José Pedro Araújo
As pessoas tomam determinadas decisões que se torna difícil
de assegurar se se trata de uma situação de completa teimosia ou, por outro
lado, determinação ou, como neste caso, pura afeição. Muitas vezes, perdem-se vultosas
somas de dinheiro na busca de um bem que não custa tanto quanto se gastou para readquiri-lo.
Será isso teimosia ou outra coisa? As respostas podem ficar para depois, pois,
em algumas situações, como a que vamos narrar a seguir, pode surgir uma vertente
que enquadre o caso como pura determinação. Vejamos, então.
Basiliano Barros, ou simplesmente Bazu, que é como
todos o conhecem na pequena Presidente Dutra, cidade encravada no sertão
central do Maranhão, possuía um jumento com algumas características que o
tornava especial, diferente mesmo da maioria dos animais de sua raça que, nos dias de hoje, são completamente desprezados e abandonados para morrerem atropelados nas
margens das rodovias nordestinas.
Animal de porte avantajado, esse jumento
caracterizava-se como excelente cargueiro, transportando quase tudo que era
produzido na propriedade Silveira, situada às margens do rio Preguiça. A
distância entre o terreno e a cidade não é tão grande assim, mas o seu
trajeto, em especial no período invernoso, é muito difícil em decorrência do
lamaçal terrível que se forma, uma autêntica armadilha para tantos quantos se
aventuram a passar por lá no período das águas. E isso valia também para todos
os animais de carga, com exceção do jumento que historiaremos. Outra
característica sua, era e empatia e a amizade que existia entre o seu dono e ele,
fazendo com que, onde estivesse, atendesse prontamente ao chamado do seu dono.
Pois, certo dia, um grupo de ciganos que estava
arranchado na região da Santa Maria, próximo à cidade, aproveitando-se da
liberdade que o animal tinha de transitar sozinho do Silveira até a casa do seu
proprietário, o bando o incorporou ao seu rebanho, levando-o com eles. Para
aqueles que não conhecem bem o modo de vida desse povo que transita pelas
estradas brasileiras, eu diria que, na sua maioria, são formados por famílias
pobres que vivem de negociar animais e outros objetos de origem duvidosa.
Gente de vida livre, esses ciganos não possuem pousada certa, pernoitando em um
local para, no dia seguinte, já estarem na estrada novamente. Também é certo que
existem outros grupos que negociam com pratarias e, principalmente, com
vasilhames de cobre, situação que lhes confere certo poder econômico. Mas não é
desse tipo que falamos aqui.
Poderíamos dizer que esses ciganos que transitam
costumeiramente pelo interior maranhense, são muito pobres, levam vida muito
simples, e a sua profissão de negociantes faz com que, em um dia esteja aqui,
e, no outro, acolá. E nesse constante vai-e-vem, muitos deles saem praticando
atos não muito éticos por esses caminhos, como ocorreu com o grupo que juntou o
jumento do Bazu ao seu rebanho de animais.
Quando tomou conhecimento do desaparecimento do seu
animal, Bazu saiu a investigar o seu paradeiro. Como aquele animal era muito
conhecido no lugar, algum tempo depois obteve a informação de que ele havia
sido visto reunido ao rebanho dos ciganos. E que, para sua tristeza, o bando
tinha partido rumo a cidade de Dom Pedro já decorridos alguns dias. D. Pedro é um
município situado há cerca de trinta e seis quilômetros dali, portanto, relativamente próximo, mesmo para quem faz o trajeto em lombo de animais. Sem perda de
tempo, Bazu convidou o irmão Zeca Barros para acompanhá-lo e, juntos, tomaram
um ônibus para o destino indicado. Ao chegarem à cidade vizinha, para seu
desgosto, obtiveram a informação de que os ciganos pouco haviam se demorado por
ali, prosseguido no rumo de Santo Antônio dos Lopes, município situado a pouco
mais de trinta quilômetros dali. Mas também não mais os encontrou lá.
Os dois irmãos continuaram a perseguição ao bando,
sempre colhendo informações nos lugares por onde passavam, até chegarem à
cidade chamada Independência, situada há cerca de cem quilômetros de onde haviam
partido. Lá chegando, obtiveram outra notícia ruim: o grupo, de fato, havia
passado por ali, mas já haviam seguido no sentido da cidade de Pedreiras,
distante cerca de 40 quilômetros. E mais: que haviam dito que seu objetivo era
alcançar o povoado de Marianópolis, lugarejo antigo, histórico, e bastante
conhecido.
Nesse ponto, Zeca Barros, seu irmão, já cansado
daquela busca que parecia não ter fim, ponderou que as despesas estavam ficando
muito altas, e que era contraproducente se gastar tanto tempo e dinheiro para
encontrar um simples jumento, animal quase sem importância nesses dias. Mas
Bazu rechaçou qualquer possibilidade de retorno sem o seu animal. Nesse momento
o irmão, conhecendo a índole do outro, disse que o havia acompanhado até aquele
ponto, mas que precisava retornar para os seus afazeres.
Cada vez mais determinado a encontrar o seu animal,
Bazu continuou a sua perseguição, agora sozinho, embarcando dali direto para
Pedreiras. Lá chegando, tomou condução para o povoado de Marianópolis, que não
ficava longe. Uma vez chegando ao povoado, foi em busca de informações sobre o
bando de ciganos e logo encontrou um rapaz que lhe disse saber onde o grupo
estava. Bazu não contou mais tempo: contratou o rapaz para lhe conduzir até aonde
sabia estarem os ciganos. Mas, ao chegarem próximo ao rio Mearim, o contratado disse
temer uma reação do bando e, portanto, só ia até ali. Inconformado, e sabedor de que os
ciganos estavam acampados do outro lado do rio, Bazu seguiu sozinho para lá.
E como era conhecido do bando, que habitualmente comprava
pães e biscoitos em sua padaria, Basiliano arregaçou as pernas da calça, colocou
um chapéu de palha na cabeça e tomou uma canoa para atravessar para o outro
lado do rio. No trajeto, verificou que viajava com um dos componentes do grupo
de ciganos, aumentando ainda mais o cuidado para não ser identificado por ele.
Do outro lado do rio, uma pequena parte deles estava acampada,
mas logo observou que o chefe não se achava ali, nem a tropa de animais. Bazu decidiu
passar pelo meio deles sem ser reconhecido.
Assim, adotou uma postura de alguém com um defeito em
uma das pernas e, mancando, passou por eles incógnito, tendo ainda que
responder aos cumprimentos de alguns sem ser reconhecido. Seu objetivo era
seguir até onde se achava o grosso do bando e verificar se seu animal ainda
estava no meio dos outros. Chegando lá, sua procura se mostrou exitosa ao
localizar o seu animal junto aos outros, pastando calmamente.
Bazu retornou até onde se encontrava o grupo maior, já
com sua suas vestes e o seu caminhar completamente recomposto. Ao avistar o
homem com quem havia contatado por diversas vezes, sempre que ia à sua padaria,
o líder do grupo demonstrou grande satisfação por encontrá-lo por aquelas
bandas. Com certeza tentava um despiste, um gesto de dissimulação, procedimento
vez por outro adotado por eles quando confrontados com situações como aquela.
- E não é o “seu” Bazu, o homem da padaria! – levantou-se
o homem para cumprimentar o visitante, demonstrando contentamento. – O que está
fazendo tão distante de casa, homem?
Sem se impressionar com a falsa alegria demonstrada
pelo líder do bando, Bazu respondeu com certa cortesia, mas energicamente.
- Minha viagem se encerra aqui. Estava atrás de vocês.
- Então já nos encontrou, meu amigo! – o homem
continuava com a sua fala mansa e cativante, sem demonstrar o menor temor.
- Vim atrás de um animal que se acompanhou a tropa de
vocês – respondeu Bazu sem acusar diretamente o homem de lhe ter roubado o seu
animal. Contudo, encarava-o de frente.
- Ora, não me diga! Mas, será possível uma coisa dessas?
Pois saiba de uma coisa “seu” Bazu. Se o seu animal estiver no meio dos nossos,
o senhor o terá de volta imediatamente. Qual é o animal?
Basiliano seguiu fazendo o jogo do líder cigano e descreveu
com riqueza de detalhes o jumento a que estava no encalço. Ao final de sua
explanação, o homem, continuando com a farsa, chamou um de seus comandados e
determinou que ele fosse ver se o animal estava de fato junto com os seus. E em
caso afirmativo, que o trouxesse até ali para entregá-lo ao verdadeiro dono.
Sabendo que o que o homem estava fazendo era
determinar que o animal fosse afastado do rebanho, escondendo-o, Bazu
rechaçou energicamente:
- Não se
preocupe com isso? Eu mesmo já vi o animal junto a tropa de vocês há poucos instantes.
Dê ordem ao seu rapaz para trazê-lo até aqui, por favor.
O homem acusou o golpe, mas, em seguida, se recompôs:
-Ah, então o senhor já viu que o animal estava lá? Vá
lá e traga o jumento do meu amigo aqui, menino! – determinou com um gesto de
mão, para depois se desculpar - às vezes, “seu” Bazu, os animais perdidos nas
estradas seguem o nosso rebanho. Mas, sempre que notamos isso, apartamos o bicho
e seguimos em frente. O
que deve ter ocorrido com o seu jumento, é que quando ele se juntou aos nossos
animais não demos fé disso. Pode ocorrer também – concluiu o homem olhando
diretamente para o visitante.
- Eu não tenho dúvidas disso! Mas, agora que eu já
localizei o meu animal, só me resta agradecer por terem cuidado tão bem dele.
Logo, o rapaz que havia recebido ordens para ir buscar
o animal chegou, trazendo-o puxado por um cabresto. E quando o asinino ficou de
frente com o seu verdadeiro dono, relinchou alegremente abanando o rabo e
empinando as orelhas.
O líder cigano não demonstrou em nenhum momento estar
se sentindo mal com aquela história e ainda convidou o visitante a
pernoitar com eles. Bazu agradeceu solenemente, mas disse-lhe que precisava empreender
o trajeto de volta para casa.
Ao chegar ao povoado, Bazu contratou o dito rapaz que
o havia prestado ajuda antes para levar de volta o animal até Presidente Dutra. E que ele, cortando
caminho por algumas velhas e conhecidas veredas, agora quase intrafegáveis, encurtaria em
muito a distância. Quanto a ele, faria o trajeto de volta de ônibus, tal como
havia feito na vinda.
As despesas tinham sido muitas, mas a alegria de ter
concluído as suas buscas com absoluto sucesso compensava o prejuízo e reforçava
a sua convicção de que o homem deve lutar com todas as suas forças por algo que, de fato, tem interesse. E que as dificuldades, por maiores que sejam, nunca devem se
transformar em barreiras intransponíveis.
Com certeza, não fora o fato de ter se sentido subtraído
por um bem valioso, no sentido do seu valor econômico, que o havia feito seguir
aquele bando de ciganos por um trajeto tão longo. Mas, por se ver afastado de
um bem que tanta admiração lhe causava. E isso lhe fora motivo mais do que suficiente.
Motivação que o fizera se aventurar, sem hesitações, naquela demorada perseguição. Basiliano Barros é conhecido como um homem de palavras, para quem, alguns empecilhos nunca é razão suficiente para fazê-lo desistir dos seu intentos. O nome disso, voltando agora ao começo desta prosa para responder à nossa indagação, é determinação e coragem.
Grande amigo dos animais o seu Bazu!
ResponderExcluirVerdade, Fernando. Ele mora em um local especial no centro da cidade, um sítio que vai até as margens do riacho Firmino e por outro lado, vai até próximo a praça da matriz. São 8 hectares de puro verde, lugar onde passei a minha infância. O detalhe é que, já por esse tempo, ele não nos permitia caçar os inúmeros pássaros que viviam por ali. Chegava a nos confiscar as baladeiras.Foi o primeiro ecologista que eu conheci. Já fiz uma crônica sobre o lugar, mas perdi. Vou ver se refaço qualquer dia desses. O título eu lembro: o meu Shangrilá-hi, ou coisa parecida.
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