sexta-feira, 22 de abril de 2016

Belas Tardes de Domingo



                                   
 José Pedro Araújo
Existem coisas que marcam a fogo a nossa memória para sempre e, invariavelmente, tornam do canto escuro em que ficaram guardadas eternamente, despidas da parte ruim, é claro, para nos inundar de saudades. A maioria delas é composta por acontecimentos simples que, quando damos conta delas para outrem, ficam sem entender onde reside a graça daquilo que dizemos. Para nós, entretanto, elas são tão importantes quanto pequenas joias de valor incalculável, pois nos levam para o passado mais alegre da nossa pretérita existência. Essas lembranças, muitas vezes, são trazidas até nós sempre que alguma coisa nos acontece, como quando ouvimos uma velha música de que gostamos, e ela sempre vem acompanhada pela lembrança de um lugar, de uma pessoa, ou mesmo de um fato acontecido quando a ouvíamos.

O tempo vai passando, a idade vai chegando sorrateira com suas dores e suas cores cinzentas, mas traz costumeiramente também lembranças muito queridas para nós. Uma dessas lembranças simples e duradouras nos dá conta do que acontecia nas tardes dominicais do meu Curador.

Nos primeiros anos dos sessenta, havia pouca coisa para se fazer numa cidade tão pequena e desprovida de opções de lazer como a nossa. Para os aficionados pelo futebol, sempre restava o velho rádio de pilhas e suas ondas médias, que traziam até eles o som das transmissões futebolísticas, por exemplo. Sentados confortavelmente em cadeiras espreguiçadeiras, esses torcedores sertanejos ouviam com atenção os ataques de histeria dos locutores quando algum atacante do seu time favorito se aproximava do gol adversário. Às vezes, não havia o jogador ainda ultrapassado a linha que divide o gramado, mas eles já carregavam na emoção e deixavam o sofrido torcedor com a impressão de que a bola já estava quase dentro do gol adversário.

Para a garotada, porém, restava pouco o que fazer. Assim, tinha que se agarrar em alguma coisa para ocupar o tempo que se escoava vagarosamente rumo ao anoitecer. Tocavam a inventar brincadeiras e a buscar emoção nas coisas à disposição e tão corriqueiras. Sem alumbramento, entretanto.

Uma dessas possibilidades de dar um pouco de alegria às tardes de domingo, aconteceu quando um empresário da cidade, Zé da Cruz, adquiriu um caminhão novinho em folha, para transportar mercadorias e produtos relativos à sua atividade empresarial. Corria ai, como já falei, o inicio dos anos sessenta, e existiam poucos carros na cidade ainda inexpressiva. De modo que a simples aquisição de um veiculo por algum dos moradores da cidade já era assunto para ser tratado nos pontos de maior ajuntamento de pessoas, como a praça da matriz, o mercado central ou mesmo as igrejas.

Como ia dizendo, o caminhão do Zé da Cruz era uma das novidades mais alvissareiras da localidade e todo mundo queria conhecer o tal veículo motorizado e, se possível, desfrutar do seu conforto, dando uma voltinha nele. Nem precisava ser na cabine. Na carroceria já estava de bom tamanho.  Não posso negar, fiquei encantado com aquele Chevrolet branco e de para-lamas pintados na cor azul (se não me falha a memória).  Logo que fiquei sabendo da novidade, convidei meu pai, grande amigo do empresário, a lhe fazer uma visita. Era uma tarde linda de domingo e o sol brilhava forte, cobrindo de amarelo toda a região presidutrense. Com muita luta, meu pai acedeu ao meu convite e dali a pouco partimos em direção à praça da matriz. A casa a qual nos destinávamos ficava em uma das esquinas da praça principal da cidade. E, como sempre acontecia, fomos recebidos com o maior carinho e afeto pelo casal de amigos. Como não poderia deixar de ser, a conversa logo enveredou para a chegada do novo transporte, recentemente adquirido.

Conversa vai, muda para as novidades da politica, depois volta ao assunto que nos levara até ali. E eu ali, quieto e esperançoso. Esperançoso que o anfitrião nos convidasse para conhecer a novidade. Mas, como em muitas coisas da minha vida, aconteceu melhor. Em dado momento, Zé da Cruz perguntou ao amigo (depois sócio em uma loja de tecidos), por que não davam uma voltinha no Chevrolet. Ai, não me aguentei e já levantando da cadeira clamei em alto e bom som: claro que meu pai aceita! Posso ir junto?

Bom. O que aconteceu depois, não recordo muito bem. Nem mesmo quem dirigiu o caminhão, pois o seu proprietário não possuía habilitação para guia-lo. O que eu sei, com certeza, foi que logo estávamos passeando pelas ruas empoeiradas da cidade. Meu pai ia na cabine (boleia) junto com o proprietário, e eu encarapitado na carroceria, seguro ao gigante. E daí a pouco, a carroceria estava repleta de gente. Adultos, crianças, mulheres e homens, somavam um só e coeso grupo: a trupe dos cidadãos mais felizes da cidade.

Ah! Quem nunca experimentou aquele vento frontal no rosto, fresco e a despentear-lhe os cabelos, não faz ideia do prazer que sentíamos naquele instante. A alegria era visível no rosto de cada um dos sortudos que ali estava. O riso saia fácil e as gargalhadas acompanhavam o solavanco do caminhão pelas ruas esburacadas e poeirentas. E quando avistávamos algum conhecido, aqueles felizes passageiros acenavam inebriados e gritavam para chamar-lhe a atenção. Queriam ser vistos naquela comitiva da felicidade. E, de vez em quando, alguém corria atrás do carro e subia na carroceria para aproveitar o convescote dominical. Dai a pouco, a carroceria não cabia mais ninguém.

Se bem me lembro, fomos até muito depois do bairro Campo Dantas, depois voltamos pela Magalhães de Almeida e seguimos até o Varjão. Um passeio e tanto. Uma felicidade sem par. Quando o caminhão parou na frente da casa do proprietário, a noite já cobria a cidade com o seu manto escuro, posto não termos luz elétrica naquele tempo, apesar de já termos sentido o prazer dessa modernidade em épocas passadas. Os postes de pau d’arco com toda a fiação, ainda se encontravam enfiados no chão, para atestar isso, mas o velho motor elétrico se achava fora de combate há muitos anos. Por esta razão, ao apearmos do Chevrolet a escuridão já tomava conta da cidade.

Quase não me continha na minha alegria ao volta para a nossa casa. Meu pai, como sempre fazia, estimulava o eu prazer ao concordar que aquela havia sido uma tarde de domingo sem igual. Durante muitos outros domingos, sempre à tarde, ainda voltamos a nos deleitar com aquele passeio. Entretanto, quando o caminhão se achava em viagem, ou sem gasolina, pois ainda não existia um posto do combustível na cidade, a decepção era total. Estava acostumado demais com aquele sacrossanto passeio dominical. Não me recordo também quando teve isso fim, e nem por que terminaram com o nosso lazer especial de domingo. Minha memória não guardou essa informação.

Sei apenas que durou o tempo suficiente para que não me esqueça jamais de como era doce e agradável aquelas tardes ensolaradas e o especialíssimo passeio sobre a carroceria do caminhão Chevrolet. Hoje em dia, mesmo possuindo nosso automóvel até certo ponto confortável, não sinto o mesmo gosto, a mesma sensação ao passear pelas ruas. Aquele vento fresco batendo no rosto, brincando com os meus cabelos, é uma sensação que guardarei na memória para sempre. Belas tardes de domingo!

Um comentário:

  1. 50 anos de memória, meu caro amigo, sei que ainda há muito o que lembrar e contar para os amigos. Sempre que puder abra o velho baú e nos deleite com suas crônicas.

    Fernando Fontenelle

    ResponderExcluir