quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Náufrago Arrependido

Rua em que residíamos

Vegetação aquática demonstra assoreamento do açude


José Pedro Araújo
            Passava minhas férias de julho em um povoado simpático e acolhedor chamado Crioli do Joviniano, situado a pouco mais de doze quilômetros de Presidente Dutra. Região de solos ubérrimos, por lá se produziam muito arroz e se exploravam os extensos babaçuais que cobria parte daquele território. Meu Pai tinha por lá uma filial do seu comércio e também adquiria esses produtos que já citei. Apesar de se situar tão próximo à sede, o acesso a ele durante o período invernoso era muito difícil, diria quase impossível para veículo automotor. A terra que era boa para a agricultura, mostrava-se indigesta para os meios de transporte, em razão do massapê se transformar em um lamaçal intransponível quando as chuvas caiam fartas sobre a região. O transporte, assim, era feito no lombo de animal, ou pelos carros-de-boi, situação válida tanto para os passageiros como para o transporte de cargas.

            Lembro-me, a propósito disto, que certa noite, debaixo de uma chuva torrencial, meu pai foi acordado por alguns tropeiros que lhe traziam mercadoria para abastecer a loja. Curioso com o barulho levantei para observar o que ocorria e me deparei com alguns homens vestidos com capas de chuva, chapéu enterrado até as orelhas, que freneticamente descarregavam vários animais. Apesar de protegidos da chuva, alguns fardos achavam-se enlameados e pingavam água e lama enquanto eram levados para dentro do salão comercial, ao lado da casa. Depois fiquei sabendo que alguns burros haviam caído em decorrência do lamaçal impossível, e a mercadoria que transportavam ficou muito molhada. Como a maior parte da mercadoria era composta de peças de tecidos, imaginem o aborrecimento do meu pai com a notícia.

            Deste modo, a presença de visitantes na nossa casa, fato muito comum no período sem chuvas, escasseava durante as chuvaradas da primeira metade do ano. E como nesse período quase ninguém aparecia por lá para nos visitar, as férias de fim de ano, assim, era meio triste. Falo da folga desse período porque durante o ano letivo eu ficava na cidade para estudar. Agora, as férias de julho eram muito animadas. Invariavelmente recebíamos a visita de alguns parentes e amigos.

            Mas o objetivo dessa conversa, até mesmo para honrar o título que a encabeça, leva-me a dizer que o povoado possuía um açude de bom tamanho, que era o ponto de maior atração de todos que por lá apareciam, especialmente para a garotada que não se negava a alguns mergulhos no caudaloso ajuntamento de águas. Para os meus olhos de criança, aquele açude estava mais para um grande mar; talvez até fosse um oitavo mar, desconhecido daqueles que consideravam existir apenes sete em todo o planeta. Em dias de ventos mais fortes, as águas da barragem chegavam a agitarem-se, formando pequenas ondas, maretas ininterruptas e impetuosas. Para mim, que não conhecia até então o oceano que banha as costas do nosso país, aquele era um mar de fato e de direito, sim. O problema era que eu não sabia nadar ainda. Nem “bater água”, como se diz por lá, eu sabia. E minha mãe vivia no meu pé. Temia que eu viesse a me afogar naquelas águas profundas. Quando me permitia tomar banho lá, era sempre acompanhado por um adulto e debaixo de severas ordens. Ficava eu nessas ocasiões, em uma parte rasa que normalmente era ocupada pelas pessoas que como eu não sabiam nadar, ou por aqueles que vinham dar banho nas suas montarias, fato que acontecia sempre nos finais de tarde. Ai então misturavam-se quadrupedes e humanos democraticamente, todos aliviando o corpo das impurezas que pousa-nos na pele pelo decorrer do dia.

            Agravava-se o meu problema, o fato de meu pai possuir um sítio recoberto de fruteiras ao lado da parede do açude. Até mesmo um filete de água escorria por baixo do paredão e formava um riachinho que serpenteava por dentro do nosso sítio, irrigando boa parte dele. E quando vinha apanhar frutas, sempre dava um jeito de espiar aquele marzão que me encantava e me atraia como se algumas sereias me tentassem com o seu canto, como fizeram com o herói de Homero, Ulisses.

            Em uma dessas férias de julho, veio nos visitar um irmão de minha mãe que morava em Fortaleza. E trouxe consigo um de seus filhos, poucos anos mais velho que eu. Ficamos felizes com os visitantes, uma vez que o meu tio demorava a vir visitar a família. E para mim foi uma felicidade maior ainda. Ganhei uma baladeira nova trazida pelo meu primo. E eu, para recompensá-lo, convidei-o a conhecer o grande açude. Fiz isso na surdina, sem que minha mãe percebesse. Levei junto conosco um amigo mais ou menos da mesma idade do meu primo, e fomos sorrateiramente conhecer o nosso mar particular e desconhecido da maioria dos navegantes. Passava um pouco da uma da tarde quando subimos uma colina e de lá se descortinou à nossa frente o belo açude do Crioli. Meu coração batia forte, como sempre acontecia quando eu atingia o pico da colina e mergulhava a minha visão naquelas águas dadivosas.

            Descemos a ladeira em desabalada correria e, ao chegarmos no meio da parede do açude, meu primo e o meu amigo baixaram as calças curtas, e pularam nu em pelo para as águas e saíram nadando para bem distante. Fiquei estático, parado e remoendo uma infelicidade sem tamanho. O fato de não saber nadar não me permitia acompanhar meus dois amigos naquele maravilhoso banho em águas tão cintilantes e refrescantes. Olhei para os lados, desespero estampado no olhar, e vi quando uma lavadeira levantou-se de onde estava na beira da água e levou algumas peças de roupa para estender em umas moitas próximas. Vi ali a minha alternativa. E não contei até três: desci pela parede do açude e me apropriei da enorme tábua de tamboril que a mulher utilizava até instantes antes, e me joguei na água, qual fazem hoje os praticantes de Body Surf. Sai batendo os pés na água e logo ganhei o meio do açude. Lá atrás ficou a mulher lançando impropérios contra mim, por ter levado a sua tábua da bater roupas. Minha alegria não dava lugar para exames de consciência. Não queria nem saber se com aquele gesto aloucado eu estava atrapalhando o serviço da pobre mulher. Para mim era bastante o vento forte e as pequenas maretas que vinham de encontro ao meu rosto e peito.

            Já estava a meio caminho de onde se encontrava meus amigos, agarrados agora a alguns galhos de uma árvore seca que existia no meio da água. Ao longe ainda via a mulher gesticulando e, provavelmente me lançando algumas palavras do seu repertório que não poderiam ser repetidas em um texto como este. Nada me importava. A aventura me bastava. Mas dizem os mais esclarecidos que a vingança anda a cavalo. E cavalo gordo, eu diria. A tábua que me conduzia contra a corrente, mantinha-se um pouco elevada da água devido ao meu peso na outra ponta, e logo uma onda mais forte a levantou mais alto ainda, deixando-a quase na vertical. Lisa, porque ensaboada estava, não consegui me segurar nela e logo desci para o fundo. O desespero foi grande. Achei que a minha hora tinha chegado.

            Desesperado, comecei a bater fortemente com os pés e com as mãos e logo comecei a subir para a superfície da água. Logo ao chegar lancei os dois braços para fora da água em  busca de algo para me agarrar e, o milagre aconteceu: o vento ajudou as ondas a trazerem de volta a tábua que tinha sido impelida para a frente quando eu a larguei abruptamente. E ela se achava agora exatamente sobre mim. Agarrei-a fortemente e consegui subir nela novamente. Meus amigos não havia nem dado conta do perigo que me acercara. Bati os pés com força, agora para trás, para o ponto de partida, e em pouco tempo, ajudado pela corrente cheguei à margem. A mulher estava a me esperar, e pelo jeito, acompanhara todo o meu desespero de náufrago, pois estava radiante, e ainda aproveitou para me sacanear. Não respondi nada, e voltei correndo para casa. Nunca mais foi preciso que minha mãe me admoestasse sobre os perigos de tomar banho naquele açude que todo ano tragava algumas pessoas para o fundo das suas águas. Eu não lhe confessei o que havia me ocorrido. Mas, nunca mais voltei a molhar os pés lá.

             

7 comentários:

  1. Excelente crônica. Parabéns! O açude continua por lá, vivendo a decadência da ação devastadora do homem. São muitas as histórias sobre o Açude do Creoli do Joviniano, que agora ganha para os seus acervos este belíssimo texto, produzido pelo ilustre filhos daquelas paragens. Brasília - DF, 10.12.2015 - Remy Soares de Carvalho

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    1. Obrigado, grande amigo e conterrâneo.Nestes tempos em nos debatemos com a falta ou carência do liquido precioso, é profundamente triste se saber que temos um grande manancial como aquele, pronto para todas as atividades, lazer, beber, pescar, irrigar ou simplesmente apreciar a placidez de suas águas em merecido descanso após um puxado dia de trabalho, vemos tudo aquilo se perder. Ainda podemos recuperá-lo. ainda bem.

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  2. Caro JP,
    Vendo a foto e a legenda desse açude degradado, lembro que no nosso Piauí, além de o Poder Público (Federal, Estadual e Municipal) praticamente nada fazerem em prol de nosso patrimônio natural, deixam que se degradem os nossos mananciais e ainda concorrem para isso com as suas "obras", tais como esgotos, barragem, retiradas d'água e com a desídia de não fiscalizar as agressões ambientais. Agora mesmo vi notícias de que mais de uma dezena de nossas lagoas secaram, seja por causa do desmatamento, das queimadas ou da morte dos rios e riachos que as alimentavam. Eu mesmo conheço algumas lagoas e açudes, que se encontram secas ou quase secas, com o solo esturricado.

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    1. Caro Poeta,
      As autoridades deste país estão preocupadas com outras coisas. Nada do que diz respeito à natureza interessa-os. Criaram um sem número de instituições ditas de proteção ao meio-ambiente, mas, no fundo, interessam-se apenas com os cargos que elas oferecem. O caso da Lagoa do Portinho também é emblemático: enquanto rendia aparições na mídia,um enorme grupo de pseudos defensores da natureza fizeram a sua festa particular. Depois, sumiram e não se falou mais no caso. Ridículos, é o que eles são!

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  3. Francisco Acoram Araújo.12 de dezembro de 2015 às 12:51

    Dr. Araújo, o problema com os nossos mananciais é crônico. A exemplo disso posso citar um riacho lá em Barras; hoje imenso grotão a céu aberto. Sobre sua aventura nas águas do açúde Crioli cabe ressaltar: "é melhor escapar fedendo a morrer limpinho." (Risos). Parabéns pelo excelente "causo", ou melhor, excelente crônica. Um abraço. Chico Carlos.

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    1. O riachinho de barras está marcado com uma cruz com o nome da nossa geração. A "geração insensível".

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