quinta-feira, 3 de junho de 2021

O CANTO DE JUCA

Foto do autor.

(Aroucha Filho) *

 

                                              " a cidade está no homem

  quase como a árvore voa

  no pássaro que a deixa"

Poema Sujo/Ferreira Gullar (antepenúltimo verso).

 

Todas as cidades possuem construções com traços arquitetônicos que remontam a tempos passados. Comerciais ou residenciais, são edificações que registram o aspecto da arquitetura naquele momento. As casas antigas construídas na baixada maranhense possuem forte influência da arquitetura portuguesa. Algumas retratam edificações do Centro Histórico de São Luís, a exemplo do Sobrado Amarelo de Viana, que pertenceu à família Gaspar. Hoje, por doação, pertencente   à Prefeitura Municipal de Viana. Caracterizam-se essas construções por detalhes que passam despercebidos a um simples olhar contemplativo.

Em Matinha as construções que mais fortemente absorveram essa influência da arquitetura portuguesa, encontravam-se edificadas à rua Coronel Antônio Augusto, no cruzamento com a rua Dr. Afonso Matos. Esse cruzamento de vias, formava a esquina mais destacada da cidade, durante muito tempo a única esquina totalmente edificada.

Em um olhar mais aprofundado observam-se aspectos da arquitetura portuguesa em detalhes comuns nessas edificações. Todas foram erguidas nos limites frontal e lateral dos terrenos, possuíam grandes telhados de duas águas com cumieira paralela às ruas, espigões, paredes grossas, eiras e beiras, janelas e portas com muitas semelhanças e grandes quintais.

Todas elas possuíam espaço reservado para estabelecimento comercial. Esses espaços tinham duas portas voltadas para rua Coronel Antônio Augusto e uma porta e janela para a rua Dr. Afonso Matos. Ali funcionaram farmácia e quitandas.

Os quintais dessas casas eram verdadeiros pomares com grande variedade de frutas.  As frutas, manga rosa, laranja, limão, ata, peruana, coco manso e carambola, eram comuns aos quatro quintais. Encontravam-se ainda nesses quintais, pés de abricó, amejuba, goiaba, goiaba prata, seriguela, cajá do Pará, jenipapo, jaca, laranja, lima, tangerina, tamarindo, pitanga, caju, manga comprida, manga Carlota, manga cajá, ginja, jacama. Todas as quatro casas possuíam poços revestidos com tijolos compactos e poiais de proteção.

Por laços de parentesco e amizade, era-me permitido frequentar todas as casas e quintais, coisa que fazia com bastante frequência. Tanto é que, o aqui relatado, provém dos guardados no baú da minha memória. Impressionava-me aquele conjunto de grandes casas de calçadas altas e muitas portas e janelas à beira da rua.

Entre elas, destacava-se o imponente sobrado azul do Sr. João Amaral da Silva, que formava com as demais casas o conjunto arquitetônico histórico mais relevante de Matinha. Era um sobrado com piso de madeira de lei, elegante escada interna, circundado de janelões no pavimento superior. No térreo, as janelas e portas eram dispostas alternadamente. Esse recurso arquitetônico de pé direito alto, compartimentos amplos, muitas portas e janelas, tornavam os ambientes das residências bem iluminados e arejados, propiciando maior conforto aos residentes.

Era nesse Palacete que ocorriam as grandes decisões políticas da época. Nada era decidido sem antes receber o aval do Sr. João Amaral. Juca era um líder nato. Ouvia muito e falava pouco. A humildade era uma das suas maiores virtudes. Foi nesse sobrado que ocorreram todas as negociações para a emancipação política de Matinha. O líder e o grande protagonista desse fato histórico foi o Sr. João Amaral da Silva, ancorado no apoio político do deputado estadual Santos Neto e do deputado federal Dr. Afonso Matos.

As recepções e banquetes oferecidos às autoridades governamentais e eclesiásticas que visitavam Matinha, ocorriam nesse "Palácio". Lembro do grande banquete oferecido ao arcebispo Dom José Medeiros Delgado, quando da implantação da Paróquia de Matinha.

Essa esquina, mais conhecida como "Canto de Juca", era um dos locais mais frequentados da cidade. Além de bastante atrativa, tinha funcionalidade comercial, pois possuía farmácia, quitandas, padaria e usina de beneficiamento de arroz. Muitos acorriam a esse local para consultas com a Sra. Ana Rita Amaral da Silva, enfermeira, quase médica, que com os seus conhecimentos e práticas da medicina, salvou muitas vidas e abnegadamente prestou relevantes serviços a toda sociedade matinhense. Presenciei inúmeras vezes, no período noturno, Dona Ana Rita, montada em garupa de cavalo, deslocar-se para os povoados para prestar socorro a muitas famílias que a procuravam para socorrê-las em suas enfermidades.

No Canto de Juca, nós, jovens da época, reuníamo-nos sentados em bancos fixos que existiam nos cantos daquelas casas, para bater ingênuos papos, contar histórias, e nas noites estreladas identificar constelações - Ema, Três Marias, Cruzeiro do Sul e outras. Ouvir na radiola Philips de Zé Américo de Gustavo, canções da Jovem Guarda. Ali era o marco inicial de todas as nossas serenatas. Nos dias de serenatas, lá para às onze da noite, carregando a radiola e os LPs/Compactos de vinil, saíamos para despertar as nossas namoradas com canções de Roberto Carlos, Paulo Sérgio, Jerry Adriane, Ronnie Von, Vanderlei Cardoso, Evaldo Braga, Silvinho, Valdick Soriano, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria, Dilermando Reis & Francisco Petrônio...

As casas pertenciam às famílias do Sr. João Amaral, Sr. Gustavo Silva e depois Sr. Ademar Amaral, Sra. Lola/Ana Rita e Sr. Maneco Sena, depois Sr. Miguel Brito.

Nos anos sessenta, a Sra. Joana, esposa do Sr. Boaventura, vizinha da esquina, ia até a calçada de Dona Lola comercializar seu delicioso mingau de milho.

Era tal a importância desse canto, que certa vez aconteceu um fato curioso, que narro: Para aquele local foi acertado de véspera, um encontro para uma briga que acabou por envolver duas famílias. Tive oportunidade de presenciar essa contenda em um dia ainda cedo, pela manhã. Foram uns vinte minutos de tapas, murros, chutes e cabeçadas. Dessa confusão participaram uns oito contendores, que apesar de lembrar dos nomes, omito-os. Fiquemos apenas com o fato.

Lamento o apagar dessa memória física. Reconstruo e contemplo com o que ficou arraigado na minha memória, essa majestosa esquina chamada o "Canto de Juca".

 

(*) Aroucha Filho é agrônomo, poeta, compositor e cronista.

 

5 comentários:

  1. Caro José Pedro, obrigado pela publicação desse singelo texto. Na minha idade as lembranças assaltam a memória e exigem essas reminiscencias.

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    1. Um ótimo texto que me levou de volta ao meu Curador. Nós que devemos agradecer aos nossos amigos e colaboradores. Queremos mais!

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  2. Meu amigo, eu me sinto orgulhoso em pertencer a esse seleto grupo de poetas,escritores e cronistas que, mesmo no anonimato, registram nas suas diversas modalidades textuais as suas narrações históricas e culturais.

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    1. O blog tem realmente um grupo seleto de colaboradores que nos enchem de orgulho, conterrâneo. Vamos à luta!

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  3. Por alguns minutos mergulhei nas águas profundas do meu passado e lá Vi meninos de calças curtas brincando com papagaios pião caçando passarinhos nas ruas inesquecíveis da minha querida cidade de Matinha e por pouco as lágrimas não brotaram dos meus olhos ao ler este magnifico artigo do meu querido confrade Aroucha Filho

    Manoel Santana Câmara Alves membro da academia matinhense de ciências Artes e letras

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