terça-feira, 16 de março de 2021

SÃO LUÍS – Fragmentos da Minha Memória.



Praça João Lisboa(São Luís) - Foto Luiz Thadeu

 

(Aroucha Filho)*

Descendo a rua da Estrela, que nasce na Av. Pedro II, atravessa o Largo do Comércio, na Praia Grande, e finda no fundo do Convento das Mercês, no coração do centro antigo de São Luís, no número 370, no fundo do palacete que foi a residência do Sr. Wady Sauaia - hoje escola de música -,   fica um belo sobrado amarelo, de um andar, porão e mirante. Essa rua, como todo o Centro Histórico de São Luís, é ocupada por habitações residenciais e casas comerciais que se agrupam, distribuídas em todo esse espaço formando o bairro Praia Grande e o bairro do Desterro.

Porta do pensionato - Foto do autor
Antigamente esse sobrado deve ter pertencido a um abastado comerciante, pois apesar de não ser um dos mais belos, guarda uma modesta notoriedade arquitetônica, com suas janelas sacadas em pedra de cantaria, conforme os padrões construtivos dessa época histórica. O térreo destinado ao comércio, possuía porão acessado por uma ruela lateral, pejorativamente apelidada de "Beco da Bosta".

O piso superior todo em madeira de lei, era amplo com vários compartimentos, destinava-se à moradia do proprietário e familiares. O acesso ao mirante dava-se por uma escada no final do corredor que conduzia à cozinha. Antes, nesses sobrados, o mirante era destinado ao aposento dos representantes comerciais - cacheiros viajantes -, que atendiam o comércio local.

No início da década de 70, esse aludido sobrado, já servia como pensão para hospedar em regime fixo, estudantes e empregados do comércio ou do serviço público. A pensão era explorada por Dona Luiza, senhora simpática, bonita, afável e respeitosa. Solteira. Tinha uma filha, chama-se Mary Jane. Até hoje não sei se Mary Jane era filha do sr. Joca, seu affair, que embora casado, diariamente a visitava por volta das 16 horas, e algumas vezes, raramente, comparecia no horário do almoço. 

Casarão do pensionato - Foto do autor

 

Bem, tudo isso, é para entrar no assunto principal deste escrito. Nesse início de década, acho que 1971, não lembro como foi articulado a formação de um grupo de cinco jovens provenientes da baixada maranhense, Viana e Matinha, que já morando em São Luís, mudaram-se para o Mirante da Pensão de Dona Luiza. O Mirante tinha área aproximada de 20 m2, no máximo 25 m2. Duas pequenas janelas, uma lateral e outra nos fundos com vista para Baía de São Marcos, frontal para o hoje terminal de ônibus da Praia Grande. Nesses tempos idos não havia o Anel Viário, tudo ali era maré. Da janela assistimos, com maré seca, o árduo e cíclico trabalhos dos topógrafos nos serviços de levantamentos preliminares para o projeto dessa hoje movimentada via. Os ocupantes desse cubículo/mirante, eram os jovens: EDILSON Alves da Silva, José Ribamar Serejo Sousa - ZÉ SEREJO, José Ribamar AROUCHA Filho, José DOUGLAS da Silva, Antônio dos Santos Pereira - TONINHO (in memoriam). Estudantes vestibulandos, ávidos pelo acesso à universidade pública, em constante preparo para enfrentar os difíceis e disputados vestibulares. Uns trabalhavam, outros não. Nessa época não havia universidade particular no Maranhão.

Imaginem nossas acomodações, não havia guarda-roupas, as nossas vestes eram guardadas nas malas acomodadas no assoalho. Dormíamos em redes, armadas e emparelhadas, com distanciamento de no máximo 60 cm entre redes. "Tudo na mais perfeita ordem". Fosse hoje, em tempos de pandemia, estaríamos contrariando as normas sanitárias quanto ao distanciamento físico exigido.  Durante todo esse longo período, jamais houve briga ou agressões entre nós. Até a história do caldeirão de peões, que poderia gerar uma briga, foi motivo de muitas risadas.

Morávamos, apesar das adversidades, em área nobre da cidade, na movimentadíssima Praia Grande, parada de ônibus na porta, perto de tudo. Dos melhores bares - Hotel Central e Moto Bar; da Praça João Lisboa, onde ficava as melhores lanchonetes, e era local de encontro diário das colônias estudantil de Viana e Matinha; bem próximo da Rua Grande, o maior e chic centro comercial de São Luís - um shopping a céu aberto; os melhores cinemas - Éden, Roxy e Passeio - da Catedral e das Igrejas São João, Do Carmo, Santana e Desterro. Enfim, no aspecto de localização, éramos uns privilegiados. Faltava para usufruir das oportunidades dessa famosa área, a cereja do bolo, a grana.

Vale registrar que no nosso humilde aposento, ainda nos tornamos anfitriões de hospedagem, ao abrigar colegas em transições residenciais, que se acomodavam no patamar superior da escada, no espaço exato de armar mais uma rede. Por lá passaram: Bacará, Adalberto Corrêa, Lolico e BIBI(in memoriam), este fixou residência.

O realce maior dessa privilegiada localização ficava à uma quadra do sobrado 370. Era nossa vizinha de via, a rua 28 de Julho e a rua da Palma, onde ficava a "Zona”, local frequentado por toda sociedade masculina de São Luís, empresários, políticos, juízes, delegados, jogadores de futebol, etc...  que acorriam para lá em busca dos prazeres da carne ou para simples rolê regado a cerveja e bom papo, nas Boites coloridas com luzes, e belas garotas, daquele movimentado espaço do bairro do Desterro. Boite Bela Vista, Crás, Oásis, Maracangalha (onde eu ouvi pela primeira vez a música "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos", música de RC oferecida à Caetano Veloso), e a caríssima Boite Maroca, de belas mulheres, requintado ambiente frequentado pela elite boêmia da capital, prefeitos e comerciantes do interior. As vezes que a frequentei foram bancadas pelo prefeito da minha cidade, que sempre em São Luís, o acompanhava nas suas incursões boêmias. A minha primeira dose de Campari foi ali.

Minha preferida era a Boite Bela Vista, para contemplar a beleza da dama Angélica, disputada por todos frequentadores daquele local, apreciar a orquestra do vianense e exímio músico Zé Metério, que alegrava os dançarinos no salão de dança. Em uma noite pouco frequentada, eu com uma graninha no bolso, produto do meu trabalho de pesquisador do IPEI, tive a sorte de deleitar-me com a musa Angélica, ela muito carinhosa, me propiciou uma agradável noite, foi minha autoafirmação boêmia, era um status adquirido.  Até hoje lembro do banho com água fria que tomei em um tanque existente na área lateral da Boite, antes de vestir-me e regressar alegre para o Mirante.

Os cinco jovens, que tiveram essa saga vencedora, enfrentando e vencendo todas dificuldades e preconceitos de uma elite dominante, onde o instituto dos "pistolões" sempre prevalecia, são hoje septuagenários, ainda jovens, aposentados em atividades, profissionais com os títulos de:  Contador - graduado funcionário do IBGE, Bioquímico, Agrônomo, Médico e Auditor Fiscal (lamentavelmente nos deixou, partiu antes do combinado).

A distância, o afastamento físico, jamais destruirá a indelével amizade que construímos nas nossas juventudes.

Todos nós, orgulhosamente, poderíamos repetir a célebre frase do senador romano Júlio César, pronunciada, em 47 a.C.: VENI, VIDI, VICI.

 

(*) José Ribamar Aroucha Filho é engenheiro agrônomo aposentado do INCRA, cronista e compositor.

5 comentários:

  1. Excelente crônica! O retrato perfeito de uma época. Gostei muito.
    Parabéns!
    Axixá do Tocantins, 16.3.2021
    Remy Soares

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  2. Meu amigo, essa história do Aroucha Filho me fez recordar dos meus tempos de adolescência em Presidente Dutra, quando eu morava na rua 28 de junho na pensão da Dona Maria, quase na travessa da rua do campo com a do cemitério. Eu morava ali naquela pensão, juntamente, com outros amigos do Calumbi e armávamos as nossas redes também emparelhadas a uma distância de uns 60 centímetros de uma para a outra, pois o único quarto da pensão que nos servia de dormitório era muito pequeno.
    Nós denominávamos as redes de baladeira pela semelhança que tinham com esse instrumento de passarinhagem, as nossas malas, na época, feitas de couro bovino, nós as chamávamos de cachorrinha por sempre andarmos com elas à tira colo.
    Eu estava no último ano do curso científico me preparando para fazer o vestibular de medicina da Universidade Federal do Maranhão e fazia também na mesma instituição de ensino, um curso profissionalizante de Patologia Clínica que era ministrado pela Escola Técnica do Maranhão no Colégio Dr. Carlos Machado, o qual ficava ao lado do colégio das freiras.
    À noite eu assistia às aulas de Anatomia do referido curso e após à ministração das mesmas, os amigos e colegas me convidavam para irmos colocar em prática as apontadas aulas lá na zona do Potó, local onde conheci uma garota muito bonita que era teúda e manteúda de um famoso comerciante casado de Presidente Dutra, essa bela garota de programa se interessou por mim, mesmo tendo um caso com o indigitado comerciante do qual eu tinha muito medo por causa das relações íntimas de amor, prazer e aulas de pedagogia de iniciação sexual que tive com a amante dele.
    Enfim, meu amigo Araújo, o seu nobre colega de profissão aguçou muito os fragmentos de memória da minha adolescência vivida com muita intensidade na cidade de Presidente Dutra do Maranhão no início da década de 1970.

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  3. ih, tu também angelicou?

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    1. Autoafirmação na boêmia. Status da noite.

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    2. São tempos diferentes dos atuais. Fazia parte de todo rapaz em início de formação. Realmente, um belo texto do Arouchinha.

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