segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O MENINO, O RIO E A CIDADE

Sentido horário: Pç. Pedro II, Rio Parnaíba, Trav. do Poti e Cinemas
                

 

                                                           (Chico Acoram Araújo)

 

            Em outros textos eu dizia que, por necessidade de melhores condições de vida, meu pai decidiu levar a família para Teresina. Isso ocorreu no início do ano de 1961. Chegando à Capital fomos residir em uma pequena e humilde casa situada na Rua Tiradentes, do lado Oeste do Estádio Lindolfo Monteiro, próximo à Ponte Metálica (denominada Ponte João Luís Ferreira, que une em definitivo o Piauí ao Maranhão). Ali perto, minha mãe matriculou-me juntamente com meu irmão no “Grupo Escolar João Costa”, situado na Rua Jônatas Batista, ao lado do extinto sanatório dos doentes mentais.

            Eu ainda não completara meus nove anos de idade quando, pela primeira vez, meus pés pisaram neste “fértil” solo da Chapada do Corisco. Teresina, nesse momento, completava seus 109 anos de fundação. Portanto, uma cidade bem jovem. Sua população era de cerca de 143 mil pessoas. A área urbana pouco tinha se expandido além do seu original traçado xadrez constante do plano de construção da Capital. Os bairros existentes não passavam de quinze, dentre os quais cito o Aeroporto, Mafuá, Matadouro, Poti Velho, Vila Operária, Porenquanto, Cabral, Catarina, Vermelha, Piçarra, Cajueiro. Também existiam os bairros Jockey Club e São Cristóvão, ambos pouco povoados.

            Nossa primeira residência era muito simples, tendo apenas dois pequenos cômodos, uma minúscula cozinha e um apertado quintalzinho onde era improvisado um rústico banheiro. Nesse tempo não havia água encanada nos arredores de Teresina. O abastecimento do precioso líquido seja para beber, seja para cozinhar e também para tomar banho era feito por mim e por meu irmão Sansão. A nossa tarefa diária consistia em pegar água do rio Parnaíba que ficava a uns 100 metros de distância e abastecer a casa. Nossos ombros já tinham o “couro grosso” de tanto carregar água em cambo portando latas de querosene. No inverno, as águas do rio tornavam-se bastantes barrentas ou avermelhadas. Para melhorar a qualidade do líquido, era coada e depois acondicionada em um velho filtro de barro. Às vezes, a minha mãe botava para ferver a água coletada do rio de tão cheia de impurezas que ela se achava.         

Quanto à luz elétrica de Teresina, relembro que era muito precária (110 V). E em determinada hora da noite os geradores de energia eram desligados. Era o momento que as famílias, sentadas nas portas de suas casas, recolhiam-se para seus aposentos. A cidade sumia na escuridão. Nas noites enluaradas, os adultos e crianças se demoravam um pouco mais em intermináveis conversas, aproveitando-se do vento fresco e revigorante. Depois disso, a cidade ficava num silêncio sepulcral. Apenas se ouviam os sons do tablado da ponte metálica quando da travessia dos veículos. Ou o barulho das rodas e o apito do trem “Maria Fumaça” atravessando cruzando-a. Ou os gritos dos marrecos sobrevoando o rio Parnaíba, ou até mesmo o agouro da ave “rasga mortalha”. A calma só era quebrada por estes sons já velhos conhecidos de quem vivia por ali.  

Não muito tempo depois, meu pai decidiu mudar de residência alugando uma outra casa, mais confortável, não muito longe da anterior. Fomos morar no outro quarteirão, também próximo ao Estádio de Futebol Lindolfo Monteiro, na então Rua Palmeirinha hoje Clodoaldo Freitas, número 146 (ou era 46?) já chegando à margem do caudaloso Velho Monge. Nessa rua, assim como as demais da periferia, também não havia sistema de abastecimento de água encanada e tampouco calçamentos. Os adultos e a meninada tomavam banho em um determinado local do rio, e as lavandeiras lavavam as roupas no cais ou nas pedras existentes em alguns pontos da margem do mencionado caudal.

O trecho da margem do Parnaíba, compreendendo a área da ponte metálica até o cais, era caminho para os ribeirinhos se locomoverem entre aqueles dois lugares. Nesse trajeto existiam alguns remanescentes das matas ciliares. Via-se também várias casas dos pescadores construídas sobre as ribanceiras do rio. Na década de 1970, o Governo do Estado construiu naquela área o prolongamento da Av. Maranhão. A geografia da cidade começa a mudar com as construções de novas avenidas.

Residimos na Rua Palmeirinha até o final do ano de 1966 ou início do ano seguinte. Desse período (boa parte da minha idade de adolescente) guardo em minha memória lembranças indeléveis e, geralmente, bem alegres e divertidas. Antes, porém, de iniciar a descrição dessas memórias, três imagens me impactaram ao chegar aqui em Teresina. A primeira, foi quando vi aquele grande rio Parnaíba com suas águas volumosas e ligeiras. Naquele momento, um grande barco a vapor navegava contra a correnteza do rio. Para onde estaria indo aquela embarcação? Pensei.

Quando tive meu primeiro contato com rio Parnaíba, confesso que fiquei com receio de adentrar em suas águas apesar de eu ser um exímio nadador. Achei suas águas muito diferentes das do meu rio Marataoan. Aquelas eram densas, turvas, cheias de armadilhas com seus temíveis “redemoinhos” em seus canais profundos; pareciam indomáveis. Remar contra a sua corrente parecia ser impossível para o ser humano. Enquanto as águas do rio da minha terra eram mansas, doces, tranquilas e transparentes. Um mar de saudades é esse belo rio Marataoan!

Mas o medo de nadar no Rio Grande dos Tapuias foi facilmente superado. O desafio que ele representava me impulsionou e eu o domei rapidamente. Tempo depois, eu já estava nadando tranquilo em suas águas bravias apesar das súplicas de minha saudosa mãe para que eu não o desafiasse com estripulias. Muitos meninos, e até adultos, tinham ceifadas suas vidas naquele perigoso caudal. “Água não tem cabelos, meu filho”, alertava-me minha mãe. De fato, ela tinha razão. Certo dia vi no balseiro, sob a ponte, um garoto que tinha morrido por afogamento a dois ou três dias atrás. Um pescador em sua canoa segurava o morto com uma corda para que o mesmo não descesse rio abaixo. A cena era horripilante, tenebrosa. O corpo estava todo inchado em proporções volumosas que parecia que ia explodir a qualquer momento. Observei que algumas partes do cadáver estavam carcomidas por peixes. Fiquei com náusea. Todo trêmulo, retornei imediatamente para minha casa. Nesse dia não me alimentei; estava sem fome. Não voltei mais ao rio para nadar, pelo menos por um algum tempo.

 Esquecido depois aquela cena, eu e o rio voltamos a dar-nos boas “braçadas” como dantes, em que pese os perigos que aquelas águas apresentavam. Cheguei até atravessá-lo tranquilamente abraçado a um comprido e grosso buriti, saindo do cais do Mercado Velho, em diagonal, rumo ao outro lado da ponte, do lado de Timon.

Certo dia, depois que cheguei da escola, corri para a ribanceira do Parnaíba para ver se meus colegas estavam jogando bola em uma “coroa” existente próxima à margem do lado de Timon. Observei que os meninos estavam lá. Imediatamente atravessei o rio pela ponte metálica. Entretanto, para chegar até àquela ilhota era preciso atravessar a nado um pequeno trecho de água parada. Não calculei que era uma das armadilhas armadas pelo perigoso rio. Comecei a nadar, sem medo, aquela pequena travessia. No meio do trajeto, percebi que para nos movimentarmos em água parada é muito diferente do modo de enfrentar águas correntes. Estas são mais fáceis para um bom nadador, e até mesmo para os sofríveis. Nesse momento, minhas forças começaram a fraquejar à medida que eu avançava. A praia da ilhota estava a uns vinte metros de distância. Desistir de nadar naquele momento era fatal. O desespero começava a tomar conta de mim. Enchi os pulmões de ar, e mergulhei procurando com as pontas dos dedos dos pés o leito daquela porção d’água. Emergi ofegante. Tinha quase exauridas minhas forças. Não havia outro jeito, porém, voltei a nadar com o que me restava das minhas forças. Fui assim, mergulhava outra vez e procurava o chão com meus pés. Voltava à tona. Nenhum dos colegas me viu naquele desespero mortal, pois todos estavam absortos no jogo de futebol. A morte me rondava traiçoeiramente, até que, felizmente, meus pés tocaram nas areias do fundo daquelas águas. Ali já dava pé. Foi minha salvação. A cada imersão, eu impulsionava fortemente, com os pés no chão, meu corpo em direção à praia. Assim, escapei daquela armadilha. Não recordo se nessa tarde consegui ainda jogar bola com meus companheiros. Essas loucuras, meus pais, obviamente, nunca souberam!

Além das “peladas” e banhos no Parnaíba, eu praticava minhas divertidas pescarias. Naquele tempo, o rio tinha abundância em peixes dos mais variados tipos. Das águas turvas do Velho Monge saíam piaus, traíras, mandis, piranhas, arraias, arengas, surubins, matrinchãs e outros que não lembro os nomes.  

Com a minha infalível vara de pescar e o anzol, sem chumbo, munido de angu de cuscuz de milho como isca, fisgava rapidamente, uma a uma, as saborosas sardinhas prateadas reunidas em seus enormes cardumes “à flor das águas”. De outro modo, com o anzol “chumbado”, eu pescava mandis, piaus, piranhas e traíras.

Certa feita, quase ao pôr-do-sol, após chegar do Grupo Escolar João Costa, decidi pescar em um grande e espesso balseiro que ficava estancado embaixo da ponte, do lado de cá de Teresina. Era um bom local para a pescaria com anzol. Amarrei na ponta de uma grossa e longa linha de náilon um anzol de tamanho médio, e coloquei nele isca de umas das “patacas” que um colega tinha pegado ali no rio. Depois, abri com as mãos um buraco até encontrar água que passava sob aquele balseiro, e no buraco introduzi o anzol com a tal isca de peixe. Muito atento, fiquei segurando a ponta da linha com firmeza. Não demorou. De repente, a linha começou a ser movimentada rapidamente para o fundo do rio. Percebi então que um peixe acabara de ser fisgado. Devagarinho, usando técnica de pescador experiente, comecei a puxar de volta a linha de anzol com certa dificuldade. Pelo esforço que fiz naquele momento, imaginei ser um peixe grande. Para minha surpresa, era uma enorme traíra que pesava mais de um quilograma. Emocionado, corri para minha casa em desabalada carreira. Nesse dia, meu jantar foi um delicioso e convidativo peixe frito.

Igualmente, fiquei deslumbrado com o majestoso centro da cidade compreendendo a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Amparo e seus arredores, e com suas magníficas casas residenciais erigidas ao longo das ruas do perímetro urbano. E o que dizer das encantadoras praças Rio Branco e Pedro II? Dois espetaculares locais que lembram certos locais da Europa. A igreja de São Benedito, construída no antigo Alto da Jurubeba, também me impressionou muito. Deixaram-me, do mesmo modo, fascinado os cinemas Cine Rex e o 4 de Setembro, dos quais me tornei um assíduo frequentador. Fiquei embevecido com suas grandes telas brancas onde os filmes eram projetados. Os filmes de Faroeste, então, são inesquecíveis!

E por falar em cinema, lembro de um fato que ocorreu comigo no Cine Rex. Foi em uma tarde de Domingo de certo ano de 1963 ou 1964.  Como disse anteriormente, tornei-me um habitual frequentador dos cinemas Cine Rex e 4 de Setembro, nas sessões das “três e quinze”. Era meu principal divertimento, além de jogar bola, nadar e pescar no rio Parnaíba. Outro hobby que eu praticava era ler e colecionar revistas em quadrinhos ou gibis como algumas pessoas chamavam. Bons tempos foram aqueles quando da minha adolescência!

Narremos, então, a lembrança acima a qual me referi. Comumente, antes das quatorze horas de Domingo eu era um dos primeiros da fila para comprar os bilhetes de entrada do Cine Rex, nas sessões das “três e quinze”. Nesse dia, meu irmão Sansão (Domingos de Assunção, já falecido) me fazia companhia. Adentramos no recinto do cinema, onde procuramos o melhor local para assistir ao filme em cartaz naquele dia. Escolhemos as duas primeiras cadeiras localizadas do lado direito de uma das fileiras centrais do auditório, na área intermediária da sala de projeção.

Não lembro o nome do filme em exposição. Só sei que era uma boa película, pois o Cine Rex estava superlotado, inclusive com muita gente em pé ou sentada nos vãos dos corredores. Eu e meu irmão estávamos muito contentes. A sessão das “três e quinze” já havia iniciado uns 10 minutos atrás quando um rapaz, acompanhado de uma bela jovem, tocou no meu ombro me propondo comprar as “nossas poltronas”. Não vacilamos. Vendemos por um bom preço os dois lugares. A entrada do cinema estava garantida para o próximo Domingo. Um ótimo negócio, pensei! Mas essa transação tinha ônus. Sentamos, eu e o pequeno Sansão, no duro assoalho do corredor ao lado do casal que acabara de comprar nossos confortáveis assentos. O preço a pagar era o desconforto de ficarmos com os pescoços doloridos em razão de passar muito tempo com nossas cabeças levantadas para assistir ao filme que ora se refletia na telona do cinema.

Faltando uns dez ou quinze minutos para encerrar aquela sessão, percebi que um calhamaço de revistas havia caído no piso, ao meu lado esquerdo, onde eu e meu irmão estávamos sentados. Uma tentação em pegar aqueles gibis tomou conta de mim. Deixei de ver o filme por alguns segundos. Duas vozinhas zumbiam nos meus ouvidos. A primeira dizia: pega essas revistas, besta! São tuas; tu as achaste! A segunda, dizia-me, em oposição: Não faça isso! Isso não lhe pertence! E eu fiquei naquele dilema. Pego-as, ou não? Peguei-as! Fui vencido pela ganância, e pequei contra o oitavo mandamento da Lei de Deus. A essas revistas juntei com as minhas que levava comigo naquele Domingo.   

Imediatamente falei em voz baixa para o meu inocente irmão: temos que ir embora, agora. Ele não entendeu nada. Apenas me seguiu naquele escuro corredor em direção da saída do auditório, tomando o cuidado para não pisarmos nos pés dos meninos que também ali estavam sentados. Lá fora, verifiquei que dentre as revistas “achadas” havia algumas que eu possuía ou já tinha lido. Então, resolvi trocar essas revistas por outras no “Sebo” existente em frente ao Cine Rex. A sabedoria se apossou de mim e, me derrubou. De repente, ouvi uma raivosa voz atrás de mim: “me dá minhas revistas”. Com a cara de bravo, o dono da voz arrancou de minhas mãos as citadas revistas “achadas”. Fomos, mais que depressa, embora para nossa casa. Escapei de levar uns cascudos do grandalhão que havia me abordado. No caminho, eu ia calado e pensativo, acabrunhado e humilhado. Sabia que havia praticado um ato de desonestidade.  

No Domingo seguinte, não fui ao cinema. Eu estava ainda muito envergonhado com o leviano ato. Naquela oportunidade, prometi a mim mesmo observar rigorosamente o mencionado mandamento da Lei de Deus.

Outro acontecimento inesquecível ocorrido em minha adolescência foi o fato de eu ter concluído o curso primário e ter conseguido passar no exame de admissão ao ginásio da então Escola Industrial Federal do Piauí (EIFPI), hoje Instituto Federal do Piauí – IFPI.

Não recordo exatamente a data em que minha família foi morar no eufêmico Morro da Esperança. É provável que a mudança tenha ocorrido no final do ano de 1966 ou o início do ano seguinte. A nossa nova residência – ainda atravessávamos tempos difíceis - uma casinha de palha com paredes taipa, situava-se no final da Rua Alcides Freitas, na ribeira de um grotão, próximo ao rio Poti, nas imediações do “Monumento ao Finado Motorista Gregório”. Nesse tempo, eu cursava o segundo ano do ginásio na Escola Industrial. Tenho muitas lembranças desse período, mas não quero, e não devo, alongar-me mais nessa crônica.

  Sobre essa nova fase da minha vida, recomendo ao caro leitor, caso assim deseje, consultar uma crônica intitulada “Os Ventos do Morro da Esperança” e também o livro “A História de Chico Maroca”, ambos de minha autoria.

Um comentário: