Rua em que residíamos |
Vegetação aquática demonstra assoreamento do açude |
José
Pedro Araújo
Passava minhas férias de julho em um povoado simpático e acolhedor
chamado Crioli do Joviniano, situado a pouco mais de doze quilômetros de
Presidente Dutra. Região de solos ubérrimos, por lá se produziam muito arroz e
se exploravam os extensos babaçuais que cobria parte daquele território. Meu Pai
tinha por lá uma filial do seu comércio e também adquiria esses produtos que já
citei. Apesar de se situar tão próximo à sede, o acesso a ele durante o período
invernoso era muito difícil, diria quase impossível para veículo automotor. A
terra que era boa para a agricultura, mostrava-se indigesta para os meios de
transporte, em razão do massapê se transformar em um lamaçal intransponível
quando as chuvas caiam fartas sobre a região. O transporte, assim, era feito no
lombo de animal, ou pelos carros-de-boi, situação válida tanto para os
passageiros como para o transporte de cargas.
Lembro-me, a
propósito disto, que certa noite, debaixo de uma chuva torrencial, meu pai foi
acordado por alguns tropeiros que lhe traziam mercadoria para abastecer a loja.
Curioso com o barulho levantei para observar o que ocorria e me deparei com
alguns homens vestidos com capas de chuva, chapéu enterrado até as orelhas, que
freneticamente descarregavam vários animais. Apesar de protegidos da chuva,
alguns fardos achavam-se enlameados e pingavam água e lama enquanto eram
levados para dentro do salão comercial, ao lado da casa. Depois fiquei sabendo
que alguns burros haviam caído em decorrência do lamaçal impossível, e a
mercadoria que transportavam ficou muito molhada. Como a maior parte da
mercadoria era composta de peças de tecidos, imaginem o aborrecimento do meu
pai com a notícia.
Deste modo,
a presença de visitantes na nossa casa, fato muito comum no período sem chuvas,
escasseava durante as chuvaradas da primeira metade do ano. E como nesse
período quase ninguém aparecia por lá para nos visitar, as férias de fim de
ano, assim, era meio triste. Falo da folga desse período porque durante o ano
letivo eu ficava na cidade para estudar. Agora, as férias de julho eram muito
animadas. Invariavelmente recebíamos a visita de alguns parentes e amigos.
Mas o
objetivo dessa conversa, até mesmo para honrar o título que a encabeça, leva-me
a dizer que o povoado possuía um açude de bom tamanho, que era o ponto de maior
atração de todos que por lá apareciam, especialmente para a garotada que não se
negava a alguns mergulhos no caudaloso ajuntamento de águas. Para os meus olhos
de criança, aquele açude estava mais para um grande mar; talvez até fosse um
oitavo mar, desconhecido daqueles que consideravam existir apenes sete em todo
o planeta. Em dias de ventos mais fortes, as águas da barragem chegavam a
agitarem-se, formando pequenas ondas, maretas ininterruptas e impetuosas. Para
mim, que não conhecia até então o oceano que banha as costas do nosso país,
aquele era um mar de fato e de direito, sim. O problema era que eu não sabia
nadar ainda. Nem “bater água”, como se diz por lá, eu sabia. E minha mãe vivia
no meu pé. Temia que eu viesse a me afogar naquelas águas profundas. Quando me
permitia tomar banho lá, era sempre acompanhado por um adulto e debaixo de
severas ordens. Ficava eu nessas ocasiões, em uma parte rasa que normalmente
era ocupada pelas pessoas que como eu não sabiam nadar, ou por aqueles que
vinham dar banho nas suas montarias, fato que acontecia sempre nos finais de
tarde. Ai então misturavam-se quadrupedes e humanos democraticamente, todos
aliviando o corpo das impurezas que pousa-nos na pele pelo decorrer do dia.
Agravava-se
o meu problema, o fato de meu pai possuir um sítio recoberto de fruteiras ao
lado da parede do açude. Até mesmo um filete de água escorria por baixo do
paredão e formava um riachinho que serpenteava por dentro do nosso sítio,
irrigando boa parte dele. E quando vinha apanhar frutas, sempre dava um jeito
de espiar aquele marzão que me encantava e me atraia como se algumas sereias me
tentassem com o seu canto, como fizeram com o herói de Homero, Ulisses.
Em uma
dessas férias de julho, veio nos visitar um irmão de minha mãe que morava em
Fortaleza. E trouxe consigo um de seus filhos, poucos anos mais velho que eu. Ficamos
felizes com os visitantes, uma vez que o meu tio demorava a vir visitar a
família. E para mim foi uma felicidade maior ainda. Ganhei uma baladeira nova
trazida pelo meu primo. E eu, para recompensá-lo, convidei-o a conhecer o
grande açude. Fiz isso na surdina, sem que minha mãe percebesse. Levei junto
conosco um amigo mais ou menos da mesma idade do meu primo, e fomos
sorrateiramente conhecer o nosso mar particular e desconhecido da maioria dos
navegantes. Passava um pouco da uma da tarde quando subimos uma colina e de lá
se descortinou à nossa frente o belo açude do Crioli. Meu coração batia forte,
como sempre acontecia quando eu atingia o pico da colina e mergulhava a minha
visão naquelas águas dadivosas.
Descemos a
ladeira em desabalada correria e, ao chegarmos no meio da parede do açude, meu
primo e o meu amigo baixaram as calças curtas, e pularam nu em pelo para as
águas e saíram nadando para bem distante. Fiquei estático, parado e remoendo
uma infelicidade sem tamanho. O fato de não saber nadar não me permitia
acompanhar meus dois amigos naquele maravilhoso banho em águas tão cintilantes
e refrescantes. Olhei para os lados, desespero estampado no olhar, e vi quando
uma lavadeira levantou-se de onde estava na beira da água e levou algumas peças
de roupa para estender em umas moitas próximas. Vi ali a minha alternativa. E
não contei até três: desci pela parede do açude e me apropriei da enorme tábua
de tamboril que a mulher utilizava até instantes antes, e me joguei na água,
qual fazem hoje os praticantes de Body Surf. Sai batendo os pés na água e logo
ganhei o meio do açude. Lá atrás ficou a mulher lançando impropérios contra
mim, por ter levado a sua tábua da bater roupas. Minha alegria não dava lugar
para exames de consciência. Não queria nem saber se com aquele gesto aloucado
eu estava atrapalhando o serviço da pobre mulher. Para mim era bastante o vento
forte e as pequenas maretas que vinham de encontro ao meu rosto e peito.
Já estava a
meio caminho de onde se encontrava meus amigos, agarrados agora a alguns galhos
de uma árvore seca que existia no meio da água. Ao longe ainda via a mulher
gesticulando e, provavelmente me lançando algumas palavras do seu repertório
que não poderiam ser repetidas em um texto como este. Nada me importava. A
aventura me bastava. Mas dizem os mais esclarecidos que a vingança anda a
cavalo. E cavalo gordo, eu diria. A tábua que me conduzia contra a corrente,
mantinha-se um pouco elevada da água devido ao meu peso na outra ponta, e logo
uma onda mais forte a levantou mais alto ainda, deixando-a quase na vertical.
Lisa, porque ensaboada estava, não consegui me segurar nela e logo desci para o
fundo. O desespero foi grande. Achei que a minha hora tinha chegado.
Desesperado,
comecei a bater fortemente com os pés e com as mãos e logo comecei a subir para
a superfície da água. Logo ao chegar lancei os dois braços para fora da água
em busca de algo para me agarrar e, o
milagre aconteceu: o vento ajudou as ondas a trazerem de volta a tábua que
tinha sido impelida para a frente quando eu a larguei abruptamente. E ela se
achava agora exatamente sobre mim. Agarrei-a fortemente e consegui subir nela
novamente. Meus amigos não havia nem dado conta do perigo que me acercara. Bati
os pés com força, agora para trás, para o ponto de partida, e em pouco tempo,
ajudado pela corrente cheguei à margem. A mulher estava a me esperar, e pelo
jeito, acompanhara todo o meu desespero de náufrago, pois estava radiante, e
ainda aproveitou para me sacanear. Não respondi nada, e voltei correndo para
casa. Nunca mais foi preciso que minha mãe me admoestasse sobre os perigos de
tomar banho naquele açude que todo ano tragava algumas pessoas para o fundo das
suas águas. Eu não lhe confessei o que havia me ocorrido. Mas, nunca mais
voltei a molhar os pés lá.
Excelente crônica. Parabéns! O açude continua por lá, vivendo a decadência da ação devastadora do homem. São muitas as histórias sobre o Açude do Creoli do Joviniano, que agora ganha para os seus acervos este belíssimo texto, produzido pelo ilustre filhos daquelas paragens. Brasília - DF, 10.12.2015 - Remy Soares de Carvalho
ResponderExcluirObrigado, grande amigo e conterrâneo.Nestes tempos em nos debatemos com a falta ou carência do liquido precioso, é profundamente triste se saber que temos um grande manancial como aquele, pronto para todas as atividades, lazer, beber, pescar, irrigar ou simplesmente apreciar a placidez de suas águas em merecido descanso após um puxado dia de trabalho, vemos tudo aquilo se perder. Ainda podemos recuperá-lo. ainda bem.
ExcluirCaro JP,
ResponderExcluirVendo a foto e a legenda desse açude degradado, lembro que no nosso Piauí, além de o Poder Público (Federal, Estadual e Municipal) praticamente nada fazerem em prol de nosso patrimônio natural, deixam que se degradem os nossos mananciais e ainda concorrem para isso com as suas "obras", tais como esgotos, barragem, retiradas d'água e com a desídia de não fiscalizar as agressões ambientais. Agora mesmo vi notícias de que mais de uma dezena de nossas lagoas secaram, seja por causa do desmatamento, das queimadas ou da morte dos rios e riachos que as alimentavam. Eu mesmo conheço algumas lagoas e açudes, que se encontram secas ou quase secas, com o solo esturricado.
Caro Poeta,
ExcluirAs autoridades deste país estão preocupadas com outras coisas. Nada do que diz respeito à natureza interessa-os. Criaram um sem número de instituições ditas de proteção ao meio-ambiente, mas, no fundo, interessam-se apenas com os cargos que elas oferecem. O caso da Lagoa do Portinho também é emblemático: enquanto rendia aparições na mídia,um enorme grupo de pseudos defensores da natureza fizeram a sua festa particular. Depois, sumiram e não se falou mais no caso. Ridículos, é o que eles são!
Dr. Araújo, o problema com os nossos mananciais é crônico. A exemplo disso posso citar um riacho lá em Barras; hoje imenso grotão a céu aberto. Sobre sua aventura nas águas do açúde Crioli cabe ressaltar: "é melhor escapar fedendo a morrer limpinho." (Risos). Parabéns pelo excelente "causo", ou melhor, excelente crônica. Um abraço. Chico Carlos.
ResponderExcluirO riachinho de barras está marcado com uma cruz com o nome da nossa geração. A "geração insensível".
ExcluirQuis dizer Barras, com "B" maiúsculo.
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