terça-feira, 8 de setembro de 2020

PEDRO ÁLVARES CABRAL – Onde dormem teus restos mortais?

José Pedro Araújo

Em 2017, realizamos uma viagem inesquecível a Portugal. Diferentemente da vez anterior, quando ficamos em Lisboa e arredores, decidimos conhecer o Norte do país, terminando a nossa viagem na cidade do Porto. Outra diferença. Não adquirimos um pacote de viagem de uma agência de turismo, fizemos o nosso próprio programa de viagem, com base na experiência já adquirida. Decidimos, assim, alugar duas vans para levar o grupo e saímos pelo interior português, parando onde nos dava na telha, conhecendo as belezas sem conta que existem entre Lisboa e a capital do Norte, a cidade do Porto. Visitamos muitos castelos e mosteiros que contam a história daquele país irmão e ainda algumas cidades emblemáticas, como Coimbra, e sua universidade milenar, Braga, Fátima e Guimarães. A nossa primeira parada estava marcada, contudo, para prestarmos a nossa humilde homenagem a um distinto português a quem, afinal, devemos muito pela existência do nosso país: Pedro Álvares Cabral. Consta que seus restos mortais estão guardados na Igreja da Graça, na vetusta Santarém, distante pouco mais de oitenta quilômetros de Lisboa.  Digo consta, porque há ainda hoje uma certa controvérsia sobre o assunto.

Quando partimos de Lisboa o relógio marcava pouco mais de oito horas da manhã de um belo e ensolarado dia, ainda com aquela temperatura um pouco fria que nos dava uma ideia do que fora o inverno na região.

Igreja da Graça - Santarém
Igreja da Graça - Santarém/Portugal

Em aproximadamente uma hora de viagem já estávamos estacionando em frente ao templo construído em estilo gótico, em cujo interior, em um preservado mausoléu, estão sepultados o descobridor do Brasil, sua esposa D. Isabel de Castro, e o filho Antonio Cabral. Isso é o que a história diz. 

Desde quando iniciamos a programação da viagem a Portugal, imaginamos a possibilidade de fazermos uma breve parada em Santarém para conhecer o local onde se diz estaria sepultado os restos mortais do descobridor. Confesso que fiquei um pouco emocionado quando me vi de frente para a história do nosso país. Naquela hora da manhã, ainda haviam poucas pessoas visitando a Igreja da Graça, e pudemos reverenciar silenciosamente o túmulo de Cabral e fazer algumas fotos para registrarmos a nossa passagem por lá. Em frente à igreja, em uma praça pequena em cujo perímetro fica a casa em que Cabral morou, existe uma estátua do descobridor. Fizemos algumas fotos defronte a ela também. Há informações que aquela estátua foi uma doação do governo brasileiro, acho que durante o governo Médici. Feito isto, partimos para o nosso próximo destino com aquela sensação de que deixávamos para trás uma passagem importante da nossa história. Até a parada seguinte, em frente ao Mosteiro de Alcobaça, pouco mais de cinquenta quilômetros depois, o assunto tratado foi a emoção de termos estado frente a frente com o túmulo do grande navegador português, mesmo sabendo que havia uma certa controvérsia a respeito da morada definitiva de Pedro Álvares Cabral ali. Há uma história complexa sobre isso, e esse é o objeto desta crônica.

Mausoléu da família Cabral

Esta semana, passados já alguns anos desde aquela nossa viagem, pesquisando nos arquivos virtuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deparei-me com um documento intitulado “Os Restos Mortais de Pedro Álvares Cabral”, com data de 28.06.1967, da autoria de Enéas Martins Filho, sócio efetivo daquele instituto. No documento, o autor presta conta de uma viagem feita ao país de Camões e detalha com bastante minudência a origem e o desenrolar da questão que tem posto em dúvidas o local em que repousam os restos mortais do nobre navegador português, oficialmente conhecido como o descobridor do Brasil.

Castelo de Belmonte - Belmonte/Portugal

Pedro Álvares Cabral, descendente de família nobre, nasceu no castelo da família na Vila de Belmonte, distrito de Castelo Branco, na região da Beira Baixa, a pouco mais de duzentos e trinta quilômetros de distância do local em que faleceu, Santarém, lugar em que se encontra oficialmente sepultado. Falecido em 1520, foi acomodado em um túmulo comum e provisório, mas sem a pompa que merecia. As informações que vamos dar doravante, foram extraídas do documento preparado pelo membro do IHGB, Enéas Martins Filho, além de outras colhidas mais recentemente na internet.

A viagem do historiador tinha como objetivo afastar as muitas dúvidas que existem também em nosso país se os restos mortais de Cabral teriam sido trasladado para o Brasil em 1903, por ocasião de uma grande campanha deflagrada na época para o traslado dos restos mortais do grande navegador, e que culminou com a ida do advogado Alberto de Carvalho a Portugal, entre outras coisas, com este propósito. Talvez, em decorrência disto, alguns passaram a afirmar que os restos mortais do descobridor estariam em uma urna de madeira guardada na antiga Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, trazida de além mar pelo advogado.

Sabia o historiador que em 1529, a viúva de Cabral, D. Isabel de Castro, que era Camareira-Mor de dona Maria, filha do rei D. João III, havia contratado com o prior e demais religiosos da Graça  para na Capela de São João Evangelista, daquela Igreja, construírem um mausoléu com o propósito de sepultar em definitivo os restos cadavéricos do marido, bem como do restante da família, ela aí incluída, quando o seu momento chegasse. D. Isabel contratou não somente a permanência do jazigo familiar naquele local, mas também a realização de quinze missas anuais, tudo às custas de um foro retirado de suas propriedades situadas próximas ao Concelho de Rio Maior.  

Deste modo, algum tempo depois, concluída a construção do mausoléu, foram os restos mortais de Cabral, e do filho Antonio, transferidos para o local em que se diz estarem ainda hoje, lá em Santarém. Mas essa história tem muito a ser contada ainda. Enéas, por exemplo, diz em seu documento, que “Em 1882, por iniciativa do arqueólogo português Zeferino Brandão, autor do livro Monumentos e Lendas de Santarém, foi aberto o jazigo. Nessa oportunidade, foi lavrado um auto que atesta a presença de três esqueletos, um deles com sinais de ter sido colocado em ocasião diversa dos dois primeiros, o que confirmava a transferência dos restos de Pedro e Antonio Cabral da sepultura provisória para o jazigo perpétuo e a posterior inumação, em 1538, de D. Isabel de Castro”.

Todavia, naquela primeira abertura, o túmulo de Cabral continha a presença de algo estranho, o esqueleto de uma cabra. Mas isso, só vinha confirmar que o jazigo pertencia realmente ao navegador. É o que afirma o site “Gosto de Santarém – Até os limites do Ribatejo”. Afirma aquele portal na matéria intitulada “Quatro Túmulos para um homem só”, que “Causou ainda estranheza a presença do esqueleto de uma cabra no interior do túmulo. Para muitos, isso provava que dentro daquela sepultura jazia Pedro Álvares Cabral: o escudo dos Cabrais ostenta dois destes animais”. Quanto a existência de quatro túmulos para Cabral, referia-se o autor ao primeiro túmulo provisório, evidentemente, ao definitivo no interior da Igreja da Graça, a um outro existente em Belmonte, terra de nascimento do navegante, contendo cinzas dele, e ao que existe no Brasil, já citado.

Voltando a Enéas Martins, embarcou o historiador para Santarém com o propósito de dirimir certas dúvidas, uma vez que se avizinhavam as comemorações para o V Centenário do nascimento de Cabral. O viajante possuía informações de que o bacharel e político carioca Alberto de Carvalho, quando em viagem a Portugal, em 1903, mantivera contato com autoridades daquele país com o propósito de trazer algumas relíquias para o Brasil, algo que fizesse lembrar daquele navegador, se não, a ossada completa. Extraoficialmente, o embaixador brasileiro naquele país, Alberto Fialho, também se envolveu com o caso, e conseguiram autorização para fazer a abertura do mausoléu outra vez. Naquele momento, ficaram muito impressionados com o profundo descaso com que o jazigo da família Cabral estava sendo tratado, e resolveram empreender uma campanha para cuidar do caso e melhorar as condições do túmulo do navegador português e de sua família.

Deste modo, no dia 14 de março de 1903, estavam lá na Igreja da Graça, além de Alberto de Carvalho e do ministro Alberto Fialho, autoridades eclesiásticas de Santarém. Estavam lá também presentes representantes dos dois ramos familiares de Cabral, os Pontes de Lima e os Belmonte. Em decorrência de um certo desacerto entre os dois ramos familiares, dois protestos foram lavrados e anexados aos autos de abertura da campa. E, pelo que parece, resolvido o problema inicial.

Entretanto, aberto o jazigo, começaram outros tipos de problemas: oito esqueletos foram encontrados lá dentro. Cinco de homens, um de mulher, e dois de crianças. Se em 1882 haviam sido encontrados no mausoléu apenas três corpos, agora eram oito as ossadas lá encontradas, o que confirmava a preocupação do ministro brasileiro em relação ao descuido em relação ao jazigo do descobridor do Brasil. O estranho é que Cabral possuía cinco filhos, dois homens e três mulheres. Alguém não cuidou como devia do contrato firmado entre a viúva e os representantes da igreja. E em decorrência deste problema, diz o historiador Enéas Martins Filho, “resultou dai que a Comissão determinou não ser possível determinar entre tantos ossos, quais eram os do grande navegador”.

O “Gosto de Santarém”, portal já citado acima, por sua vez, afirma que “Segundo investigadores no Brasil, optou-se por uma solução simplista: dividiram-se os ossos e formaram-se dois esqueletos completos. Um ficou em Portugal, o outro terá sido depositado na Igreja do Carmo, a antiga Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro”. E atribuem essa informação aos brasileiros. Contudo, essa afirmativa eles mesmos se encarregam de desmentir quando dizem, na mesma reportagem, que “A própria lápide brasileira não refere nada sobre restos mortais, mas sim ‘resíduos mortuários’”.

O historiador em quem nos baseamos nesse texto, Enéas Martins Filhos, concluiu o seu relato, no documento apresentado à Comissão do V Centenário, dizendo o que viu em um ofício do Conselheiro Simões Baião, datado de 29 de março de 1903, dirigido ao Ministro de Obras Pública de Portugal, que o Advogado e político carioca, Alberto de Carvalho, adquiriu duas urnas de mogno trabalhado com metais, e em ambas colocou da cal que envolvia as ossadas de Cabral. Uma ofereceu à Sociedade de Geografia de Lisboa, e a outra trouxe para o Brasil. E mais, que “O Correio do Ribatejo”, jornal português, em edição do dia posterior à exumação de 1903, dizia que as urnas destinadas às ossadas de Cabral foram enchidas com terra da sua sepultura.

Urna na Igreja do Carmo-Rio

Esclarece, por fim, que em uma carta datada de 30 de agosto de 1903, do Arcebispo Metropolitano do Rio de Janeiro, Dom Joaquim Arcoverde, a autoridade eclesiástica “concordou em dar abrigo na Catedral Metropolitana a uma urna cinerária, trazida de Portugal, contendo terra colhida na sepultura de Pedro Álvares Cabral”. Disse ainda que a colocação da urna só foi realizada em 20 de fevereiro do ano seguinte, 1904.

Portanto, uma parte da matéria publicada no “Gosto de Santarém”, que diz que os brasileiros afirmam que os restos de Pedro Álvares Cabral estariam descansando no Brasil, carece de verdade.

Deste modo, para encerrar a participação do historiador Enéas Martins Filho, dizendo que registrou, ao concluir o seu relatório de viagem, que “os restos mortais de Pedro Álvares Cabral continuam onde sempre estiveram, desde sua morte, na Igreja da Graça, em Santarém”.



Por fim, define e esclarece a dúvida sobre o que existe de Pedro Álvares Cabral no Brasil, uma placa afixada em uma das paredes da Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, antiga Sé, edificada na Av. Chile, no centro do Rio. Nela, está contida a seguinte inscrição: “Aos 30 de dezembro de 1903, sendo Arcebispo desta Diocese D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, foi aqui depositada uma urna dupla de chumbo e madeira contendo resíduos mortuários de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, extraídos aos 14.03.1903 de sua sepultura na igreja de N. S. da Graça de Santarém, em Portugal, onde desde o ano de 1529, achavam-se em jazigo de família, trazidos e doados a esta Catedral pelo Bel. Alberto de Carvalho”.

 Diante de tais informações, só me resta dizer que estive realmente de frente para os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, quando visitei Santarém com o propósito de prestar meus singelos agradecimentos post morten ao navegante português.

Um comentário:

  1. Valeu meu amigo Araújo
    Excelente informação. Muito interessante para todo brasileiro. Parabéns. Abr

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