Foto Ilustrativa |
José Pedro Araújo
Meu tio
Zeca Barros era uma dessas pessoas com quem conversar transformava-se em uma
tarefa extremamente agradável. De palavra fácil e riso alegre, gostava de
contar histórias de acontecimentos que presenciou em sua longa caminhada pela
vida. A última história que ouvi dele, dizia respeito às agruras de um
sertanejo para realizar o exame de próstata. Falava de si mesmo. Mas esta aí
vai ficar para depois, existem outras na frente para ser contada.
Desde
criança me acostumei a ouvir Seus causos, assim como muitos garotos da minha
idade que acorriam à sua casa, sempre à noite, quando ele retornava da lida, para
ouvi-las. E ele, sabido como nenhum outro, costumava nos fazer debulhar todo o
feijão em vagem que havia colhido naquele dia. Nessas horas ele se servia de um
quibano, instrumento muito usado pelos agricultores para limpar os cereais da
casca, enchia-o de vagens de feijão e a meninada acercava-se dele para começar
a tarefa enquanto ele desfilava suas engraçadas histórias. Papai costumava dizer que meu Tio era um homem sábio, pois
sempre que orava a Deus pedia que se o Altíssimo tivesse mais alguma coisa para
lhe dar, que deixasse para a sua velhice, quando iria precisar mais ainda. Acho
que Deus lhe atendeu ao pedido, pois é certo que as coisas melhoraram muito
para ele quando ultrapassou a barreira dos sessenta anos.
Zeca
Barros possuía uma propriedade que era cortada ao meio pelo rio Preguiça. Este manancial,
manso como o próprio nome faz entender, é bastante raso e espraia as suas águas
pelas ribeiras cumulando-as com muito húmus, tal qual faz o rio Nilo, na
África. Havia nesta um sítio com muitas fruteiras, em especial algumas
mangueiras que produzia frutos de sabor inigualável. Era lá que ele também
fazia suas farinhadas. No principio, da forma mais rudimentar possível, ocasião
em que tínhamos de movimentar no braço uma roda para fazer o Caitetu girar e
transformar a mandioca em
massa. Depois, adquiriu um pequenos motor e a tarefa de
preparação da farinha ficou bastante facilitada. Nessa ocasião, era uma festa
ir para à Preguiça, nome dado em
homenagem ao rio que a seccionava ao meio.
Tomar banho no rio, comer beijus e milho verde assado e, principalmente, as
incomparáveis melancias que ele produzia, era um programa inesquecível. A festa
começava ao sairmos pela plantação escolhendo os maiores e mais doces frutos, comendo-os
ali mesmo no local em que eram encontrados.
Todas
as crianças das imediações estavam sempre se candidatando ao posto de
convidado, mas, somente umas poucas eram escolhidas de cada vez. Isso porque havia
muita lama pelo caminho, o terrível Massapê, barro liguento e escorregadio, sem
contar as passagens do Sucuruju e do
rio Preguiça que quando estavam com suas águas transbordando, dificultavam
sobremaneira o trajeto.
Era, afinal, uma aventura
chegar-se até lá.
Aliás, devo dizer que não somente
as crianças, mas os adultos também gostavam do passeio. E numa dessas idas
estava também um Pastor da Igreja Cristã Evangélica, de nome João – vou mudar o
nome para não constranger o personagem. Sujeito relativamente alto, magro,
muito magro, eu diria, e extremamente simpático e brincalhão, Pastor João era
presença constantes em nossas casas nas horas em que não estava desenvolvendo o
seu ministério. E nesse inverno, candidatou-se para ir comer melancia e milho
assado na Preguiça. Ocorre que nesse
dia o rio estava por cima, águas derramando por toda a vazante, enlameando o
caminho e dificultando mais ainda o trajeto que já era difícil. Mas ele não se
deteve por conta desses entraves.
Chegando à margem do rio,
Pastor João ficou muito preocupado com a travessia, pois tinha que atravessá-lo
caminhando sobre um tronco de madeira com aproximadamente sessenta centímetros
de diâmetros na sua parte mais expressiva. Se o trajeto até ali já havia sido
muito penoso - deslizando-se muitas vezes no massapê, e caindo-se algumas
outras tantas com a bunda na lama, além de sofrer um ataque sistemático de
mutucas assassinas - passar por sobre aquela tora de madeira, medindo não menos
do que vinte metros de extensão, era outra história. O convidado recuou. Temia
cair na água corrente que já estava quase batendo na ponte improvisada.
Zeca Barros, que já fazia aquela travessia
desde menino, mais de cinquenta anos atrás, assim que chegou à beira do rio,
calçando ainda suas botinas características, foi logo subindo no tronco e
passou caminhando sobre ele com se estivesse passeando sobre uma ponte larga. Em
menos de um minuto já estava no outro lado, insistindo com o visitante.
- Vamos lá, Pastor!
- Passar por cima deste pau?
Nem morto! – rebateu o atemorizado convidado, parado, olhar com um misto de
pavor e admiração frente à proeza realizada pelo seu anfitrião.
- Vai, homem, você vai
conseguir! – gritava Zeca Barros do outro lado.
- Não vai dar! – respondia o
Pastor – se cair nesse rio, eu é que vou ser comido pelos peixes, em vez de
comer melancia.
- Que é isso! Você consegue!
É só ter coragem.
- Nem me pagando, “seu”
Zeca! – resistia o Pastor.
- Então vamos voltar daqui?
É isso que quer? – falou o meu tio já desanimado.
- Não, “seu” Zeca. Façamos
assim: o senhor vai até a roça e traz as melancias para a gente comer deste
lado do rio – interveio o homem que não queria perder a oportunidade de
degustar as ansiadas frutas.
- De que jeito, homem? Não
têm graça nenhuma ficar carregando melancias de um lado para o outro do rio. Depois,
são muito pesadas.
Depois de algum tempo de
discussão, “vem, não vou!”, o assustando homem enfim criou coragem e começou a
se preparar para atravessar o rio. Era isso, ou perderia o objeto da sua viagem
até ali.
Só que em vez de caminhar
sobre o tronco de madeira como havia feito Zeca Barros, o Pastor montou sobre a
tora de madeira com se fosse cavalgar um animal, e com as duas mãos apoiadas a
sua frente, começou a se arrastar vagarosamente feito criança ao engatinhar. Do
outro lado, meu tio olhava aquela cena engraçada e não continha o riso. O homem
ia mudando de posição aos pulos, arrastando-se sobre o madeiro, penosamente.
Mas, não é que o teimoso estava conseguindo!
Foi uma travessia dificultosa,
mas ele conseguiu chegar ao outro lado são e salvo. Mas estava muito suado e
reclamando de dores nas pernas, certamente raladas no tronco enrugado.
Depois do esforço
monumental, o homem encarou seu anfitrião com uma advertência:
- O senhor é doido, “seu”
Zeca. Como foi capaz de passar quase correndo sobre esse pau com as botas
enlameadas desse jeito? – falou com alguma dificuldade.
- Doido, eu? Doido é você
que atravessou uma distância destas montado sobre esse pau tão grosso! – respondeu
isso e caiu na gargalhada.
O Pastor quedou desconsolado
à sua frente, certamente ajudado pelo fato de ter caído naquela armadilha
verbal.
O passeio, contudo, compensara
as dificuldades enfrentadas. Comeu o visitante tantas melancias quanto pode, e ainda
levou outras tantas para casa.
A volta foi outro
sofrimento, pois o processo de cruzar o rio foi o mesmo. Mas ele já não se
importou mais com a possibilidade de cair na água. Estava seguro pelo jeito
escolhido e não deu chance a outra brincadeira.
Pastor João continua
pregando a palavra de Deus, coisa que ele faz com muita sapiência e boa
vontade, por este nordeste. Mas,
certamente, não esquecerá jamais de um certo dia em que se candidatou a comer
melancia na roça do Zeca Barros. Do saudoso e brincalhão Zeca Barros.
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