quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Coronel Jesuíno Sousa da Piracuruca

Cel. Jesuíno Sousa e sua prolífica família


José Pedro Araújo

Coronel Jesuíno Sousa era um dos grandes fazendeiros de Piracuruca, dono de vastas fazendas situadas naquele município e em Batalha, chegando seus limites a se entender até o município de Barras. Homem inteligente e de visão apurada, não aprendeu a ler nem a escrever, mas possuía uma capacidade excepcional para fazer contas de cabeça e, acima de tudo, de visualizar o futuro. Nenhum cálculo mal feito lhe escapava à percepção quanto pedia aos filhos que procedesse a alguma soma ou subtração. A falta de aprendizagem nos bancos escolares, foi prontamente compensada com a experiência de vida, a observação detida e o fino faro para os bons negócios. Negócios honestos, lícitos, pois como sempre dizia ao final de uma transação, a coisa só termina bem quando os dois lados ficam satisfeitos.

Esse homem sábio, nascido em um lar pobre e de família numerosa, nunca se dobrou à sina comum aos que vem ao mundo com esse viés hereditário, e logo se rebelou contra o estado de pobreza que açambarcava a sua família: desde a sua infância dedicou-se com afinco ao trabalho e aos negócios. Para exemplificar isto, vou contar um fato que ouvi uma ocasião sobre a determinação deste homem de compleição física pequena, mas sabedoria enorme. Certa vez, ainda muito jovem, ao atravessar a Fazenda Lagoa do Saco, uma das grandes fazendas da região, tocando uma pequena tropa de burros de um determinado cidadão a quem prestava seus serviços, prometeu que ainda seria dono daquelas terras que tanto admirava. E de fato, muitos anos depois, conseguiu comprá-la dos herdeiros do antigo proprietário. E não somente esta, mas outras duas grandes propriedades que faziam limite com ela: Cajazeiras e Santa Maria. As três somavam uma área contínua de mais de dois mil e duzentos hectares de ótimas terras com pastagem natural abundante, várias nascentes e extensos carnaubais. Nelas o coronel criava um numeroso rebanho de gado vacum e uma grande quantidade de ovinos e caprinos, além de explorar seus carnaubais.  

Mas o início da sua história começou na pequena Fazenda Cocal, situada no município de Batalha, lugar em que estabeleceu a sua morada e criou a numerosa prole. Naqueles anos, a Carnaúba embasava a economia do estado, e Piracuruca situava-se no centro do maior polo produtor de cera, principal produto extraído desta palmácea. A Fazenda Cocal, apesar de contar com terras boas para a agricultura (fruticultura em especial, pois de lá retirava muitas carradas de laranja e banana para serem comercializadas) e pecuária, não possuía um carnaubal rentável. E o coronel acreditava que as grandes fortunas da região estavam baseadas na criação extensiva de bovinos e na exploração de seus carnaubais. Fora disto, não havia grandes oportunidades de enriquecimento, pois o comércio ainda era muito incipiente e o que provinha da agricultura mal dava para o sustento das famílias. Munido de grande determinação, o jovem Jesuíno instalou um pequeno comércio na própria fazenda, e começou a trabalhar incansavelmente para contornar o problema relacionado ao seu pequeno carnaubal: resolveu plantar carnaubeiras por toda a extensão da sua propriedade. Era um trabalho pesado e com resultados em longo prazo, visto que a árvore da carnaúba leva vários anos até chegar ao ponto de permitir a extração das suas folhas. Estima-se em dez anos esse tempo necessário, quando as palhas já podem ser retiradas para a extração do pó que se transformará em cera.

Precisava ser um homem muito determinado para acreditar que, através do plantio da palmácea, iria conseguir superar a pobreza das suas terras em relação a este vegetal. Mas ele foi em frente. Como até então ninguém havia feito isto, poucos acreditavam que ele teria sucesso na sua empreitada. Com exceção dele, é claro. E foi assim que, usando apenas a sua intuição, vez que não existia ainda uma técnica desenvolvida para o plantio desta espécie cerífera, coube a ele fazer uma seleção das plantas mais produtivas para povoar a sua fazenda. Depois foi só esperar para colher os primeiros resultados. E eles foram dadivosos, animadores, ao ponto de atiçar-lhe o ânimo para ampliar a quantidade de árvores adotando o mesmo método.

E foi assim que ele - para encurtar a história – com trabalho e muito empenho, começou a utilizar a renda extra que obtinha com as suas atividades corriqueiras, para adquirir novas propriedades. Como uma única exigência: teriam que possuir extensos carnaubais. E assim, produzindo e vendendo cera de carnaúba, deu cumprimento a sua promessa e adquiriu a Fazenda Lagoa do Saco. E depois muitas outras.

Seus rebanhos também foram aumentando à medida que novas terras foram sendo adquiridas. Naqueles tempos, é importante que se diga, criava-se extensivamente nas vastas áreas de pastagem nativa existentes na região, sem a necessidade de grandes investimentos com pastos, cercas ou aguadas. Isso, até que o arame farpado veio interromper esse tipo de exploração pecuária. Naquela época também, os rebanhos se dispersavam por toda a região e, muitas vezes, ultrapassavam os limites do próprio município. E por conta disto, em épocas previamente definidas, como nos momentos de vacinação, ou mesmo de escolha de amimais para a vendagem, os vaqueiros saíam para campear por toda a região, trabalho que demorava semanas, até mesmo meses.

Vaqueiro, nesse tempo, era uma profissão respeitada e isso fazia com que muitos jovens se dedicassem a esse tipo de trabalho. Um bom cavalo de sela, arreios vistosos e uma boa vestimenta de couro (gibão, perneira, peitoral, luvas e chapéu de couro), transformava o homem em uma figura quase mitológica, um herói das plagas nordestinas. E isso encantava muitos jovens.

Certo dia, já avançado na idade e residindo em Piracuruca, Coronel Jesuíno recebeu a notícia, por um de seus filhos, de que um determinado novilho estava causando um verdadeiro alvoroço na região de Batalha, onde o fazendeiro possuía várias propriedades. Isso começou quando os vaqueiros saíram a campo para juntar a boiada que se achava no ponto de venda para o abate. O gado, criado daquela maneira, às vezes oferece alguma dificuldade na hora de juntá-los, nada, contudo, que atrapalhe o ofício daqueles homens acostumado à sua corriqueira lide. Mas dessa vez havia aparecido um boizinho que estava fazendo história: ninguém conseguia pôr as mãos nele, apesar das inúmeras tentativas. Soube ainda que essa história já havia corrido o mundo e transformara o boi em uma verdadeira entidade. Alguns diziam até mesmo que ele tinha pauta com o demônio, era encantado. Tudo porque, em várias ocasiões, tinha conseguido se evadir mesmo estando cercado por numeroso grupo de vaqueiros em um capão de mato. E quando eles penetravam na vegetação, não mais o encontravam lá. Havia sumido.

O fato é que a cada tentativa de lançarem mão no boi, o arredio animal dava sempre um jeito de escapar aos seus perseguidores e sumir no mato. Apesar de não ser um animal muito grande, o que causou espanto à populaça foi que o Marruá fora criado junto à comunidade Caraíbas, povoação próxima a Batalha, e era sempre visto no pátio de uma determinada casa, onde habituou-se a passar a noite. Todavia, mal o dia clareava, sumia sem que o seu paradeiro fosse conhecido.

Quando chegou a sua vez de ser aprisionado para ser conduzido ao açougue, o boizinho se revelou e ninguém conseguia pôr as mãos nele. Foi então que a história se espalhou na região e chamou a atenção de inúmeros vaqueiros ansiosos por ganhar fama. E cada vez mais homens vinham em busca do arisco animal, mas ninguém lograva êxito. Nem mesmo os vaqueiros mais afamados da região. Ao tomar conhecimento da história, e da verdadeira festa que estavam organizando para o final da semana seguinte, um dos filhos do Coronel, munido de uma câmera para filmagem, desceu para o local do acontecimento que estava chamando tanto a atenção de todos.

Lá chegando, já encontrou uma multidão que ultrapassava a três centenas de pessoas, mas de cem deles afamados vaqueiros determinados a capturar o boi fujão. A empolgação já era grande naquele instante porque a noticia de que o animal fora visto em determinado local se espalhara como um rastilho de pólvora. Naquele instante, os vaqueiros já se dirigiam ao local indicado, cada um deles na expectativa de aprisionar o animal fujão e ganhar o laurel de maior vaqueiro da região. O pessoal que acompanhava atentamente o movimento postou-se em um beco, entre duas cercas, e ficou à espera que, finalmente, o boizinho aparecesse conduzido por algum dos inúmeros vaqueiros que seguiram em seu encalço. 

Daí a alguns minutos, alguém gritou para avisar que o boi vinha vindo. Causou o maior frisson quando bicho surgiu na entrada do beco, em disparada, livre e com um grande grupo de vaqueiros em seu encalço. O descendente do coronel, que havia levado um filho pequeno, além da câmera para a filmagem do grande momento, quando viu que os populares corriam assustados e procuravam a saída do beco, tentou proteger o menino e também partiu em desabalada carreira. Seu propósito era se abrigar no seu carro que ficara estacionado à sombra de uma árvore. Mal teve tempo de se servir da proteção do tronco de outra árvore que encontrou pelo caminho. Safou-se por pouco de ser atropelado pelo novilho. A câmera deixou registrada a cena da sua fuga, e não o boi fugitivo.

Depois disto, o boi sumiu em meio à vegetação e não mais foi encontrado. Decepção geral. Horas depois do acontecimento, a vaqueirama já se mostrava derrotada mais uma vez, trazia o semblante decaído e um enorme sentimento de frustração invadia a alma de cada um deles. Foi quando se destacou do grupo um homenzinho, a pé, descalço, pés largos e acostumados a palmilhar o solo quente da região e enfrentar os espinhos que infestam o carrascal, seguiu sozinho no rastro do animal. Levava com ele apenas uma velha corda de laçar atada ao ombro. Quem o visse naquela pisada ligeira, jamais apostaria no sucesso da sua procura, uma vez que os vaqueiros mais experimentados que havia por ali haviam falhado bisonhamente.

Outro filho do Coronel Jesuíno, responsável pela operação de captura do boi, já se preparava para ir embora, quando lhe chegou a notícia de que o boi havia sido encontrado pelo homenzinho descalço, e provavelmente capturado. Surpresa geral. Quem já estava indo embora, voltou atrás e ficou à espera do tal boi fujão. Não demorou muito e lá vinha o boi mansamente conduzido pelo homem do laço. A pé, vinha seguido por grande séquito, homens vestidos de couro e montados em seus cavalos de campo. Ninguém acreditava que aquilo estivesse acontecendo. O animal escorregadio e que todos acreditavam ser uma entidade espiritual, que há dias vinha fugindo dos melhores e mais renomados vaqueiros, vinha agora manso e cordato pela estrada, conduzido por aquele pequeno homem sem cavalo e sem fama de grande vaqueiro. 

Em Piracuruca, quando o Coronel Jesuíno Sousa tomou conhecimento que o boi havia sido, finalmente, capturado, enviou ordem expressa para que ninguém tocasse naquele animal. Justo, como sempre fora, afirmou que o boizinho havia lutado bravamente, e por isso, ganhara a sua liberdade definitiva. Mas a ordem, para seu desgosto, chegou tarde. Com receio de que aquele animal fujão escapasse novamente, seu filho havia determinado a sua execução e a carne fora encaminhada ao açougue para ser comercializada. Triste fim para o boizinho que havia prendido a atenção do povo de toda uma região por muitos dias, com a sua fama de aparição.

Esta é apenas uma das histórias que cercam a vida do Coronel da Piracuruca, Jesuíno Sousa. Homem correto e despido de luxos que criou numerosa família que hoje se acha espalhada por este vasto país.
Se vivo estivesse, hoje estaria festejando o seu 117º aniversário de nascimento!

2 comentários:

  1. Francisco Carlos Araújo20 de setembro de 2018 às 11:03

    Dr. Araújo,
    Parabéns por esse belíssimo texto que fala sobre a vida e o trabalho do cel. Jesuíno Sousa, grande empreendedor rural de Piracuruca, Batalha e também de Barras. Uma excelente homenagem ao pai de D. Helena, sua digníssima esposa.
    De outra parte, fiquei muito curioso com a história do indomável e arisco garrote que viveu nas fazendas do cel. Jesuíno. E o que dizer do inverossímil do pequeno homem de pés no chão, que sem gibão e sem cavalo aprisionou pacificamente o lendário garrote das terras do Norte? Muito legal!

    Um abraço.

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  2. Obrigado, grande amigo. Meu sogro era realmente um homem inigualável.

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