam novamente dos seus votos.
Como ia dizendo anteriormente, eu
estava com dificuldades para ouvir o que os dois homens iam conversando. Apenas
fragmentos do diálogo me chegavam de forma mais clara, permitindo-me saber que
o assunto era a política do país. Vivíamos o tempo da revolução de 64, ou do
golpe de 64, como preferem chamar os políticos de hoje que procuram
vergonhosamente esconder de seus eleitores a sua participação ativa no governo
de então.
Aqui e acolá, quando a trepidação
diminuía, era possível ver que a conversa tinha variado um pouco. Foi o que
aconteceu em um dado instante, quando deputado se dirigiu ao meu pai e indagou-lhe:
- Amigo Pinheiro, você se diz
conhecedor de quase tudo sobre a Bíblia! Pois eu vou te fazer uma pergunta de
resposta simples – e concluiu antes que meu pai protestasse ante o desafio –
quando foi que Jesus chamou São Pedro de bule?
Surpreso com a pergunta, meu pai olhou para o
rosto do deputado que se maninha sereno, como a atestar a seriedade da pergunta
que acabara de fazer.
- E então? – provocou ainda sério.
- Deputado, não lembro ter lido alguma passagem
na Bíblia em que Jesus tenha chamado o apóstolo Pedro por algum apelido –
respondeu-lhe com incredulidade e dentro da sua costumeira sabedoria.
- Ah! Essa eu te peguei – riu gostosamente o
desafiante. – Foi quando ele falou para os apóstolos “o que temeis, homens de
pouca fé!” – e arrematou: onde é que se põe café? No bule, é claro!”.
E caiu na gargalhada.
O homem se referia à passagem Bíblica em que
Jesus dormia no barco em meio a uma
terrível tempestade que ameaçava levar o pesqueiro à pique com todos os seus
passageiros.
Essa brincadeira é verídica, e é aqui
relatada apenas para mostrar o outro lado, o lado brincalhão do político jovem,
que sofria naquele momento uma perseguição intensa dos militares que ocupavam o
poder naquele instante.
De outra feita, estávamos na cidade vizinha, que
os habitantes de Pindorama insistem em afirmar se tratar do seu maior bairro,
quando ouvimos em uma amplificadora instalada a poucos metros da residência de
um grande amigo do meu pai, alguém discursar de forma contundente. Logo fiquei
sabendo se tratar do deputado Orlando. Foi a primeira vez que o ouvi falar para
o público, e fiquei impressionado com o poder devastador da verve daquele jovem
e destemido político. Não deixou naquele momento pedra sobre pedra, trucidando
com maestria seus adversários políticos locais e mostrando, como eu ainda não
havia visto, as entranhas do poder que interrompeu de assalto a caminhada da
democracia no país.
Mas, voltando um pouco ao objetivo da nossa
curta viagem na velha Kombi, eu estava extasiado com a oportunidade de passear
de carro, daí esse caso específico está tão vivo na minha memória. Quando chegamos próximo às margens do rio
Preguiçoso, no lugar onde há pouco tempo se tentou instalar uma
barragem-balneário, jogando pelo ralo um soma vultosa de recursos públicos,
vimos que de fato a estrada estava completamente destruída naquele ponto. A água passava por sobre o aterro como se não
tivesse nenhum obstáculo a lhe barrar o caminho. Os velhos tubos metálicos colocados
nas duas passagens do rio estavam completamente destroçados, lançados por sobre
a várzea à jusante como se fossem meros tubos de plástico. E a água preenchia o
espaço numa extensão que meus olhos de criança, que nunca haviam visto o mar,
elegeram logo como o maior ajuntamento de água já visto.
Situação quase idêntica, porque em menores
proporções, acontecia no outro ponto por nós visitado, quando fomos ver o que
acontecia na estrada que liga a cidade à capital. De fato, estávamos
completamente ilhados naquele inverno, como é chamado aqui no nordeste o
período chuvoso.
E qual não foi a minha tristeza, quando algum
tempo depois, não sei precisar quantos meses ou anos, pois a minha mente infantil
guardava muito bem os fatos acontecidos, não se importando com o espaço
temporal, uma notícia caiu como uma bomba sobre nós: o deputado Orlando havia
tombado morto, vitima de um pistoleiro que o assassinou na cidade vizinha a
Pindorama, quando ele retornava da capital. Diziam ainda que ele fora alvejado
covardemente quando havia descido do ônibus em que viajava para cumprimentar
alguns amigos que já o esperavam quando souberam que passariam por lá.
A notícia abalou a cidade como se uma bomba
de muitos megaton houvesse sido lançada sobre ela. E, de fato, foi o que
aconteceu, pois lançou efeitos devastadores sobre o município que nascia,
pujante, e sobre sua gente, esperançosa, que ansiava por melhores dias ante a ação
eficiente do jovem político. Foi o primeiro político eleito, nascido naquela
comunidade pobre a morrer de forma violenta. Depois, muitos anos depois, viriam
a falecer outros dois de trágicos acidentes. Mas, esses casos, que me tocaram
também profundamente, dado à sua contemporaneidade e a amizade que me unia aos
dois, serão tratados em outras crônicas por mim lavradas, com informações
retiradas do mais profundo da minha mente terrivelmente magoada por todos esses
acontecimentos. Esse espaço seria muito pequeno para cuidar de tantos assuntos
ao mesmo tempo.
Mas, o assassinato do deputado Orlando abalou
profundamente e alterou o ânimo pacífico da população da cidade. Logo que
ficaram sabendo que o assassino havia sido preso, e que se tratava de um
policial militar lotado no próprio município onde o fato ocorrera, alguns cidadãos
logo cuidaram de alardear a notícia de que ele seria solto logo que a noite
chegasse por seus colegas de farda, agora incumbidos da sua guarda. A notícia
se transformou em um levante. Dezenas de pessoas, costumeiramente pacíficas e
temerosos de que mais um crime ficasse impune na região, embarcaram em um
caminhão rumo à cidade vizinha e, logo ao chegar, se dirigiram para a delegacia
de polícia para lançar mão sobre o assassino.
Ali chegando, perceberam que os policiais,
com o intuito de proteger o colega de farda, juntaram-se a ele na mesma cela,
armados e de prontidão.
Os visitantes, já dentro da delegacia, solicitaram
a entrega do homem de forma pacífica. Mas, diante da negativa dos policiais,
decidiram arrombar as portas da cela para capturar o meliante. Os policiais
engatilharam as armas e, diante da iminente invasão, atiraram. Atingiram mortalmente
o primeiro atacante, um parente do deputado assassinado. O que se seguiu
depois, versão ouvida de pessoas que estavam presentes, foi que um pandemônio
se instalou dentro da cela, culminado com a morte terrível do assassino do
Deputado Orlando. Tombou trucidado pela fúria da turba que só queria levá-lo
preso para um lugar onde pudesse ficar seguro à espera da ação da justiça.
O fato é que o assassinato do jovem deputado
nunca foi totalmente esclarecido. Os verdadeiros mandantes nunca foram de fato
identificados e punidos, desencadeando uma série de outros crimes violentos na região.
Alguns, mais ressabiados, afirmam que a multidão enfurecida foi orientada por
pessoas que tinham interesse em eliminar o assassino sem se comprometer. Que fora
queima de arquivo. Não se sabe se essa versão é verdadeira ou não, mas, o fato,
é que juntamente com o indivíduo justiçado, foi para a tumba o segredo do nome
mandante.
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